Literatura Infantil (1880-1910)

 

 

Sumé                
O "Perna de Pau"

 

 

16. O Tesouro

 

Já sem forças para lidar nos campos com os pesados ferros da lavragem, prevendo a miséria próxima, Serapião saía todas as manhãs de casa firmado ao bordão, e vagarosamente percorria os caminhos do sítio, chegando até onde lhe permitiam as pernas fracas.

 

Repousava nas barrancas, à beira da água ou à sombra de alguma árvore, e ficava esquecidas horas, relembrando o tempo de sua mocidade, quando, brandindo uma foice, roçava o mato bravio, fazendo ele só a tarefa que dois homens de hoje não seriam capazes de levar a termo.

E como vivia feliz! A casa farta, a família contente, porque a terra correspondia com abundância de flores e de frutos aos cuidados do lavrador!

Agora, entretanto, as laranjeiras morriam carregadas de erva de passarinho, os cafeeiros desapareciam abafados pelo mato; nem uma raiz de mandioca, nem um pé de milho; o vassoural invadia as terras, e as cobras, sentindo o abandono, cruzavam os caminhos ou dormiam ao sol, enroscadas, à beira ao antigo açude seco.

Todavia aquelas terras podiam levar vantagem às outras da redondeza, não só por serem mais férteis, como porque nela viviam seis robustos rapazes, o mais velho contando trinta anos, o mais novo tendo apenas dezoito.

Filhos de Serapião, órfão de mãe, levavam vida ociosa, uns ás portas das vendas fumando, conversando, outros em casa estirados nas redes, afinando violas, sem pena do velho pai, sem cuidados no futuro. Indolentes, para não saírem sem busca de trabalho, contentavam-se com a magra ração de farinha de milho que lhes dava uma negra, antiga escrava da família, que não quisera apartar do sertanejo.

De vez em quando, a muita instância, um saía a caçar, e, enquanto durava a carne do fumeiro, zangarreavam e dormiam.

Serapião suspirava; mas, como meigo para os filhos, não lhes dirigia uma palavra áspera, lembrava-lhes apenas a fome, nos dias futuros, o frio, as moléstias: mostrava-lhes o sapé da palhoça apodrecido, o adobe esburacado, os currais vazios, e, nos poleiros, nem um galo sequer para anunciar as madrugadas.

Eles, porém, sempre estirados, respondiam com a resignação dos fracos e preguiçosos:

— Deus é grande, meu pai...

Sucedeu, porém, uma grande seca, e todo o sertão foi lastimosamente devastado pelo sol.

Os que tinham bens acumulados puderam fazer face ao flagelo; os pobrezinhos, porém, esses caminhavam noite e dia pelas estradas secas e poentas, batendo os matos, chafurdando nos pântanos lodosos em busca de frutos e raízes. Tudo, porém, o sol devastador levara. Os pássaros eram raros, e no campo nem uma preá saltava á vista do caçador faminto. O gado, sedento, mugia angustiadamente; e à noite, nos casebres, juntavam-se os bandos de infelizes rezando, em coro alfito, ladainhas de misericórdia. Serapião e os filhos sofreram como os mais desgraçados.

Porque nada possuíam, nada lhe fiavam; de sorte que, enquanto duraram os dias tremendos, os infelizes erraram pelas trilhas, catando ervas, procurando raízes. Às vezes caíam exaustos na poeira das estradas, gemendo, de fadiga e de fome; e emagreceram tanto, que os ossos apareciam a flor da pele.

O velho sofria calado, e menos tormento lhe causava a fome do que a miséria em que viviam os filhos desalentados, pedindo a morte, preferível a tão duro e longo sofrimento. Afortunadamente, chegaram as águas benditas.

Chuvas torrenciais alagaram os campos, e com tal abundância, que os rios, assoberbados, espraiaram; e as terras, fecundadas, entraram a produzir fazendo brotar a sementeira, explodindo em verdura. No sítio, porém, só a erva brava ganhou com as grandes águas: dilataram-se os vassourais, o sapé alastrou abundantemente, e, como aparecessem aves e das tocas saíssem ariscamente as pacas, os rapazes, esquecidos do flagelo, voltaram à vida preguiçosa, buscando os alpendres das vendas, ou estirando-se nas esteiras, na varanda da palhoça esboroada pelo tempo.

