Palestra de encerramento

Confira o vídeo e tradução da palestra de encerramento:

Como falamos quando falamos de Ed-Tech

Questionando os discursos de educação e tecnologia

Neil Selwyn
Monash University, Melbourne
Novembro 2017

INTRODUÇÃO

Olá e obrigado por estarem aqui para ouvir o que tenho a dizer. Cláudia me pediu para falar hoje sobre o tema do discurso. Eu acho que é uma lente a ser usada para explorar o tópico de educação e tecnologia. Vou tentar explicar porque…

Em primeiro lugar, se vocês não estão familiarizados com o meu trabalho, é preciso dizer que eu NÃO considero o uso de tecnologia na educação como um processo neutro ou naturalmente benéfico. Ao contrário, eu diria que o uso de tecnologia digital na educação é um lugar de confrontos e conflitos intensos. Esses confrontos ocorrem em frentes diversas – desde a alocação de recursos e maximização dos benefícios até preocupações com epistemologia ou igualdade de oportunidades educacionais.

Assim, muitos dos pontos básicos em relação à educação e tecnologia digital são fundamentalmente questões políticas de educação e sociedade, isto é, questões sobre o que é educação e questões sobre como a educação deveria ser. Nesse sentido, desenvolver um entendimento próprio em relação à aplicação educacional da tecnologia digital só pode vir de um amplo reconhecimento de poder, controle, conflito e resistência. Colocando de modo bem direto, qualquer explicação sobre o uso da tecnologia digital na educação precisa ser contextualizada em termos do conflito com relação à distribuição do poder.

Isso nos traz ao tema central desta fala: abordar a educação digital como discurso. Estou cada vez mais convencido de que a construção discursiva da educação digital é “crítica para todo o projeto” da tecnologia educacional. A área da tecnologia educacional é notória por seu uso excessivo e escorregadio da linguagem. Pensem em falas como “disrupção digital”, “habilidades do século XXI”, “ensino personalizado”, “escola 2.0” ou “sala de aula invertida”. Esta é uma área de educação que está atolada em hipérbole e arrogância.

Além de tentar persuadir as “partes interessadas” da legitimidade, viabilidade e valor dos produtos digitais, processos e práticas digitais, esses discursos desempenham um papel importante – mas geralmente despercebido – na “tentativa de solucionar uma situação difícil” e racionalizam perspectivas, motivações e objetivos muitas vezes contraditórios – procurando, assim, obter o consentimento popular de praticantes frequentemente céticos e do público em geral. Eu acredito que estudar cuidadosamente os discursos que foram empregados (e expor suas contradições, as falhas e os temas recorrentes) pode fornecer uma visão mais abrangente sobre o crescente espaço da tecnologia digital e da mídia dentro da educação, mais do que seria possível através da análise somente da prática educacional.

 

QUESTIONANDO A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL

Há muito tempo me fascina a linguagem usada para descrever o uso da tecnologia na educação, e eu incentivaria vocês também a tomar um minuto para fazer o mesmo. Talvez ao longo desta conferência vocês possam perceber a  construção discursiva de educação e tecnologia. Em vez de revirar seus olhos quando ouvem falar de “nativos digitais”, “escolas inteligentes” e outros termos atualmente em moda, pensem mais sobre como essa retórica se relaciona com uma série de questões importantes. Por exemplo:

  • Que significados e entendimentos da educação estão sendo transmitidos através desses retratos de tecnologia digital e em prol de quais interesses eles trabalham?
  • Em que medida essas construções de tecnologia digital se situam em estruturas dominantes de produção e poder?
  • Quais são as liberdades e restrições associadas a tais declarações?
  • Como isso pode ser vivenciado por diferentes indivíduos e grupos sociais?
  • Como esses discursos concebem a relação entre o individual e o bem comum, o público e o privado?

Estas são questões importantes a serem colocadas, e assim que você começa a encarar a linguagem da educação e da tecnologia dessa maneira, logo você vê a natureza inerentemente política da educação e da tecnologia. Por exemplo, você percebe rapidamente que as conversas sobre “Ed-Tech” muitas vezes funcionam para definir problemas educacionais e definir suas soluções. Esses discursos contêm uma série de proposições sedutoras e convincentes (ou seja, declarações sobre educação e como ela funciona); pressupostos (tratando certas proposições como dadas); e funções interpessoais (como as relações entre pessoas são representadas).

Embora esses discursos variem no grau em que percebem a reforma das ações educacionais existentes, eu argumentaria que eles sustentam um senso comum – quando não uma ortodoxia – em torno da natureza e da forma do que a educação na era digital “deveria ser ” . Esses discursos certamente reforçam uma urgência de mudança educacional. Esses discursos nos levam a presumir que o realinhamento digital e a reconfiguração digital da educação são inevitáveis … e que a única questão diz respeito à extensão dessas mudanças.

