IMAGENS DE TOMÁS ANTONIO GONZAGA
NO SÉCULO XIX
 

Márcia de Paula Gregorio Razzini
é doutora em 
Teoria Literária no IEL - UNICAMP

1- CÉSAR, 
Guilhermino
Historiadores e
Críticos do 

Romantismo.
São Paulo,
EDUSP, 

1978, p. 2-26.

 

Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810) nasceu na cidade do Porto, entretanto houve um esforço dos homens de letras em criar discursos que o naturalizassem brasileiro. 

Com informações de histórias literárias, antologias e compêndios escolares do século XIX, apresentados a seguir cronologicamente, é possível construir vários perfis de Gonzaga: o de herói romântico, o de herói patriota, o de escritor desditoso e principalmente autor de sucesso. Muito rara, mas há também a versão de traidor, além da presença inexpressiva de Gonzaga na famosa seleta escolar de Fausto Barreto e Carlos de Laet, a Antologia Nacional

Bouterwek (1805) e Sismondi (1813) omitem Gonzaga em suas histórias literárias, só citam Antonio José e Cláudio Manuel da Costa, sendo que Sismondi inclui também Silva Alvarenga1

É só no Résumé de l'Histoire Littéraire du Brésil (1826) de Ferdinand Denis que Gonzaga passa a figurar como o cantor "desditoso" de Marília de Dirceu, atraso considerável quando observamos que suas liras já tinham ultrapassado uma dúzia de edições desde 1792. (Veja quadro das edições) 

2- Idem, ibidem,
p. 65-69.
3- Idem, ibidem,
p. 91.

Denis ressalta a popularidade oral das liras no Brasil e cita uma tradução em francês, atribuindo seu sucesso ao amor desditoso do poeta, sempre relacionando a obra de Gonzaga com sua biografia. Denis faz uma leitura romântica das liras de Gonzaga, prefere a segunda parte de sua obra por achar que "o autor escreveu-a para iludir os desgostos da prisão", e reprova seu gosto arcádico pela mitologia e pela poesia pastoril. 

Leitor crédulo, Denis considera Gonzaga inocente da conjura mineira, dando início também à romantização de sua biografia 2

Almeida Garrett em seu Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa (1826), dedica a Gonzaga um parágrafo onde comenta a celebridade de seu amor por Marília e o sucesso de público de suas liras. Entretanto gasta mais linhas falando sobre como seria mais interessante a pintura de Gonzaga se ele tivesse usado a natureza brasileira ao invés da arcádica européia 3

Enquanto Denis está preocupado com a biografia romântica de Gonzaga, Garrett o cita mais como pretexto para difundir as próprias crenças estilísticas. A partir dos historiadores brasileiros a definição da nacionalidade de Gonzaga torna-se assunto de muita discussão e pesquisa, pois já não se tratava de bosquejar ou resumir nossa literatura, mas sim de reunir o maior número possível de obras e autores brasileiros em parnasos e florilégios, formando o cânon. E apesar das dúvidas, é claro que os historiadores nacionais juravam que Gonzaga era brasileiro. 

4- SILVA,
João 
Manuel
Pereira da.
Parnaso Brasileiro

Rio de Janeiro,
Laemmert, 1843,
 
vol. 1, p. 41. 

João Manuel Pereira da Silva inclui 14 liras de Gonzaga no primeiro volume de seu Parnaso Brasileiro (1843). Sobre a nacionalidade de Gonzaga ele comenta em nota de rodapé: 

Temos em nossas mãos este processo, e pelos interrogatórios nele feitos aos réus, se conhece, segundo o próprio dito de Gonzaga, que ele nascera em Pernambuco em 1747. Em tempo competente, quando publicarmos o trabalho que temos entre mãos, acerca deste poeta, entraremos em mais pormenores, e provaremos que são inteiramente infundadas as pretensões modernas daqueles, que querem fazer acreditar haver ele nascido em Lisboa, quando sempre conhecido foi como Pernambucano. 4 
 
5- Idem, ibidem,
p. 43. 

