Literatura Infantil (1880-1910)
17. Perna de Pau
Já grisalho, alto e magro, olhos miúdos e negros, mas de um brilho estranho, viam-no todas as manhãs passar à porta do colégio com uma grossa e nodosa bengala.
Conheciam-no pelo toc-toc da perna de pau; e logo, chamando-se uns aos outros, corriam todos os meninos às grades, e, quando o inválido passava, rompiam em assuada: — Oh, perneta!
Ele sorria docemente; os seus olhos bravios, de uma expressão feroz, ameigavam-se; e, longe de agastar-se, tirava o seu grande chapéu de abas largas e fazia uma barretada, não sei se para brincar com os pequenos, se para lhes mostrar os cabelos brancos.
Um dia o diretor chamou-o para lhe fazer presente de umas roupas, de sorte que, à hora do recreio, quando os meninos saíram para o pátio, viram com surpresa o Perna de Pau sentado tranqüilamente em um dos bancos.
Receosos murmuraram: — Vem dar parte! Vem queixar-se ao diretor! — mas o bom homem sorria com tanta meiguice, que um dos pequenos ousou acudir o seu chamado.
—Venha cá, meu menino! Tem medo de mim?
—Não! — disse com orgulho o pequeno.
—Então venha até cá... eu gosto muito de crianças.
O menino adiantou-se, e os outros, vendo a bondade do inválido, acercaram-se dele, e o bom homem ficou numa roda de crianças, feliz, sorrindo. Um dos pequenos, curioso, perguntou-lhe então ingenuamente:
—Que é da tua perna, homem?
—A minha perna, meu menino? A minha perna um bicho mau levou!
A estas palavras a curiosidade dilatou todas as pupilas, e os meninos, esquecendo o recreio, chegaram-se mais ao homem, perguntando:
—Que bicho? Como foi? Conta...
—Ah! Meus meninos... eu era um rapaz robusto; vivia na minha terra descansadamente, quando correu a notícia de uma fera, que deitava fogo pela boca, queimando as cabanas e as plantações dos pobres, andava se arrastando pela vizinhança da nossa terra.
Diziam que ela matava velhos e crianças. Muitos moços da minha idade partiram para combater a fera que lhes ameaçava a casa e a vida dos velhos pais; eu também tinha minha mãe, uma velhinha, e quando me disseram que o animal podia matá-la, não pensei mais, meus meninos, tomei de uma arma e parti num bando.
Todos quantos nos viam passar abençoavam-nos: um, porque nós íamos defender a sua casa; a mãe, porque íamos evitar que a fera lhe viesse arrancar o filho dos braços, o enfermo, porque não consentiríamos que fosse maltratado. Os velhos mostravam-nos os cabelos brancos, as donzelas atiravam-nos flores, e nós seguíamos, levando todas essas lembranças num registro, que um dos nossos conduzia, para que sempre lembrássemos do que viríamos e ouviríamos.
E chegamos ao sítio em que a fera errava. Ah! Meus meninos! Quanto mal ela já havia feito! Quanta criancinha órfã, quanta cabana reduzida a cinzas, quantos campos devastados! Felizmente, encontramo-la e o combate travou-se.
Muitos dos meus companheiros lá ficaram, devorados pelo dragão terrível; eu, mais feliz, apenas perdi uma perna: e não me arrependo, nem lastimo a dor que sofri, porque, de volta à casa, encontrei minha mãe fiando, e vi minha terra tranqüila e farta, todas as mães contentes, e os velhos respeitados.
—Que seria de vossa mães, meus meninos? Talvez tivessem sido vítimas como outras foram...
—E que bicho era? Perguntou o pequeno curioso.
— A guerra, meu menino! — disse o inválido — Foi na guerra que deixei a minha perna, e não me arrependo: fiz o meu dever, defendendo a minha Pátria, e, quando voltei com peito coberto de medalhas, ainda achei minha velha mãe que me abençoou. Hoje estou velho e doente, e os meninos riem-se de mim...
—Não riremos mais! — disse um pequeno com os olhos rasos d’água; e atirando-se ao pescoço do velho soldado, pôs-se a dizer, comovido:
—“Não riremos mais! Não riremos mais!” — e o Perna de Pau, no meio das crianças que procuravam abraçá-lo, rindo, mas com duas lágrimas nos olhos, dizia:
—Ah! Meus meninos, assim dão cabo de mim! — e todos festejavam o inválido, prometiam-lhe presentes, abraçavam-no.
Felizmente pôs termo ao assalto de ternura a sineta, chamando para a aula...