O cordel das feiras às galerias 1
Luli
Hata
NOTA INTRODUTÓRIA
Este trabalho teve início durante a pesquisa por mim desenvolvida junto à vertente Leituras Populares do Projeto Memória de Leitura, nos anos de 1995 e 1996, intitulada Imagens de Leitura na Literatura de Cordel. O enfoque estava na análise das imagens de leitura impressas nas capas dos folhetos 2 da literatura de cordel nordestina e daquelas sugeridas nos textos poéticos. O trabalho foi concluído, porém, restara uma lacuna a ser preenchida: como se dava a relação entre imagem, texto, formato do material, público consumidor e discurso elaborado em torno do assunto.
O PAPEL DA POESIA
Invariavelmente, todos os trabalhos que tratam da literatura de cordel nordestina fazem referência ao seu aspecto material. O folheto é uma brochura medindo cerca de 11 X 15 cm, com 8, 16, 32, 48 ou 64 páginas, nelas impressa a poesia popular de estrutura definida e temas variados 3, normalmente com capas ilustradas. De fato, um estudo sobre a literatura de cordel não pode negligenciar aspectos referentes à forma de produção e ao ambiente de circulação, já que, de alguma maneira, acabam se refletindo no produto impresso. Por exemplo, o folheto não se destina unicamente à leitura individual e silenciosa, mas à leitura perante um público. Inevitavelmente, traços mnemônicos podem ser detectados na estrutura poética.
Por outro lado, a poesia é considerada um meio de vida, um ramo de atividade profissional, pelos seus produtores e público. Entretanto, é uma atividade diferenciada, já que ser poeta pressupõe um dom, uma capacidade inerente que se descobre num dado momento da vida dos apreciadores da leitura do folheto. Ser poeta também significa ser detentor de sabedoria, o que lhe confere o papel de mediador entre a literatura popular e a erudita, entre os fatos acontecidos e o povo, entre o governo e a população e, especialmente, o de representante de seu público, qualificado como "classe pobre, desprotegida".
Digamos que o matuto não entende, ou está no Mobral. Aí ele pega um folhetim daquele, vai ler. (...) É uma escola prá ele. (...) Principalmente essa classe pobre, desprotegida [...] Então eu acho que, de qualquer maneira, o senhor que trabalha nas letras, o senhor que está escrevendo um livro sobre a sabedoria humana porque isto é sabedoria humana, não é? , Cordel, a literatura de cordel, aí quando escrever vocês toda vida botem uma crasezinha lá numa partezinha no sentido de que a literatura de cordel está ajudando, de que é uma centelha de progresso, é uma integridade do povo, é ajuda aos governos. Porque a gente ajudar o governo não é só pagando os impostos não. 4
Essa condição levar o conhecimento, que significa progresso, à classe pobre é possível graças à distinção que se dá através do dom e do acúmulo de sabedoria,5 embora pertença ao mesmo grupo cultural do matuto. Isto é reconhecido e destacado por ambas as partes.
É também uma atividade ligada à beleza, conformada a um padrão determinado, facilitando a assimilação e compreensão da mensagem, conforme justificam os poetas:
O folheto tem essa doçura do verso. E o povo nordestino se acostumou a ler o verso. Então o livro em prosa mesmo ele não gosta. (...) E nem gosta do jornal, as notícias do jornal. Ele não entende. Porque ele está acostumado a ler rimado, a ler versado, entendeu? Aquela não é boa para ele. O folheto sim, porque o folheto ele lê cantando... 6
Folheto tem desasnado muita gente nesse mundo de meu Deus. A rima estimula o matuto, o povo do sertão. 7
Segundo destaca Mauro Barbosa,
Entrar no ramo de folhetos significa não apenas optar por um meio de vida ligado ao comércio, mas também por uma atividade de conhecimento e ligada à beleza. De um lado fazer folheto é uma atividade instrumental: escrever, publicar, vender, visando a ganhar dinheiro e assegurar e / ou complementar a subsistência. Por outro lado, fazer folheto é cultivar uma sabedoria que preexiste e se conserva. O lado "específico" da mercadoria-folheto, associado a beleza e saber, é, de fato, reiterado e reproduzido pelo comércio, na medida em que coincide com um gosto do público, de um "povo" que gosta do folheto. Depois, será parte do sistema de produção do folheto e especialista nas regras desse gosto. 8
Isto é, o cordel é estruturado em um sistema comercial e de produção poética envolvendo profissionais que lidam com o lado material (responsável pela subsistência), mas que se sustenta em determinados saber e estética.