Pereira da Silva constrói no Parnaso um duplo perfil para Gonzaga. Um, suave dos dias felizes; e outro, um Gonzaga sombrio depois da prisão. Com a consciência de quem constrói o panteão literário nacional, o compilador do Parnaso acrescenta: 

Gonzaga é sem dúvida um dos maiores poetas brasileiros, e cada vez mais, ao passo que decorrem os anos, vão crescendo seu renome e sua glória. 5 
 
6- Idem, Plutarco Brasileiro.
Rio de Janeiro,
Laemmert, 1847,
vol. I, p. 177.

O mesmo Pereira da Silva apresenta em outro livro, o Plutarco Brasileiro, de 1847, um Gonzaga poeta e herói brasileiro, apesar da informação fornecida na matrícula da Universidade de Coimbra, de que nascera na cidade do Porto. O principal motivo em considerá-lo "nosso" é sua participação na Inconfidência, seguido de exemplos parecidos na França e em Portugal: 

Que importa pois que um acaso, e puro acaso, o fizesse nascer em Portugal? A sua glória é glória do Brasil, porque foi o Brasil terra de seu pai; porque no Brasil viveu Tomás Antonio Gonzaga sua infância, e quase toda a sua vida; e porque pelo Brasil padeceu, e penou quando se ligou com outros Brasileiros ansiosos de libertarem sua pátria do jugo português, e de a delararem independente. Não nasceram os dois Cheniers em Constantinopla, e a França se não gloría com seus nomes, por que fôra seu pai Francês? - A luz do dia não apareceu a Benjamin Constant na Suissa, e não entra no Panteon dos escritores franceses? O duque de Palmela, diplomata e estadista reputado de Portugal, não é natural da cidade de Turim? 6 
 

 

Em 1849 Francisco Adolfo de Varnhagen publica a biografia de Gonzaga na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (tomo 12, p. 120-136), considerando-o brasileiro. O Instituto Histórico, apadrinhado de D. Pedro II, era de certa forma responsável pelo discurso historiográfico oficial do Império. Em 1850, na mesma revista (tomo 13, p. 405), Varnhagen faz um aditamento à biografia de Gonzaga, acusando-o de perjuro em razão do "aparecimento dos papéis de justificação de solteiro, feita por Gonzaga, quando quis casar-se em Moçambique": 

Pede o amor à verdade, com que sempre escrevemos, que nos aproveitemos desta primeira ocasião que se nos oferece para fazer um aditamento à biografia do autor da Marilia de Dirceu, por nós escrita, e publicada no precedente tomo desta Revista (pag. 120 e segs). Definitivamente Gonzaga nascera no Porto, e aí fôra batizado. Em Portugal começou a carreira da magistratura, seguindo, como juiz de fora, em três diferentes terras, antes de passar a Vila Rica. Assim a estada na Bahia foi naturalmente quando menino, e antes de ir à Coimbra a estudar. Em Moçambique veio a casar com a mulher que aí o tratara, e conseguira dominá-lo. Fim em verdade prosaico teve pois o poeta Dirceu, o fementido amante da mineira Marília. [grifo meu]  
 

A quebra de encanto de Varnhagen em torno de Gonzaga parece ser menos de apego à verdade do que do fato de não ser mais necessário cuidar da reputação de um poeta que afinal de contas não era mais brasileiro.

7- VARNHAGEN, Francisco A. de. Florilégio da Poesia Brasileira. Lisboa, Imprensa Nacional, 1850,  vol. I, p. 36

O fato é que a biografia da Revista do Instituto Histórico foi reproduzida no Florilégio da Poesia Brasileira de 1850, entretanto sem o aditamento ou menção de perjuro. Varnhagen faz apenas uma ressalva na introdução do Florilégio, em nota de rodapé, que incluira Gonzaga por desconhecer que fosse natural da cidade do Porto, uma vez que pretendia reunir em sua obra só autores brasileiros. 7 

Tal justificativa, apesar de parecer inverossímil pela informação dada em 1847 por Pereira da Silva em seu Parnaso, torna-se plausível quando Varnhagen diz na Advertência do volume II do Florilégio que sua obra permaneceu no prelo em Lisboa desde final de 1846. Seja como for, Varnhagen omite no seu rodapé a acusação de perjuro, feita na Revista do Instituto Histórico.