Serapião, porém, quis incitá-los ao trabalho, lembrando-lhes o que haviam sofrido durante o mês árido de soalheira e penúria; mas como d’antes, todos, a uma, responderam-lhe: — “Deus é grande!”— E um deles desleixadamente ajuntou:— “E para que nos havemos de estafar, se nunca chegaremos a ser ricos? Os que menos trabalham são justamente os mais favorecidos. Se alguma coisa nos tiver de vir às mãos, não é preciso que a vamos procurar: a porta está sempre escancarada, entra por ela o sol, entra por ela a noite; a fortuna pode entrar também...”

Ouvindo palavras tais, o velho ergue-se lentamente, tomou o cajado e partiu: era ao cair da tarde, os juritis gemiam. A noite veio: a preta, para afugentar os morcegos, fez um fogo de gravetos; e, em torno da chama, acocorados, reuniram-se os rapazes, até que um deles, o mais moço, vendo a lua alta no céu, e dando pela ausência do pai, perguntou: — Que é feito de nosso pai? Que andará fazendo, a horas tais, lá fora, ao relento da noite fria?

 

E outro, com um frêmito pressagio, disse, baixinho e a medo: — Quem sabe se não lhe sucedeu algum desastre? É tão velho, mal vê e anda com tanta dificuldade... Quem sabe se não rolou de alguma ribanceira?

Ficaram algum tempo silenciosos, os olhos fitos na lenha que crepitava; um deles, porém, o mais velho, ergueu-se resolutamente; e foi mais forte do que a preguiça o amor no coração do moço:

— Vamos! Não podemos ficar aqui agasalhados quando o nosso velho pai treme de frio, e geme, talvez, estropiado no fundo de alguma grota. Vamos! — E todos, levantando-se, travaram dos cajados e disseram: — Vamos!

Saíram. A noite, de um esplêndido luar, era luminosa e pura: as estrelas alvas branqueavam por entre a verdura e as árvores pareciam galvanizadas de prata.

Grande era o silêncio, apenas interrompido aqui e ali pelo trilar dos grilos e pelo chilro de algum pássaro aninhado; longe rolavam águas com um perene murmúrio.

Eles seguiam, ora pelos pedrouços dos caminhos, ora mergulhados no sapezal ondulante, bradando sempre: — Meu pai! — o eco, apenas, respondia.

Já os rapazes faziam estranhas e terríveis conjecturas acerca do velho sertanejo, quando um deles que se avantajara em passos gritou de longe:

— Aqui! Aqui! — correram todos para o sítio de onde saíra a voz, e lá, com alvoroço, foram encontrar Serapião sentado sob a galhada protetora de uma veneranda mangueira, sorrindo contente.

Os rapazes, reunindo-se em círculo, puseram-se a falar da imprudência do pai, e levantaram-no carinhosamente, insistindo com ele para que os acompanhasse à casa.

Serapião, porém, sorrindo sempre, apenas dizia, num grande contentamento: — Ah! Se vocês soubessem... se vocês soubesse! — Os rapazes, intrigados com as palavras do velho, cercavam-no, perguntando: — Mas que é? Mas que é? Por que não dizes? Que segredos podes ter para seus filhos?

— Deus me dê forças para guardá-lo sempre! Para que hei de contar-vos tal segredo: Não haverá amanhã um homem que o não conheça, e quando o conhecerem os homens... pobre de mim! Se eu vos julgasse capaz de guardá-lo, decerto que a outros não o confiaria, — mas de que me servirá saberdes o que me disse a Iara[i]?

Ouvindo isso, os rapazes arremeteram curiosamente, e, apertando o velho, interrogavam-no curiosos:

— Iara! E tu falaste a uma Iara, pai? A uma Iara, pai?

— Sim, — disse o velho com fingida tristeza, — já que me escapou parte segredo, sabei que aqui, debaixo desta mangueira velha, veio ter comigo uma iara do rio.

— Uma iara do rio!...

— Uma iara do rio. Toda nua, tinha apenas para cobrir-lhe o colo os cabelos, verde como o limo das pedras; era branca como a espuma das cachoeiras, e os olhos, tinham mais brilho que a estrela d’alva...

— Tu sonhaste, pai! — disse o mais moço dos filhos.

— Por Deus, que não sonhei! Vi uma iara do rio, afirmo e juro. Ainda podeis ver o caminho úmido, da água que gotejava dos seus cabelos verdes.

— Sim! Estão úmidos os caminhos, porque o relento da noite os umedece.

— Por Deus! Estão úmidos das gotas que rolaram dos cabelos verdes da iara. E mais: não vos fica bem essa dúvida, meus filhos, quando é vosso pai quem vos fala. Já vos menti alguma vez?