Autenticidade
É muito comum encontrarmos depoimentos de folheteiros 9 e poetas referindo-se ao seu público como "classe pobre". Da mesma maneira, não são raros os estudos que fazem a mesma referência, porém, enumerando-a como característica básica, bem como sugerindo a baixa qualidade do papel e o uso da técnica xilográfica para ilustração das capas como elementos que legitimam o folheto nordestino. A busca pela expressão autêntica do povo levou à valorização das capas estampadas com xilogravura e foi responsável por abrir as portas de galerias e museus para exposição de folhetos e, principalmente, das gravuras das capas, denominadas "xilogravuras de cordel" ou "gravuras populares".
Durante a década de 1950, pesquisadores entusiastas como Theo Brandão foram responsáveis por divulgá-las como a técnica representativa da expressividade artística popular. Inicialmente publicou o artigo As cheias de Alagoas e a Literatura de Cordel em jornal, em 1949. Nele destacou não só os "méritos como poeta popular", mas a "alta qualidade da xilogravura da capa" 10 do autor do folheto O grande dizastre de Maceió, 11 José Martins dos Santos. Em 1952, durante a IV Semana Nacional de Folclore, organizou uma exposição de xilogravuras, imprimindo em papéis apropriados para exposição as imagens que foram utilizadas em capas de folhetos.
Enquanto crescia a demanda pelas xilogravuras populares, o público tradicional não reconhecia nelas a autenticidade do folheto conhecido. Para o matuto analfabeto, a imagem da capa a que ele se acostumara, reproduzida em clichê de zinco recurso amplamente explorado pelo poeta e editor João Martins de Athayde era a representação gráfica do poema. Chegava a recusar um folheto reimpresso com capa diferente, sendo a xilogravura vista como elemento denunciante de falsificação do poema tradicional, em função do nível de elaboração gráfica que lhe parecia de pouco valor. É o que se pode concluir a partir da declaração de um folheteiro, no ramo desde 1938:
... a capa do folheto tem mais influência se for zincografada. Para os turistas, a gravura de madeira é melhor. Para o pessoal da praça do mercado, eles preferem a gravura de zinco. As novas, eles não gostam muito, porque pensam que é falsificada. Um romance tem que ter presença. Para o folheto de 8 e 16 páginas, com qualquer coisa sai, porque é um folheto barato. Agora, para o matuto que vai dar 5 cruzeiros por um romance, se ele vê um clichê bom na capa, ele não quer nem pensar se aquilo presta.
Eu já avisei a dona Maria José que as gravuras que estão botando naqueles romances vai findar ninguém comprando mais. A não ser turista, porque turista compra. Sendo de zinco ele não quer. De madeira eles querem, porque interessa mais a gravura do que a história. Agora mesmo, rejeitei o romance Rosa Munda e a Morte do Gigante, era uma capa de zinco, mudaram para madeira. Se eu apresentar este romance a qualquer pessoa aqui da praça, eles vão dizer que é falsificado. Que isto não é Rosa Munda! Isto é qualquer coisa por aí! Quem lê folheto é gente quase analfabeta. É um sujeito que está acostumado com aquelas gravuras de Athayde. (...) E a decadência do folheto vem por causa disso. Uma gravura esquisita não fica idêntica ao que era antigamente e torna-se ruim para vender. Pedrinho e Julinha é um folheto que se vendia muito. Mudaram a capa e hoje fica mofando nas prateleiras. Cancão de Fogo tinha um passarinho e um clichê melhor. "Essa capa, isso é Cancão de Fogo renovado, feito por aí". É o que diz o matuto. 12
Percebe-se a existência de uma norma gráfica a ser seguida, além das regras poéticas, e que, segundo a citação, foi estabelecida pelo poeta e editor João Martins de Athayde, proprietário de folhetaria 13 desde 1909. Essa norma atenderia ao gosto do comprador tradicional. As imagens xilográficas (fig. 2 e 3), por representarem uma tentativa de imitar o "clichê bom" (fig. 1), ou seja, uma imagem reproduzida em técnica que apresenta um grau de detalhamento maior, teriam causado ao matuto a impressão de tentativa de falsificação de folheto (fig. 4)(fig. 5) . É esta a explicação que o folheteiro dá a fim de justificar a queda nas vendas.