8-Idem, ibidem, 
vol. II, p. 60. 

Para o biógrafo Varnhagen, Gonzaga é o poeta que "tira partido" dos acontecimentos pessoais, transformando-os em versos "à maneira de Petrarca", sendo a principal característica da Marília de Dirceu sua popularidade, com várias traduções. Ele comenta que com exceção de Camões nenhuma obra em português teve tantas edições no século XIX, paralelo editorial que será repetido por outros críticos. 

Gonzaga aparece no segundo tomo do Florilégio, depois de Alvarenga Peixoto, com 11 liras selecionadas. 

Se por um lado Varnhagen tece a biografia de Gonzaga sobretudo com base nas informações contidas em suas liras, ressaltando Dirceu, seu amor por Marília e a dor da separação, por outro expõe o problema de autoria da terceira parte das liras e demonstra pesquisa na nota de rodapé que fala das inúmeras edições de Marília de Dirceu

Varnhagen aponta a influência de Anacreonte nas 37 odes da primeira parte, chegando a citar trechos do autor grego em rodapé. A originalidade, segundo ele, está na segunda parte onde o autor canta sua desgraça. Novamente o historiador recorre à obra para dar conta da biografia, só que desta vez, como uma típica leitora de romances açucarados do século XIX, crê piamente na versão do poeta: 
 

A leitura desta [2a. parte] pode familiarizar-nos mais com os sentimentos do poeta na prisão do que o faria talvez uma auto-biografia escrita depois. [...] Assim o acabamos de executar, e tal é a comoção de que nos sentimos ainda possuidos que nos treme a mão ao escrever estas linhas. Estamos profundamente convencidos de que Gonzaga foi mártir da prognosticada sedição, e que até era a ela inteiramente alheio. 8 
 
9- SILVA, João  M. Pereira da. 
Os Varões Ilustres do Brasil Durante dos Tempos Coloniais. 
Paris, Livr. de
A. 
Franck e
Livr. de
Guillaumin et Ca., 

na Imprensa de
Henrique Plon,
impressor do
Imperador, 1858,

2v.. 

Em 1858 Pereira da Silva expurga a biografia de Gonzaga na refusão do Plutarco Brasileiro (1847) que ele chamou de Os Varões Ilustres do Brasil Durante os Tempos Coloniais 9 (reeditado em 1868). Toda a primeira parte (9 páginas) do capítulo de Gonzaga no Plutarco, que fala da conjuração mineira, é suprimida em Os Varões Ilustres. O restante é mantido, inclusive a passagem anteriormente citada, onde defende a brasilidade do poeta. 

A inovação dos Varões Ilustres fica por conta da inclusão em nota de rodapé (nota no. 2), da reprodução do documento onde Gonzaga ao casar-se em Moçambique jura aos Santos Evangelhos "que nunca dera palavra de casamento a pessoa alguma". Ora, todo leitor de Marília de Dirceu sabia que ele estava de casamento marcado com a mineira Maria Dorotéia.

10-Idem, ibidem, 
p. 52. 

Apesar de Pereira da Silva enfatizar a tese da loucura do poeta no exílio onde: 

de quando em quando, com a mudança das estações, caia em acessos de furia, chorava, gritava, maltratava-se, e feria-se com as unhas e com os dentes... 
 

a reprodução deste documento flagrava Gonzaga cometendo perjuro e demolia sua imagem de herói romântico fiel. 

11- Idem, ibidem, 
2a. ed.,
Rio de 
Janeiro,
Garnier, 1868, 2v.
.