 

NOVE CARACTERÍSTICAS RECORRENTES NA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA EDUCAÇÃO DIGITAL

Para mim, o objetivo principal de sair da ortodoxia do senso comum da Ed-Tech e desafiar a linguagem da educação e da tecnologia dessa maneira é expor os valores e agendas subjacentes a essas correntes discursivas. Tendo feito isso em minha própria pesquisa ao longo dos últimos 20 anos, percebo que há uma série de traços discursivos distintivos que parecem se repetir independentemente da tecnologia específica e setor de educação.

Eu estaria muito interessado em ver se eles se aplicam ao contexto sul-americano e também à área específica de Ensino de Língua Inglesa. Suspeito que isso possa ocorrer, embora eu também esteja certo de que haverá variações e talvez outras questões em jogo em sua específica de atuação. De acordo com minha experiência, pelo menos, essas questões incluem as seguintes 9 questões:

Talvez os valores mais proeminentes ao longo da construção discursiva da educação e da tecnologia se relacionem com a individualização da prática e da ação. A maioria dos discursos da Ed-Tech que encontro envolvem uma responsabilidade maior do indivíduo nas escolhas em relação à educação, assim como lidar com as consequências das escolhas. Nos é dito, por exemplo, como a educação digital exige níveis elevados de auto-dependência e pensamento empresarial por parte do indivíduo, com o sucesso educacional dependendo principalmente da capacidade do indivíduo de auto-direcionar seu contínuo comprometimento com a aprendizagem através de várias formas de tecnologia digital favoritas.

Junto com essa individualização da ação, encontra-se a noção da educação como uma área de informalidade e risco aumentados. Desta forma, a tecnologia digital é vista como suporte a formas de aprendizagem que podem serem ditas  indeterminadas, fragmentadas, incertas e arriscadas. Além disso, esta informalidade geralmente é assumida para trabalhar em favor do indivíduo e à custa de instituições formais interessadas em si mesmas. Assim, inconscientemente ou não, a educação digital é apresentada como um meio já pronto, através do qual as sensibilidades informais e desorganizadas são internalizadas como normas e valores por indivíduos, grupos e instituições.

Outro valor  que se nota é o reenquadramento de interesses educacionais em linhas menos coletivas. Não sobrecarregados com a necessidade de aprender daqueles em nosso contexto ou localidade imediatos, somos informados sobre como as tecnologias educacionais tornam mais fácil interagir e aprender com outras pessoas de nossa preferência. As chamadas “comunidades” de aprendizes estabelecidas através dessas tecnologias digitais diferem consideravelmente em termos de diversidade social, obrigação, solidariedade e estruturas de poder subjacentes.

Fico também impressionado com a forma como muitos discursos Ed-Tech enquadram o aprendizado como um empreendimento competitivo. Isso contradiz a apresentação da educação digital, como algo que permite que os indivíduos aprendam harmoniosamente com os outros. Em vez disso, a tecnologia digital coloca os indivíduos em ciclos formativos pessoais e os laços de feedback individuais. Os indivíduos aprendem a se tornar competentes no seu desenvolvimento pessoal, impulsionados por objetivos externos e se esforçando para melhorar sua própria performance em comparação com as dos outros.

Outro valor subjacente aos discursos da educação digital nos últimos 20 anos é a promoção de valores e sensibilidades de mercado livre como um mecanismo preferido de organização educacional. Por um lado, muitas formas de educação digital apoiam a troca racional do mercado como um quadro dominante para organizar e regular a interação e troca  educacional. Por outro lado, esses discursos também apoiam cada vez mais a monetização aberta da oferta educacional nos mercados comerciais.

Partindo disso, também é significante como esses discursos geralmente promovem a reconfiguração da educação como commodities – ou seja, enquadram processos e práticas de educação na “forma de mercado” de algo que possui valor calculável e quantificável e, portanto, pode ser usado numa troca . Parece claro que um dos valores implícitos nos discursos dominantes da educação digital é a reconfiguração das práticas e relações educacionais em formas que podem ser quantificadas e trocadas.

Estes últimos pontos elevam o aumento da valorização da privatização através da digitalização da educação. Em particular, esses discursos tendem implicar uma maior importância de entidades não estatais e comerciais como fornecedores de educação. Na verdade, um dos resultados claros de muitas formas de educação digital é a reconstituição da educação em formas que são reduzíveis, quantificáveis e, em última instância, contrárias a diversos sujeitos fora da comunidade educacional.