Ele observa uma constante procura por folhetos com capa de xilogravura por parte de turistas. É sua opinião que essa tendência estaria contribuindo para uma "decadência" que, pode-se presumir, teria duas naturezas: comercial e literária. A xilogravura prejudica o comércio na medida em que o consumidor tradicional deixa de comprar um folheto que pensa ser falsificado. A venda esporádica a turistas, incluindo-se aqui os estudiosos, incentiva apenas a produção de xilogravuras, em detrimento da poesia, já que, segundo alguns poetas, a literatura pouco lhes interessa, "a não ser para pesquisa". 14
Entretanto, o próprio comerciante admite que
Com o tempo, esse pessoal pode se acostumar a comprar folheto, porque esse pessoal que lia folheto, hoje não lê mais não. Hoje quer um livro de bolso ou uma revista qualquer. Hoje quem lê folheto é até censurado, porque isso é um negócio atrasado e ler folheto já era! 15
Esta constatação revela que não é apenas a xilogravura a causa do afastamento do público tradicional de folheto. Parece que há uma crescente diversificação no interesse literário do público, com aumento da procura pelo texto em prosa "esse pessoal que lia folheto, hoje não lê mais não." Para o folheteiro, o problema surge da censura à leitura de algo fora da moda e percebe que não há mais o reconhecimento da beleza e da qualidade da poesia ao especificar a nova leitura procurada de maneira indefinida "um livro de bolso ou uma revista qualquer". 16
Enquanto folheteiros defendem o uso de clichês de zinco na elaboração de capas, tidas como mais "autênticas" do que as realizadas por meio de xilogravuras, estudiosos da cultura popular invertem esta avaliação. Afirma-se, por exemplo, que a "adoção do clichê de zinco na literatura de cordel decretou a morte de um dos únicos artesanatos do mundo o dos gravadores populares do Nordeste brasileiro". 17 Entretanto, enquanto se atestava seu óbito, esse "artesanato do mundo" começava a ganhar espaço em museus e galerias "do mundo", ou melhor, de alguns países europeus e do Sudeste do Brasil. Essa "conquista" representou para muitos poetas a possibilidade de ganhar a vida com as xilogravuras, sem que fosse necessário afastar-se totalmente do cordel.
Importância do elemento visual
A história dos folhetos nordestinos tem início com a sistematização de sua produção através do poeta Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Até onde se sabe, seu mais antigo folheto data de 1893. Se não foi o primeiro a editar, pois é possível que outros tenham publicado suas composições esporadicamente, certamente foi o responsável pela produção intensiva, recorrendo às tipografias de jornal e àquelas que executavam serviços gráficos diversos. Provavelmente a grande variedade de formatos dos folhetos desse autor se deva a esse fator.
O primeiro poeta a se tornar editor estabelecendo gráfica própria foi João Martins de Athayde. A ele são atribuídas muitas das modificações materiais e gráficas do folheto, tais como a padronização do formato, 15 X 10,5cm (com pequena variação), e o uso de imagens, a ponto de ser referência quando o assunto é ilustração:
Quem lê folheto é gente quase analfabeta. É um sujeito que está acostumado com aquelas gravuras de Athayde. 18
A expressão "aquelas gravuras de Athayde" revela que as ilustrações estampadas nas capas dos folhetos editados pelo poeta configuram um padrão de imagem aceito pelo público. O termo "gravura" aparece como sinônimo de estampa, pois o poeta não costumava utilizar a xilogravura, tendo preferência pelos clichês de fotografias e desenhos. Possivelmente, a concentração da produção de folhetos de autores diversos na sua gráfica e a estruturação comercial e profissional por ele empreendida tenham levado o seu trabalho a ser um marco na história editorial da literatura de cordel, especialmente no tocante ao aspecto gráfico. Entretanto, Athayde não foi o primeiro a ilustrar a capa do folheto.