Tal documento tão comprometedor, também conhecido de Varnhagen, como vimos anteriormente, que alude a ele no Aditamento da biografia de Gonzaga em 1850 na Revista do Instituto Histórico, não é incluído na edição seguinte de Os Varões Ilustres 11 (1868) . E, salvo sua menção no compêndio de Camilo Castelo Branco, não há referência posterior, apesar de afirmarem que Gonzaga se casara no exílio.

12- PINHEIRO, 
Cônego Joaquim
C. Fernandes. 

Curso Elementar 

de Literatura Nacional. Rio de Janeiro, Garnier, 1862, p. 329-336.

Em 1862 o Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro publica seu Curso Elementar de Literatura Nacional, para servir de texto básico de suas aulas de retórica, poética e literatura nacional no Colégio Pedro II. Entenda-se por nacional a literatura portuguesa e brasileira, num curso que abrange desde o século XII até o século XIX. 

O Gonzaga do Curso Elementar é farto, tem sete páginas 12. Informa aos pupilos que ele é português, natural do Porto, que passou a infância na Bahia, formou-se em leis em Coimbra, foi ouvidor de Vila Rica e escreveu Marília de Dirceu, a lírica mais popular do Brasil. 

13- Entretanto, a brasilidade de  Gonzaga para o Cônego Fernandes  Pinheiro tem suas controvérsias, pois  quando publicou  em 1864 um outro  livro didático,  chamado Meandro Poético, consagrado apenas a poetas brasileiros, ele não inclui Gonzaga. 

Cita Pereira da Silva, Varnhagen e Garrett, concordando com o último relativamente à ausência em seus versos de elementos nacionais. Critica também a metrificação, apesar de reconhecer que desta advém sua popularidade. Prefere as liras da segunda parte por serem superiores "pois julgamos descobrir no gênio de Gonzaga certo pendor melancólico". 

O último parágrafo retoma a questão da nacionalidade de Gonzaga, considerando-o poeta brasileiro apesar de nascido em Portugal, lançando mão dos mesmos argumentos de Pereira da Silva. 

Entretanto, a brasilidade de Gonzaga para o Cônego Fernandes Pinheiro tem suas controvérsias, pois quando publicou em 1864 um outro livro didático, chamado Meandro Poético, consagrado apenas a poetas brasileiros, ele não inclui Gonzaga. 13

14-CESAR,
Guilhermino. 

Op. cit., p. 162-163.

Sob encomenda de D. Pedro II, o austríaco Ferdinand Wolf publica em 1863 seu Le Brésil Littéraire. Wolf, assim como Denis, Pereira da Silva, Varnhagen e Fernandes Pinheiro, também destaca a celebração de Marília como a principal característica de Gonzaga. Menciona a popularidade de suas liras, comenta o assunto da primeira e da segunda parte da obra, e reconhece, da mesma forma que Varnhagen, a influência de Petrarca e Anacreonte. 14

15-A primeira  parte foi publicada  no ano anterior,  em 1875, por José Maria de Andrade Ferreira.

Em 1876, no mesmo ano que Castro Alves publicou seu drama enaltecedor Gonzaga ou a Revolução de Minas, Camilo Castelo Branco publica a segunda parte de um livro didático intitulado Curso de Literatura Portuguesa 15. 

Na parte do século XVIII reservada para os Poetas da Colonia Brasileira está Tomás Antonio Gonzaga, que segundo a informação contraditória de Camilo, era oriundo do Rio de Janeiro, mas nasceu na cidade do Porto em 1744. 

Sem o compromisso de ter que zelar pela reputação de um poeta nacional, ou até tomando as dores da metrópole contra os traidores, Camilo Castelo Branco critica mordazmente Gonzaga e os poetas da Inconfidência Mineira, chamando-os de covardes "todos deploráveis na sua grande miséria".

16- BRANCO,  Camilo Castelo.
Curso de Literatura Portuguesa. Lisboa, Liv. Ed. de Mattos Moreira & Cia., 1876, p. 250.