Todos esses discursos também implicam um aumento da expansão da educação em áreas desconhecidas da sociedade e da vida social – levando a um estado  “sempre conectado” de envolvimento educacional potencial. Na verdade, os discursos da Ed-Tech tendem a apoiar a expansão da educação e da aprendizagem nas configurações domésticas, comunitárias e de trabalho. Há paralelos claros aqui com o que Basil Bernstein (2001) identificou como a “pedagogia total da sociedade” – ou seja, uma sociedade moderna que assegura que a pedagogia seja integrada em todas as esferas possíveis da vida.

Finalmente, todos esses pontos também refletem uma correspondência entre a tecnologia digital e os aspectos emocionais alterados do engajamento educacional. Em particular, somos levados a aceitar que a educação digital envolve ensino e aprendizagem sendo experimentados em termos menos imediatos, menos íntimos e talvez em campos mais instrumentais. Nesta perspectiva, somos levados a aceitar que a educação digital é algo que é experimentado em uma base parcial, segmentada, orientada a tarefas, fragmentada,  descontínua e “desagregada”. Consumir educação deve ser o mesmo que consumir a Netflix.

 

CONCLUSÕES – A NECESSIDADE DE REAGIR?

Mesmo que você concorde  ou não com qualquer uma das minhas interpretações, fica claro que os discursos atuais da educação digital disfarçam uma série de conflitos e tensões importantes que precisam ser plenamente reconhecidos e abordados. Claro, essas aparentes contradições não devem ser vistas automaticamente como motivo de preocupação. Há, afinal, muitas pessoas que serão favorecidas por formas de ensino mais individualizadas, elitistas, competitivas, orientadas para o mercado, omnipresentes e privas de emoção.

No entanto, minha preocupação é que muitos desses valores certamente não interagem facilmente com os valores e desejos tradicionais da “educação pública” – ou seja, a educação como um bem público e não como um interesse privado. Certamente, muitas das formas mais populares de educação digital se alinham facilmente com os valores e agendas do que foi notado em outro lugar como uma “mudança neoliberal” da educação- ou seja, uma educação baseada em valores e planos lucrativos, com diminuição do envolvimento do Estado, satisfazendo a exigência do capitalismo pós-industrial, e assim por diante.

Na melhor das hipóteses, essas construções atualmente dominantes de “educação digital” parecem fazer pouco para desafiar ou interromper a individualização, a mercantilização e a privatização da educação contemporânea. Por outro lado, há muito menos ações promovam as preocupações “positivas” da justiça social, da desigualdade e da noção de educação como bem público coletivo. Este silêncio pode – ou não – constituir um problema, mas essas agendas e perspectivas alternativas, pelo menos, merecem ser colocadas mais prontamente dentro dos discursos dominantes sobre educação e tecnologia digital.

Embora seja difícil identificar soluções fáceis para essa situação, existem alguns meios modestos através dos quais essas tensões podem começar a ser abordadas. Acima de tudo, existe a necessidade de pessoas como nós nesta conferência explorar formas de alterar as formas como a educação e a tecnologia são discutidas.

Por exemplo, como podemos estimular e sustentar um vigoroso debate público sobre educação e tecnologia digital – levando a um quadro da educação digital como uma controvérsia pública e permitindo que o entendimento atual do “senso comum” da educação digital seja desafiado, contestado, problematizado e re-materializado.

Da mesma forma, como podemos encorajar os escritores e pesquisadores acadêmicos a problematizar a educação digital – para se envolver em discussões e debates que ultrapassem a natureza celebradora de muitos trabalhos acadêmicos sobre Mídias digitais e melhor demonstrar os vínculos entre os vários tipos de dominância e desigualdade inerentes à educação digital. Acima de tudo, então, como podemos encorajar as interações de mais pessoas com a educação digital em termos conscientes de poder e conflitos ideológicos?

Todos esses desafios são muito importantes para aqueles de nós que desejam “fazer a diferença” no mundo da Ed-Tech. A linguagem é claramente um elemento-chave para melhorar as condições de educação e tecnologia. Então, fiquemos mais atentos às palavras que são usadas e às formas como que são usadas. Vamos nos dedicar a falar com mais frequência e força sobre educação e tecnologia de forma a colocar em primeiro plano que questões como democracia, valores públicos, bem comum, moral e ética. Desafiemos termos da moda e ou frases de efeito que distorcem as discussões de educação e tecnologia. Sejamos mais confiantes em denunciar  generalizações preguiçosas e rejeitar hipérboles

Acima de tudo, vamos  coletivamente “cuidar da nossa linguagem” quando se trata de falar sobre educação e tecnologia no futuro. A educação digital é tanto sobre o discurso quanto sobre os dispositivos. É hora de examinar corretamente o que está sendo dito neste campo e pensar em melhores maneiras de dizer isso!