Desde o início, os tipógrafos fizeram uso dos recursos decorativos disponíveis. As primeiras capas não possuíam ilustração, mas eram decoradas com vinhetas. Não se pode afirmar que o poeta dava as diretrizes para a diagramação das capas, já que o trabalho de impressão era encomendado a profissionais. Pode ser que a participação do tipógrafo tenha sido fundamental, porque profissionalmente ele teria a noção de como tornar um trabalho gráfico visualmente agradável, conforme sugere Liêdo Maranhão, ao citar o seguinte trecho de um manual:
A finalidade das orlas é manter a unidade de composição e separá-la de outras partes, quando aparece página juntamente com outros trechos. Focaliza a atenção do leitor na área da página impressa e, como elemento decorativo, acrescenta interesse e atração ao trabalho tipográfico ou do trabalho em torno do qual deve ser dada ênfase. 19
Os primeiros folhetos tiveram suas capas diagramadas com as vinhetas, acima denominadas orlas, em composição com os títulos e informações necessárias. Na capa do folheto As Orphãs do Collegio da Jaqueira no Recife e o Boi Misterioso (continuação) (fig. 6), é possível observar a preocupação em produzir o efeito estético agradável. Os títulos são destacados para se ter conhecimento do seu conteúdo, sem a necessidade de imagens. Os tipos utilizados são diferentes para cada título, deixando claro que se tratam de histórias diferentes. O nome do autor aparece legível, bem como o endereço de venda, ambos em mesmo corpo, porém, tendo como diferenciação o uso exclusivo de caixa alta para o nome e a conjugação de caixa alta e baixa para o endereço, o que dá maior destaque para o primeiro. A conjunção "e" aparece em corpo menor, bem como o termo "continuação", em mesmo tipo, de maneira a não comprometer a clareza das informações. A conjunção aparece para não deixar dúvida de que existem duas histórias diferentes, de maneira bastante sutil. Se os títulos e a conjunção tivessem mesmo corpo e tipo, como acontece ao transcrevê-los neste trabalho, não haveria clareza em relação ao conteúdo do folheto. As Orphãs do Collegio da Jaqueira no Recife e o Boi Misterioso (continuação) parece título de uma obra única onde há personagens femininas (as órfãs) envolvidas com um personagem animal envolto em mistério (o boi). A informação "o autor reserva o direito de propriedade" tem as dimensões suficientes para não provocar alarde e deixar registrado o seu direito. Portanto, o jogo de corpos e tipos diferentes tornam visualmente claras as intenções de não produzir equívoco sobre as informações que estão sendo transmitidas.
As primeiras imagens utilizadas nas capas eram apropriações de ilustrações produzidas para outro fim: anúncio, vinhetas de caracterização humana ou animal, fotografias para cartão-postal e fotografias de cenas de cinema utilizadas nas propagandas. Estampadas nas capas, elas adquirem sentido novo, diverso daquele a que se destinaram: as imagens passam a ter significância de acordo com o vínculo estabelecido com o texto. É o que se verifica em relação às vinhetas da capa do folheto Discussão do autor com uma velha de Sergipe (fig. 7). A figura da mulher é caricatural e veste trajes não usuais para a época. Na presente reprodução é difícil perceber, mas a linha curva que se vê próximo ao queixo é um largo sorriso. Foi uma escolha bastante interessante, pois o folheto trata de um debate entre Leandro Gomes de Barros e uma velha, que quase lhe "quebra o cachaço". Um mediador leva o autor ao encontro de Dona Manhosa, na intenção de "mettel-o / Entre um quente e dois fervendo". 20 Ao ser chamada à "questão mais perigosa", solta "uma risada gostosa", 21 numa prova de que para ela não havia debate que a derrubasse. De fato, Leandro Gomes não resiste e confessa ter sido ela a primeira pessoa a, mais do que silenciá-lo, fazê-lo engasgar. Para o autor, a velha é uma "serpente assanhada", "cascavel", encomendada pelo diabo e, ao final, o próprio. Para o autor, não é uma mulher como outra qualquer e a vinheta escolhida remete até mesmo à idéia de uma feiticeira. Se não fosse o texto, a imagem poderia ser apenas uma cômica vinheta de uma artista circense, ou algo semelhante. A figura que representa o autor parece reverenciar ou olhar curiosamente para a imagem oposta. Contrapondo ao teor do texto, pode-se dizer que o autor está à espreita do que lhe aguarda. Uma segunda imagem (fig. 8) sugere a relação que se estabeleceu entre os dois: a mulher parece ralhar com o autor, que tem seu tamanho diminuído diante da capacidade da adversária. Na capa do exemplar publicado por João Martins de Athayde (fig. 9), o desenho não reforça esta idéia mas tenta retratar uma velha em trajes típicos e o autor conforme seu retrato. Devemos considerar que nem todas as velhinhas usam o mesmo penteado e o mesmo corte de vestido, como sugerem as duas imagens. Pode ser que mulheres repentistas, mesmo as de mais idade, usem chapéu, tenham cabelo solto e vistam calças. Entretanto, a imagem que se associa à palavra "velha" é a de uma senhora magra trajando um vestido, diferentemente de "vovó", que traz à mente uma senhora mais gordinha, com o mesmo vestido e coque.
