Literatura Infantil (1880-1910)
(Conto de Natal)
A noite, esparzida de
astros, silenciosa e morna, corria triste, sem os rumores dos outros anos,
quando era vivo o venerando pároco centenário que fazia despertar a aldeia
religiosa com a voz sonora do grande sino e com os repiques festivos das
campanilhas.
Ia passar despercebida a
grande hora da alva redentora em que Jesus nasceu. Campos desertos, choças
apagadas, eiras emudecidas; apenas um ou outro camponio, saudoso do velho
tempo, abria a porta da cabana para olhar os muros brancos do presbitério
vazio, ou passava por entre as ramagens sob o esplendor infinito da noite
constelada como o espectro errante da alegria extinta, tocando tristemente a
viola.
O luar escorria pelas
árvores alvo e diáfano, tornando de prata a água lisa de um lago, onde o gado
descia a beber. A igreja fechada, branca, muito branca, era como uma miragem
feita pela claridade do luar. Mas que diferença dos outros anos! Àquela hora as
portas escancaram-se exalando o aroma santificante dos turíbulos, e o campo
enchia-se com o clangor dos hinos do povo que saudava, no berço de palhas do
presépio, o louro Jesus nascido, deitado, com simplicidade, entre a vaca e o
jumento. Que diferença dos outros anos! Quem tivesse ouvido a palavra trêmula
do velho pároco, narrando, ao fim da missa, diante do pequeno estábulo, o
mistério de Belém: como nascera de Maria Sempre Virgem numa creche, para
exemplo dos homens, Jesus, Rei dos reis, a Misericórdia Suprema, — teria
saudades diante de tamanha tristeza.
Nos currais fechados, o
gado, adivinhando a lúcida manhã, mugia profundamente. No céu puríssimo
resplandecia radiosa a estrela-d’alva.
Um galo solitário cantou um
quintalejo; logo outros responderam dos quintais vizinhos e de sítios
distantes: e, súbito, o som profundo e grave do grande sino quebrou o silêncio
melancólico da noite natalícia, e logo romperam, em bimbalhada estrídula, todas
as campanilhas, justamente como nos outros anos quando era vivo o venerando
pároco...
De repente abriram-se as
portas das cabanas; os camponios atônitos apareceram nas soleiras em leves
roupas, as cabeças nuas, com lanternas erguidas alumiando a noite.
As portas da igreja, abertas
de par em par, deixavam ver o interior resplandecente de luzes.
O espanto foi grande entre
os rústico, e nenhum ousou aventurar um passo, posto que os sinos continuassem
a soar festivamente.
Foi um boiadeiro quem
primeiro falou:
—
Deve
ser alguém da vila que faz soar à missa para trazer-nos recordações do pároco,
fazendo que não passe em silêncio a noite santa de Deus!
Os sinos repicavam a mais e
mais, e já, em frente da igreja, havia uma esteira de luz dourada que os sírios
alastravam.
— Se fôssemos? — propôs o
boiadeiro.
Voltaram todos em busca dos
gabões e dos cajados, e reunindo-se, com os olhos sempre fitos na igreja
iluminada, foram seguindo em grupo cerrado, lentos, tímidos, parando de
instante a instante, assustando-se ao mínimo ruído.
Ia à frente o boiadeiro,
batendo fortemente com o cajado para animar a turba.
De repente, um grito atroou
no grupo: o boiadeiro, que ia à frente, caíra de bruço junto às escadas da
igreja, clamando. Nem um só homem atreveu-se a avançar para acudi-lo: e só
quando o viram erguer-se com os braços alçados, brandindo o cajado grosseiro,
foram caminhando.
— O pároco! O pároco! —
bradava o boiadeiro, subindo tremulamente os degraus. E os homens, que haviam
corrido, extáticos, parados, balbuciavam, com os olhos postos no altar da
igreja: — O pároco que morreu! O pároco!
Começava a missa de Natal.
Junto ao altar, revestido
dos hábitos religiosos, estava um velhinho pálido, inclinado sobre o livro
santo, as mão juntas, orando. À sua esquerda, fúlgido, com um esplendor
sideral, um anjo de asas cerradas, ajoelhado, agitava um turíbulo; outro, à
direita, todo num grande limbo de luz, acolitava.
Nada se ouvia. De vez em vez
o oficiante voltava-se para abençoar os camponios, e as suas pupilas
fulguravam.
A pouco e pouco foi-se
enchendo o templo; havia montes de cajados à porta.
Os anjos passavam de um para
o outro lado, sem tocar o solo, aereamente, num adejo sutil.
Finda a cerimônia, a benção
do sacerdote caiu sobre toda as cabeças: e ele, lentamente, como nos outros
anos, desceu para o meio da turba, e, flanqueado pelos anjos, fez a prédica
consoladora, narrando o poema da simplicidade, paternalmente, com a palavra
pausada e meiga. Por fim, passando pelos grupos, mais pálido que o luar que
ainda alumiava, ia dando a beijar a mão gelada; e viram todos o santo e
venerando padre alçar os braços em ofertório; depois voltou-se, e ficou muito
tempo a olhar a vila; e uma lágrima silenciosa desceu-lhe pela face branca.
Ajoelhou-se, curvando a fronte, e todos imitaram-no.
Quando os camponios
levantaram os olhos, os sinos tinham emudecido no campanário, e, pelas tábuas
do templo, havia estrias douradas de sol. O pároco e os anjos haviam
desaparecido.
Entreolharam-se os
camponios; e o boiadeiro, tomando o cajado, indagou:
— De onde terá vindo? De
onde terá vindo?
— Do túmulo, de certo! —
disse uma velha a tremer.
— Do céu, — disse um
pastorinho — não há anjos na terra.
— Mas ele chorou, — disse o
boiadeiro, — e não há lágrimas no céu.
— Saudades talvez! — falou
alguém no grupo.
Então o boiadeiro, fazendo o
sinal da cruz, suspirou:
— Se há saudade no céu, bem
triste deve ser a vida eterna!
— Bem triste! — suspiraram
todos.
E o boiadeiro ajuntou:
— Bem disse ele, antes de
expirar, que havia de estar sempre conosco, acompanhando-nos em nossas dores e
em nossas alegrias! Bem disse ele antes de expirar...
— Sempre estará conosco
protegendo-nos à nossa mesa, à beira do nosso leito, junto ao sepulcro em que
ficarmos! — disse um sertanejo.
E todos, movidos pelo mesmo
sentimento, levantaram para o céu os olhos agradecidos. A manhã de Jesus
resplandecia.
* * *
E eis porque não tem pároco
a igreja de S. José do Monte: os presbitério é o céu, e o pároco é sempre
o mesmo, que desce, em espírito, para abençoar as almas e as campinas.