— Nunca! — disseram todos.

— Então chegai-vos bem para mim, bem perto; que eu vos fale, mas que o vento da noite não leve além uma só das palavras que eu vos disser, uma só das palavras que me disse a iara. Chegai-vos bem para mim, bem perto!

E os rapazes apertaram-se em volta de Serapião. — Agora, — continuou o bom velho, — jurai por Deus que nem uma só das palavras que ides ouvir passará dos vossos lábios para os ouvidos de outrem.

— Juramos!

— Prestai atenção, para que eu não me canse de repetir-vos. Esta terra que o céu alumia, — disse com mistério o velho — esta terra que nós pisamos guarda um valiosíssimo tesouro. Quem o escondeu foi o velho pajé[ii] de uma tribo forte, quando a nossa terra foi invadida pelos descobridores. Escondeu-o e partiu, internando-se nas selvas não desbravadas, certo, porém, de que não fora visto enquanto cavava o esconderijo para o seu tesouro. Se homem não havia a espreita, — a iara, por entre as tábuas, espiava, e conhece o sítio em que se conserva a riqueza maravilhosa.

— E te disse? E indicou-o, meu pai? — acudiram todos os rapazes com ambição.

O velho, por´m, moderando as palavras, continuou: — Não, mas prometeu fazê-lo no dia em que os cafeeiros, em vez de flores de prata, desabrochassem flores de ouro.

Os rapazes entreolharam-se pasmados.

— Vejo que não acreditais nas minhas palavras, filhos; é natural: eu, mais velho do que vós, também sorri da expressão da iara, e foi preciso que ela, para que eu acreditasse me dissesse: — Velho, nada é impossível! Para que os cafeeiros, em vez de flores alvas que costumam tocar sua rama, dêem flores da cor do ouro basta que os não esqueçais, que os não deixais abafados pela erva perniciosa; basta que se lhes chegue a terra, que se lhes dê o adubo, que se lhes faça a limpeza em redor do tronco, a fim de que os aqueça o sol e as chuvas se entranharem até as suas raízes; isto feito, em pouco vereis os cafeeiros dourados, e, nesse dia, eu virei mostrar-vos o sítio onde o pajé guardou, numa enorme igaçaba, o tesouro da tribo!

Os rapazes, entendendo-se com os olhos, suspiraram, e um deles, oferecendo arrimo ao pobre velho, disse-lhe:

— Vamos, meu pai. Faz frio, a noite vai alta e em casa arde um lume que vos há de fazer bem!

E caminharam vagarosos através dos campos iluminados pelo luar silencioso.

Ao amanhecer, porém, os rapazes, despertando, viram deserto o catre do velho pai, e logo, tomados de apreensões, ergueram-se:

— Onde terá ido tão cedo? Que terá ido fazer?

— É a loucura d velhice que assim o faz andar desatinadamente, — respondeu o mais velho à pergunta do mais moço.

— Melhor é que o vamos buscar ao campo e que o tenhamos sempre junto de nós, vigiado como uma criança.

— Sim, vamos buscá-lo ao campo.

E foram. Não andaram muito, porque logo ouviram a voz de Serapião que cantava, e a pancada seca de uma enxada batendo a terra.

— Trabalha! — exclamou maravilhado um dos rapazes.

— Trabalha! disseram todos; e embrenharam-se.

Efetivamente o velho trabalhava, capinando, eito acima, uma rua de café.

O suor escorria-lhe da fronte, onde os cabelos formavam pastas, o suor pingava-lhe da barba; e o peito, que a camisa entreaberta desnudava, reluzia úmido. Vendo-o, os filhos bradaram:

— Oh! Que fazes aí, pai?

O velho risonho, com os pequeninos olhos iluminados de um fulgor estranho, voltou-se esfregando as mãos, com o cabo da enxada encostado ao peito:

 

— Que faço? Pois não vedes? Luto, a ver se consigo despir dos matos e das parasitas os cafeeiros para que se cumpra a promessa da iara do rio. Ao menos morrerei tranqüilo, se vos deixar o necessário para que não tenhais uma velhice triste como a que eu arrasto!

— E tu, só, queres dar cabo de tanto?

— Eu só, já que me deixais só. Mais depressa viria o tesouro às nossas mãos, se fôssemos todos a trabalhar; mais depressa viria a fartura e a paz; assim virá mais vagarosamente, mas que me dê forças o Senhor e saúde, e eu não dormirei contente enquanto não tiver da iara o melhor da promessa.