A partir da década de 1910, passa a ser freqüente o uso de desenhos produzidos especialmente para os folhetos. Provavelmente o aumento do número de profissionais gráficos especializados no Nordeste, clicheristas e desenhistas, explique a possibilidade cada vez maior de aplicar uma ilustração específica criada para o folheto, sem a necessidade de adaptar as figuras disponíveis nas tipografias. Comparando as imagens de duas edições diferentes do folheto A força do Amor, será possível compreender a dimensão da mudança ocorrida com a introdução do desenho. No primeiro exemplar (fig. 10)verifica-se a escolha de uma vinheta com figura de mulher, a representar a personagem principal, Marina. Uma vez que todo o romance se desenvolve em função dela, não seria estranho ilustrar a capa com essa imagem. Uma das leituras possíveis se faz associando-a ao título. A vinheta enaltece a personalidade de Marina, adquirindo um caráter alegórico da força delicada do amor de uma mulher. O ato de aspirar o odor das rosas numa postura delicada remete ao sentimento glorioso da personagem, o amor. Relacionando ao enredo, sabemos que se trata do amor pelo pai e por Alonso. A mulher não sonha, contempla os sentimentos percebidos. Certamente em um anúncio de jornal essas relações não seriam as mesmas. Esta interpretação, entretanto, depende da leitura do título.
A imagem criada para a edição do mesmo romance, publicada por Pedro Batista (fig. 11), remete ao duplo assassinato cometido por Marina no altar, retratando o momento em que o bispo segura seu braço e dá voz de prisão, diante de um público completamente estarrecido. Para o leitor tradicional, muitas vezes analfabeto, a imagem permite o reconhecimento de que aquele folheto traz realmente a história criada por Leandro Gomes de Barros, possibilitando, inclusive, a identificação da temática contida.
A ilustração adquire uma função bastante cara ao comércio de folhetos. A capa do folheto O boi mysterioso, publicado pela Popular Editora em edição completa (fig. 12) traz um desenho que é reproduzido pelo desenhista Antônio Avelino da Costa (fig. 13), um dos que trabalhou para a editora de Athayde. O esquema compositivo não é alterado: homens e animal ocupam as mesmas posições. Esta similaridade garante ao público tradicional a identificação da história conhecida, que se realiza através de uma memória visual. Percebe-se que, de uma edição a outra, o nome do autor é suprimido, dando lugar ao do editor proprietário. Provavelmente, após anos de edição do acervo de Leandro Gomes de Barros pela gráfica de João Martins de Athayde, o público passara a identificar o editor do folheto da autêntica história "do boi misterioso" em detrimento de seu autor, assim como identifica "aquelas gravuras de Athayde". Pode ser que tenha sido um expediente utilizado pelo editor para fixar seu nome enquanto proprietário da obra do famoso poeta, de modo a garantir o seu direito sobre os folhetos editados. É interessante o fato de o desenho da edição da Popular Editora estar impresso em sentido diverso do da leitura do folheto. Não são raros os que possuem a estampa nesse sentido. Pode ser que, em razão de os folhetos não serem expostos ordenadamente, pois muitas vezes são espalhados pelo chão ou amontoados sobre um caixote, a sua visualização fosse possível de diversos ângulos, levando a uma despreocupação com esse aspecto. É possível, ainda, que o fato de pendurá-los num varal tornasse a figura horizontal melhor visualizável. 22
Nota-se que as imagens funcionavam como auxiliar de vendas por pelo menos duas razões: pelo atrativo visual e pela necessidade de identificação temática do poema. Depois, a ilustração passa a ser, inclusive, um indicativo da autenticidade do folheto, a partir de sua memorização. De acordo com o depoimento de Edson Pinto da Silva, a autenticidade passa pela questão do uso de fotografias apropriadas para ilustrar o romance ou história e não o desenho ou as vinhetas.