Ele lembra que o cantor de Marília casara-se em Moçambique, declarando ao tribunal eclesiástico que nunca havia prometido casamento a outra. Camilo provavelmente leu a 1a. edição de Os Varões Ilustres do Brasil Durante os Tempos Coloniais (1858) de Pereira da Silva, onde foi reproduzida a declaração de casamento de Gonzaga. Entretanto, Camilo é o único que menciona este documento. 

Ele reconhece o sucesso editorial das liras de Gonzaga, mas reprova sua falta de originalidade e monotonia: 
 

As liricas de Gonzaga, coligidas no livro intitulado Marilia de Dirceu, multiplicadas em sucessivas edições, tem o mimo e graça vulgares no genero, com os infados congeneres da monotonia. Originalidade, como alguns apreciadores lhes inculcam, negam-lha os que tem alguma lição de Anacreonte, Teócrito, Propercio, Horácio e Moscho. Desligada a poesia amorosa de Gonzaga da realidade inspirativa, e dos dezessete anos atormentados que o poeta viveu para além desses malogrados amores, a memória de Dirceu não seria mais duradoura que a de seus cooperadores na implantação da república brasileira. Não há matiz algum americano nesses poemetos de uma subjetividade apagada de ideal. A rima é, quanto possível, fácil e da que primeiro acode nas trovas improvisadas. De tanta moita de flores não se evola um perfume que nos chame a alma cativa às melancolias da saudade. Toda aquela meiguice madrigalesca de Gonzaga é o mais comezinho teor de poetar, e por isso mesmo um ramalhete seco de frivolidades que só podem reverdecer e subsistir favorecidas pela preocupação e pela toada que de oitiva vai derivando de pais a filhos. 16 
 

Camilo, na mesma linha de Garrett, critica a falta de americanismo nas poesias de Gonzaga. Critica também os aspectos que parecem os responsáveis de seu sucesso popular: a rima fácil, o teor comezinho de poetar e o costume popular dos brasileiros de repetir as liras oralmente. 

17-ROMERO, S.. História da Literatura  Brasileira. 7a. ed.,
Rio de Janeiro, J. Olympio/ INL-MEC, 1980, v. 2, p. 458.

O Gonzaga escolar pintado por Camilo Castelo Branco é um anti-herói romântico, um impostor. Doze anos depois de Camilo, em 1888, é publicada a História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, marco de nossa historiografia literária. 

O Gonzaga de Silvio Romero é menos poeta e mais herói nacional. Apesar de preferir as liras da segunda parte onde considera Gonzaga mais talentoso, critica o lirismo mineiro do século XVIII de certa falta de variedade, que em Gonzaga se traduz em um volume inteiro de queixas à sua Marília. Ignorando as informações e documentos levantados pelos historiadores precedentes Silvio Romero não hesita em considerar Gonzaga brasileiro: 
 

"Tomás Antonio Gonzaga é o mais célebre dos poetas mineiros. Dizem que nasceu em Portugal; o que não é de todo incontroverso; mas seus pais eram brasileiros, sua infância passou-se na Bahia; sua idade adulta e viril em Minas; ele é pois um dos nossos pela vida e pelo destino. É uma das mais completas encarnações do lirismo amoroso no Brasil." 17 
 
18-Idem, ibidem,  p. 467.

Sem compromisso com a agonizante monarquia brasileira, Silvio Romero se preocupa mais em construir um Gonzaga herói revolucionário do que espanar a poeira do pedestal que ele ocupa no panteão literário nacional. 