Ouvindo-o falar assim, com tão segura convicção, um dos rapazes disse ao outro, em segredo:

— Quem sabe se o que julgamos alucinação de velhice não é verdade? Não é mais prudente nem mais avisado do que ele o mais notável dos nossos homens conterrâneos; ninguém o apanhou jamais em falsidade; todos lhe pedem conselhos, todos o querem ouvir; e tal não aconteceria, se lhe percebessem desatinos, vindos da razão enfraquecida. Quem sabe se não é verdade?

— Sim, quem sabe?

— Falam tanto de encantamentos! Melhor seria tentarmos. Juntos, em pouco tempo, daremos conta da tarefa, e talvez apareçam nos cafeeiros as anunciadas flores de ouro. E que regalo, se encontrarmos a riqueza da tribo!

— Melhor do que o fazendeiro mais rico...

— Muito melhor, por certo!

Já o velho tornara à terra, cantando, quando os rapazes, concertados, desceram à casa, rebuscando entre os ferros esquecidos os melhores; e tomando deles, meteram-se pelos matos densos. À tarde caía o crepúsculo nevoento, e o velho descia a caminho da casa, quando viu, com alegre surpresa, os filhos em turma, trabalhando. Deteve-se; e a emoção foi tão forte em sua alma, que as lágrimas saltavam violentas dos olhos do sertanejo; e quem por perto dele passasse ouviria o que disse comovidamente: —“Bendita iara! Bendita iara!” E foi-se cantarolando, risonho e feliz, com a enxada no ombro.

No dia seguinte, ao luzir d’alva, Serapião erguia-se do catre, quando o mais velho dos filhos procurou-o:

— Fica! — lhe disse; — não é preciso que venhas ao campo. Se for verdade o que te disse a iara, dentro em pouco verás limpos de toda a erva os cafeeiros. Somos mais robustos do que tu; fica e descansa.

E o velho disse:

— Ide, e que Deus abençoe o vosso trabalho; eu fico, e para que a inércia não me amolente o corpo e o espírito, trazendo a preguiça e os pensamentos tristes, vou distrair-me reparando os estragos que o tempo tem feito na cabana que nos abriga. De volta, à tarde, trazei o sapé para substituir o colmo que mal nos resguarda das chuvas e eu mesmo cobrirei a cabana. É justo que quem trabalha durma tranqüilamente, sem que as goteiras o façam andar com o leito dum para outro sítio. Ide! E que Deus abençoe o vosso trabalho!

E os rapazes partiram.

O velho ficou, e, conforme a promessa que fizera, pôs-se a retocar os muros abertos em frinchas; e á noitinha, quando os filhos entraram, mostrou-lhes o trabalho que havia feito, e eles entregaram-lhe os feixes de sapé que haviam cortado.; e sentaram-se à mesa, comendo com apetite e satisfação. O velho, sempre ao fim do repasto, dizia à maneira de oração: “A iara deve estar satisfeita; dentro em pouco terá perdido o seu encanto”.

E assim passou o ano.

Os rapazes, por vezes, desanimavam; mas sempre havia um, mais ambicioso, que acoroçoava os outros:

— Que! Pois agora que vai em tão bom seguimento o trabalho, é que vocês querem deixá-lo? Vamos! Quem sabe se já não estão abotoando as flores de ouro?

E, assim excitados, tornavam todos à terra.

E veio o tempo das colheitas.

O milho e as canas faziam um extenso mar dourado, ao sol; os arrozais alastravam os alagadiços com um fino tapete de veludo verde; o mandiocal cobria com a sua rama as encostas outrora secas; o feijão, enroscando-se nos pés de milho, subia tanto, que se confundia com as espigas louras; e tudo prometia uma colheita abundante.

Os rapazes suspiravam: “Estavam carregados de flores os cafeeiros... ah! Mas não eram de ouro as flores. De que lhes serviria tanto esforço, ao sol?

— Perseverança, meus filhos! Perseverança! — as flores de ouro hão de vir, as iaras não mentem. Vamos tratar de recolher os primeiros presentes da terra. E começaram a colher; mas eram em tal abundância os produtos, que os rapazes tiveram necessidade de recorrer aos vizinhos, alugando carros e gado para transportar os frutos; e, como todos viam a prosperidade do sítio, ninguém recusou o que pediam os rapazes, e mais ainda lhes ofereciam.

Gente supersticiosa, porque desconhecia o caso do tesouro, começou a murmurar: — que ali andava a mão do diabo! Terras, ontem tomadas pelo mato, como podiam estar assim tão florescentes?