Fotografias de diversas naturezas foram impressas em capas. Folhetos de Leandro Gomes, publicados entre 1910 e 1918, apresentam na capa imagens fotografias de personagens reais, como o Padre Cícero, além de fotografias de cartões-postais, cuja utilização intensificou-se com Athayde, o que acabou institucionalizando o uso do clichê no romance, justificado por Manoel Caboclo e Silva da seguinte maneira:
O clichê de zinco se usa no romance, porque tem que dar uma presença mais bonita e mais agradável. De 16 páginas para baixo, temos que fazer um clichê de madeira do que foi dito no folheto, do tipo do indivíduo, dando movimento de chapéu de palha, alpercata, rifle, pistola e faca. 23
Certamente Manoel Caboclo refere-se à necessidade de reduzir o custo do folheto de época através do uso de matriz xilográfica produzida de punho próprio, porque o valor do clichê, por mínimo que seja, afetaria o custo de produção desse gênero, que deve ser baixo para uma boa lucratividade. Além disso, o poema reportagem tem um período de venda determinado, diferentemente do romance e da história, que têm saída permanente. Depois dos cartões-postais, os clichês produzidos para propaganda de cinema (fig. 14) passaram a ser largamente aproveitados para "dar presença" ao folheto.
Aquilo era baratinho, aqueles clichês a gente comprava no Jornal do Commercio, depois de usado durante a semana, como reclame do filme. E, foi, não foi, a gente aparecia lá pela clicheria do jornal e perguntava: Qual é a imundície que tem aí pra gente? E o pessoal já sabia e ia buscar o clichê velho de cinema. Aquele meu folheto que o senhor conhece A moça que dançou a música e Jesus Cristo, a capa é uma artista de cinema que o João tinha em casa e me deu." 24
Nas últimas décadas do século passado, a xilogravura era o recurso principal para a reprodução de imagem até o surgimento do clichê, que passou a ser empregado na indústria gráfica por causa do custo reduzido. Por essa razão, é natural que se encontrem ilustrações em xilogravura nas capas dos folhetos, como resquício de uma atividade profissional em processo de substituição. A imagem de Antonio Silvino, de estilo formal que exige maior elaboração, perceptível no corte cuidadoso da matriz (fig. 15), foi muito utilizada por Chagas Batista, em páginas internas de seus folhetos sobre o cangaceiro. No folheto de 1907, é anunciada na capa como retrato:
História de Antonio Silvino contendo o retrato e toda a vida de crimes do celebre cangaceiro, desde o seu primeiro crime até a data presente setembro de 1907 25
Não há estranheza em denominar essa xilogravura como retrato, pois este pode ser realizado nas diversas técnicas artísticas, como pintura, desenho, aquarela, gravura etc. Além dela, temos outra imagem do mesmo personagem (fig. 16), cuja solução gráfica apresenta um contraste entre elementos claros e escuros. Embora formalmente diversas, ambas estão bem estruturadas enquanto representações de corpo humano e apresentam os elementos que identificam o personagem, o chapéu, o rifle e a espada. Porém, há divergências quanto à caracterização: em uma o personagem tem bigode e em outra, barba. Há uma segunda diferença: a primeira imagem parece retratar o cangaceiro em pose típica para este fim. A outra, apesar do tratamento sumário, apresenta movimento em virtude da posição em que o corpo é retratado e também pelas linhas diagonais formadas pelas armas, representando o cangaceiro em a ação.
A técnica deixa de ser usada pela folhetaria de Athayde, provavelmente pela facilidade de se adquirir o clichê de metal, o que permite o farto uso de desenhos e fotografias.
Não é o que ocorre com a Tipografia São Francisco, de José Bernardo da Silva, cujas atividades tiveram início na década de 1920. Situado em Juazeiro do Norte, local distante de Recife, parece que a obtenção de clichês não era tão simples. Além disso, as gráficas assistiam a uma evolução técnica contínua, cada vez mais as tipografias tornavam-se obsoletas e o clichê tipográfico entrava em desuso. Quando, em 1948, Athayde vendeu seu acervo a José Bernardo, a substituição dos antigos clichês começava a ser necessária, em razão de seu desgaste, o que representaria um acréscimo no valor final do livrinho de feira.