"Gonzaga nos depoimentos de seus colegas de infortúnio foi mais ou menos poupado, e ele próprio negou até a última que tivesse tomado parte na conjuração; assim o declarou aos juízes e em suas poesias a Marília. Por tais motivos Varnhagen [veja citação anterior à p. 7] é levado a crer que ele fosse estranho à Inconfidência. Não é esta a verdade que sai dos fatos; o insigne poeta não precisa dessa justificativa póstuma, falsa e insidiosa. Não há razões sérias para arredar de sua fronte a auréola de patriota santificado pelo sofrimento. Sim; o poeta teve o sonho revolucionário; este grande título deve religiosamente ser-lhe conservado pela história. Não se busquem para ele reabilitações falaciosas, inspiradas por meras adulações monárquicas. Dirceu quis o levante, quis a república, quis a independência. É por isso que ele tem sido e continuará a ser um dos guias imortais do povo brasileiro." 18 
 

 

É interessante como todos historiadores simpatizantes de Gonzaga são profundamente influenciados pelas supostas informações biográficas que estão em sua obra e, ao mesmo tempo, não reconhecem documentos biográficos tidos como autênticos, como é o caso da declaração de casamento de Gonzaga em Moçambique, pois este dado desmente a versão da lírica gonzagueana: a de herói amoroso fiel. 

Assim, como leitores crédulos e românticos, seus simpatizantes apreciam mais a segunda parte das liras, onde pela boca de Dirceu, Gonzaga se defende do processo, da prisão e da morte, jurando amor eterno à sua amada. 

Passemos agora para a Antologia Nacional (1895) de Fausto Barreto e Carlos de Laet, adotada oficialmente em colégios tradicionais do Rio de Janeiro como o Colégio Pedro II, o Colégio Militar e a Escola Normal, ela teve 43 edições, sendo a última em 1969. 

19- BARRETO, 
Fausto e
LAET, Carlos de. 
Antologia 
Nacional.
6a. ed. 

Rio de Janeiro,
Francisco Alves,
1913, p. 481-482.

O Gonzaga didático da Antologia Nacional é surpreendentemente suscinto, quase inexpressivo, nem herói romântico amoroso nem herói patriota. As informações biográficas restringem-se ao indispensável: 

Tomás Antonio Gonzaga (Porto, 1747-1809) era formado em direito e ocupava o lugar de ouvidor da comarca de vila rica, em Minas Gerais, quando, envolvido na conjuração da Incondidência, foi preso e degredado para a África, onde morreu. Deram-lhe celebridade literária as suas líricas, endereçadas à Marília, isto é, à D. Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Brandão, com quem tinha ajustado casamento na época de sua desdita. 19 
 
20- Na primeira edição de Marília  de Dirceu (1792) o número desta Lira  é XXVII e na edição  de Rodrigues Lapa (1957) o número da Lira é XLV.

Na amostragem da obra apenas uma lira incompleta, a Lira XXVIII 20, que começa pelo verso: Alexandre, Marília, qual o rio, onde o autor nas três primeiras oitavas critica a relação entre herói e conquistador militar, chamando Alexandre de pirata e salteador e César de traidor. 

Na quarta oitava Dirceu descreve a Marília sua concepção de herói: Consiste o ser herói em viver justo, uma espécie de herói iluminado pela razão que faz apologia da justiça. Até aqui esta Lira parece perfeita para passar a imagem do herói cortês, civilizado, imagem tão cara para a formação do gentleman do século XIX, avesso às armas e à violência. 

Assim, as três últimas estrofes, onde o poeta se concentra no ser amado de forma sensual, não aparecem. Elas foram cortadas na Antologia Nacional, como já haviam sido suprimidas em compêndios anteriores: na Seleção Literária (1887) de Fausto Barreto e Vicente de Souza, que deu origem à Antologia Nacional, e no Curso Elementar de Literatura Nacional (1862) do Cônego Fernandes Pinheiro, livro comentado aqui antes. 

 

A presença quase evanescente de Gonzaga na Antologia Nacional pode ter sido resultado dos seguintes fatores. Primeiro, era assim que ele aparecia na Seleção Literária, manual que deu origem à Antologia; segundo, Gonzaga era poeta do século XVIII, período menos importante na Antologia do que o século XIX; terceiro, porque a popularidade de sua lírica já estava em declínio (veja quadro das edições de Marília de Dirceu); e quarto, porque a lírica amorosa sensual, muito presente na obra de Gonzaga, não era propriamente o assunto predileto de compiladores escolares, obrigando-os à censura. 