E fugiam do sítio os supersticiosos, inventando lendas tenebrosas.

Vendida grande parte da colheita, com o produto os rapazes desceram à feira, e comprando gado, aves, e novos instrumentos; sortiram a despensa, encheram os paióis, e tiveram abundância e alegria. O velho, contente, saía a tarde para o terreiro, e chorava lágrimas de alegria, vendo que se ia lentamente realizando a promessa da mãe d’água[iii]. Já se ouvia o mugido dos bois nos campos dantes tão silenciosos; e todas as manhãs, a preta saía com uma grande malga para ordenhar as vacas; as ovelhas balavam, galinhas cacarejavam; nas cevas, grandes porcos roncavam, e já as manhãs não passavam sem o canto alegre dos galos: agora eram seis a cantar no poleiro.

Mais outro ano passou, mais farto do que o primeiro; os filhos, porém, apesar de verem as árvores vergadas ao peso dos frutos, suspiravam: “por que não vinham aos cafezais as flores de ouro?!”

— “Perseverança, meus filhos; perseverança!dizia o velho. — As flores de ouro hão de vir, as iaras não mentem”.

— E recolhia à grande arca o que os filhos traziam do mercado, onde haviam ido vender os produtos do sítio.

Seis anos depois, já os rapazes tinham desesperado da promessa da iara; mas, como se haviam habituado ao trabalho, saíam todas as manhãs para os campos que eram então os mais belos e os mais férteis da redondeza. O velho enfermou gravemente, sendo levado em braços para o leito.

Os filhos, tristes, cercavam-no; e já a vista se lhe turbava, quando ele acenou tremulamente , chamando para bem perto todos os rapazes, e, sentindo-os junto ao leito, disse:

— Meus filhos, já agora posso falar, dizendo-vos o melhor segredo da iara. Habituaste-vos ao trabalho, e certo estou de que o não trocareis mais nunca pela vida inerte que leváveis. A alegria está conosco, temos a abundância e a paz, nada nos falta. Já não mendigamos o pão com que nos alimentamos, nem a lã com que nos cobrimos; o vento já não zumbe nos quartos da cabana de muros brancos; lá fora o gado procria; já não basta um curral para conter as crias que vão nascendo; as árvores estão carregadas de frutos, e já não andais descalços nem cobertos de andrajos: tendes tudo, e mais ainda: a consideração dos homens, que já não vos apontam  como freqüentadores de estradas, desconfiando de vós se lhes faltava uma ovelha ou um fruto no galho... bem vedes que não vos menti!

O mais moço, porém, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve, vendo que o pai, casado, emudecera:

—Mas os frutos de ouro, meu pai... a promessa da iara?

—Os frutos de ouro? Ah! Os frutos de ouro... eu os fui ajuntando, para fazer-vos a surpresa, e tenho-os ali, naquela velha arca. Ide ver! A chave está comigo, procura-a debaixo do meu travesseiro!

 

 

E o mais moço, ouvindo as palavras do moribundo, procurou a chave; e, achando-a, correu com ela para a grande arca, cercado de todos os irmãos; e, quando abriu, um grande grito saiu de todos os peitos: — Oh!

Estava atopetada de ouro! E os rapazes, mal contendo a emoção, precipitaram-se para junto do leito do moribundo:

—Que fortuna é essa, pai?

E o velho, com a voz enfraquecida, disse:

—É o tesouro da iara que estava escondido na terra!

—E foste tu que o descobristes?

—Eu, não, meus filhos: apontei-vos apenas o caminho! Quem descobriu fostes vós, com o vosso trabalho perserverante; eu acumulei com economia, e agora entrego-vos o que vos pertence. E sabei, filhos meus! Em todo e qualquer ponto da terra há um tesouro escondido, cuja descoberta só é possível fazer-se com o trabalho. Tendes agora abundância e paz; e, se quiserdes aumentar a vossa fortuna, voltai à terra, — que ainda e sempre achareis o que extrair de suas entranhas. Lembrai-vos da iara, lembrai-vos da iara...

E, sem mais dizer, cerrou os olhos docemente, repousando a cabeça no travesseiro.

Estava morto, e sorria.

 


[i] Iara — entidade fabulosa, fada ou sereia, que os sertanejos supõem viver na água dos rios.

[ii] Pajés — sacerdotes, adivinhos e curandeiros dos índios do Brasil.

[iii] Mãe d’água — o mesmo que Iara.

 

 

Sumé                
O "Perna de Pau"