A xilogravura representou uma alternativa de substituição do clichê, conforme se verifica nas diferentes publicações do folheto Pedrinho e Julinha. Na comparação de uma das xilogravuras com a fotografia, percebe-se claramente a intenção do xilógrafo em manter as linhas e sombras oferecidas pela imagem fotográfica e a preocupação em manter o sentido original. Pode-se presumir que o autor da xilogravura fosse conhecedor da atividade gráfica. Essa preocupação revela um detalhe importante: a imagem não poderia ser substituída por clichê de outra fotografia. Os personagens já estavam associados ao casal estampado na capa; substituí-lo por outro seria o mesmo que alterar os personagens da história. Portanto, teria se tornado imprescindível a substituição da matriz sem alteração da imagem, o que seria possível através da galvanotipia, 26cujo resultado perfeito, porém, só seria possível a partir de uma matriz em bom estado. A outra xilogravura não apresenta a mesma preocupação e a estilização é maior, provavelmente realizado no momento de valorização da gravura por turistas.
De acordo com o histórico traçado por Liêdo Maranhão, José Bernardo da Silva é indicado como mentor de uma escola de xilogravura nordestina:
... esse Zé Bernardo dos tempos difíceis, da máquina de pedal de 5 mil-réis, do pirão de farinha com água do rio, sem saber, estava criando a maior escola da gravura popular nordestina, encomendando uns clichezinhos ao Mestre Noza e Antônio Relojoeiro, no Juazeiro, e a Walderêdo, no Crato. 27
Através de sua biografia levanta-se a hipótese que, de alguma maneira, o futuro editor conhecia a arte tipográfica, pois transferiu-se, em 1924, de Palmeira dos Índios para Juazeiro do Norte com a intenção de se tornar impressor e conhecer Padre Cícero. Supõe-se que, conhecendo o funcionamento de uma gráfica, pôde orientar outras pessoas a produzirem matrizes xilográficas. Teria procurado Mestre Noza em 1925 para fazer um "clichê" de madeira para ilustrar seus folhetos. Este fato aliado à palavra "clichê" utilizada para designar matriz de impressão, pode mostrar que José Bernardo conhecia a gravura em madeira e a clicheria, tendo segurança de que um profissional (ou artesão) acostumado a trabalhar com a madeira pudesse executar uma matriz impressora.
Verifica-se então a introdução de um artesão que nunca executara uma gravura no mundo das gráficas. Contudo, parece ter sido um dos únicos. Outro xilógrafo da Tipografia São Francisco foi Walderêdo Gonçalves de Oliveira, 28 que trabalhava como tipógrafo na gráfica da Livraria Ramiro. Em 1935, foi procurado pelo poeta para executar uma matriz porque não havia clicheria em Crato, e se viu obrigado a realizar a tarefa em madeira, tomando gosto pelo ofício.
Antônio Relojoeiro trabalhou exclusivamente, durante um período, para José Bernardo, passando a atender, depois, os poetas João Ferreira de Lima e João de Cristo Rei. Seu caso é instigante, porque consta que no ano de 1948, começou a gravar "por conta própria", 29 o que pode significar duas coisas: ele aprendeu a técnica intuitivamente ou de alguma maneira já a conhecia e resolveu fazer gravuras sem que houvesse encomenda. A partir de 1953 abandonou a gravura para dedicar-se ao conserto de relógios.
As ilustrações mostram particularidades na elaboração do desenho de cada gravador, mostrando que José Bernardo apenas expunha o tema, não interferindo na imagem. Mestre Noza (fig. 17) é mais simples, com composição em grandes áreas de contraste e um cuidadoso tratamento para o fundo que destaca as figuras. Walderêdo (fig. 18) domina uma composição rica e complexa, com elaboração das linhas de contorno e caprichada descrição dos elementos. Antônio Relojoeiro (fig. 19) preocupa-se com as linhas de contorno e mantém o fundo branco, o que o aproxima da linguagem da maioria das xilogravuras estampadas nas capas dos folhetos (fig. 20) e (fig. 21).