Por outro lado, como vimos, o grande prestígio de Gonzaga e de sua Marília de Dirceu nas obras anteriores à Antologia Nacional justificariam a inclusão de mais liras. 

A presença fosca de Gonzaga na Antologia Nacional indica uma certa rejeição do autor na escola se considerarmos a importância pedagógica que esta seleta vai adquirindo nas sucessivas edições. Esta rejeição também reforça a preferência pelos autores do século XIX, especialmente do Romantismo que era avesso ao Arcadismo, mas sobretudo, ela indica um desvio importante do cânon estabelecido ao longo do século XIX pela crítica e história literária. 
 
 

 

TOMÁS ANTONIO GONZAGA (1744-1810) 

Edições de Marília de Dirceu 

1792 - (Parte I) Lisboa, Tipografia Nunesiana 

1799 - (Partes I e II) Lisboa, Oficina Nunesiana 

1800 - (Parte III) apócrifa, Lisboa, Oficina de Bulhões 

1802 - (Partes I e II) Lisboa, Oficina Nunesiana 

1803 - (Parte I) Lisboa, Of. de Antonio R. Galhardo 

1804 - (Parte II) Lisboa, Tipografia Lacerdina 

1810 - (Partes I-II-III), Rio de Janeiro, Imprensa Régia 

1811 - (Partes I e II), Lisboa, Tipografia Lacerdina 

1812 - (Parte III), Lisboa, Imprensa Régia 

1812 - (Parte I), Bahia, Tip.Manoel Antonio da Silva Serva 

1813 - (Partes II e III), Bahia, Tip. Manoel A. Silva Serva 

1817 - (Partes I e II), Lisboa, Imprensa Régia 

1819 - (Partes I e II), Lisboa, Tipografia Lacerdina 

1820 - (Parte III), Lisboa, Tipografia Rollandiana 

1823 - (Partes I-II-III), Lisboa, Impr. João Nunes Esteves 

1824 - (Partes I e II), Lisboa, Tip. J.F.M. de Campos 

1825 - (Partes I-II-III), Lisboa, Impr. João Nunes Esteves 

1825 - (Partes I-II-III), Lisboa, Impr. João Nunes Esteves 

1827 - (Partes I-II-III), Lisboa, Tip. Rollandiana 

1828 - (Partes I-II-III), Lisboa, Impr. João Nunes Esteves 

1835 - (Partes I-II-III), Bahia, Tip. do Diário 

1840 - (Partes I-II-III), Lisboa, Tip. Rollandiana 

1842 - (Partes I-II-III), Pernambuco, Tip. de Santos & Cia. 

1842 - (Partes I-II-III), R.J., Tip. J. J. Barroso e Cia. 

1845 - (Partes I-II-III), R.J., Laemmert, (P. da Silva) 

1855 - (Partes I-II-III), R.J., Tip. de Soares e Irmão 

1862 - (Partes I-II-III), Paris/R.J., Garnier,(J. Norberto) 

1888 - (Partes I-II-III), Lisboa, Casa Ed. David Corazzi 1910 - (Partes I-II-III), R.J., Garnier, (José Veríssimo) 

1937 - Obras completas, Lisboa, Sá Costa, (Rodrigues Lapa) 1942 - Obras completas,São Paulo, Nacional,(Rodrigues Lapa) 
 

Traduções: 

1825 - (Partes I e II), Paris, C.L.F. Panckoucke Editeur, tradução em francês (prosa) de E. De Monglave e P. Chalas. 

1844 - (Partes I e II), Turim, Stamperia Sociale Degli Artisti, tradução em italiano (verso) de Giovenale Vegezzi-Ruscalla. 1844 - (Várias), R.J., Quirini & Fratis, tradução em latim de liras selecionadas (verso) por Castro Lopes. 1887 - (Várias), R.J., Leuzingerius & Filii, 2a. ed. da tradução em latim. 

in MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia Brasileira do Período Colonial. São Paulo, IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.