Em meados da década de 1940, surgia a figura do poeta-ilustrador-gravador-impressor, como Ailton Francisco da Silva (Inácio Carioca) e Severino Marques de Souza (Palito), 30 que gravavam exclusivamente para seus folhetos. Palito trabalhou na Tipografia Luzeiro do Norte como gráfico, portanto, tendo noção da gravura em relevo. Tornam-se comuns os depoimentos de poetas que faziam a sua gravura por não possuírem dinheiro para a compra de um clichê.
Valorização da xilogravura
José Borges, um dos mais afamados xilógrafos populares, ingressou no ramo na década de 60. De acordo com Liêdo Maranhão, J. Borges, como assina seus trabalhos,
soube tirar partido desta moda, apoiado por um comércio de arte, interessado em um gravador mais ingênuo do que Dila, para dar continuação ao grande mercado de arte popular, surgido no Nordeste, com Vitalino e Chico da Silva, do Ceará, acarretando grandes prejuízos à poesia popular. 31
Liêdo Maranhão refere-se ao interesse de marchands como um modismo, explicado pela característica comercial das galerias de arte. Ele aponta para o fato de que os galeristas tenham detectado no trabalho de José Borges (fig. 20) uma característica "mais ingênua" que não se encontra, do ponto de vista do marchand, no trabalho de Dila (fig. 21), 32cuja atividade teve início na década de 1950, que se preocupa com um corte mais cuidadoso. Dila trabalhava como fabricante de carimbo, tendo familiaridade com a borracha vulcanizada, matéria-prima de suas matrizes. A característica principal é a produção de uma imagem com cortes bem definidos, apropriados para o resultado por ele desejado.
Nesse período, a ilustração das capas dos folhetos torna-se assunto principal entre estudiosos dos grandes centros, acompanhado de discussões sobre a perniciosidade dos processos mecânicos de reprodução da imagem enquanto aniquiladores de uma produção artesanal, que seria a xilogravura dita popular. Não é raro encontrar associações entre a utilização do clichê de metal e a morte da xilogravura, como faz Mário Souto Maior. 33 Para Lourival Gomes Machado, um folheto de peleja, em cuja capa se estampa "um instantâneo amador dos dois cantadores" é deplorável, tanto quanto os que têm impressas a "fotografia imbecil dos cartões postais", a "pobre caricatura das revistas litorâneas" e a "romântica reprodução das cenas de filmes". 34 Para o articulista, estampar uma fotografia na capa do folheto representa a perda da aura 35 de um material resultante da tradição popular.
A produção de álbuns de xilogravuras populares insere-se nesse contexto. Parece que os primeiros convocados, por sugestão do artista plástico Sérvulo Esmeraldo, em 1962, foram Walderêdo e Mestre Noza. Mestre Noza teve o álbum Via Sacra publicado e exposto em Paris, no ano de 1965, por Robert Morel. O sucesso acabou desencadeando a formação de xilógrafos que poderiam ser poetas ou não e a produção de álbuns das mais variadas temáticas, muitas vezes sem relação com poemas da literatura de cordel. Bagagem do Nordeste (fig. 22) 36 é um álbum no formato de folheto, com imagens referentes ao Nordeste ou personagens importantes para o autor. Folguedos 37 (fig. 23) traz poemas, cuja estrutura não pertence à literatura de folhetos nordestina, e imagens referentes às festas populares. Via Sacra 38 (fig. 24) é um álbum de xilogravuras acompanhadas de 14 estrofes produzidas especialmente para acompanhar cada imagem, dentro do padrão da literatura de cordel. Instituiu-se, informalmente, que todo xilógrafo popular deveria publicar uma Via Sacra.
Há casos de transposição de folhetos em álbum. O folheto Viagem a São Saruê 39 fez sucesso no meio intelectual, através de Orígenes Lessa e acabou virando tema do álbum de Ciro Fernandes (fig. 25).
No salto das feiras às galerias, a literatura foi deixada em segundo plano. Atualmente, no Nordeste, há xilógrafos que não se dedicam à produção de folhetos nem à poesia, enquanto em São Paulo, a editora Luzeiro,40 a maior editora de folhetos fora do Nordeste, ativa desde 1952, planeja reeditar os clássicos da literatura de cordel, apesar de suas publicações, de formato maior, papel de qualidade superior e capas coloridas (fig. 26) serem desprezadas por muitos estudiosos.