Representações de leitura nas capas dos folhetos de cordel

Luli Hata

 

INTRODUÇÃO

Resgatar a história literária do Brasil é o objetivo central do Projeto Memória de Leitura, no intuito de compreender suas implicações na formação cultural de nosso povo. Dentro desse objetivo maior, a vertente Leituras Populares visa rastrear a literatura das classes populares brasileiras a partir do século XVIII, quando se verifica a existência de documentação sistematizada, graças à constatação de um grande consumo das chamadas literatura popular e de massa que não compõem a que professores, intelectuais e críticos literários consideram como válidas. Insere-se aqui o estudo da literatura de cordel nordestina focalizando as imagens de leitura nas capas dos folhetos.

O curioso fenômeno de leitura em um meio semi-alfabetizado foi amplamente discutido em diversas 1obras, sendo interessante ressaltar que o consumo literário em questão verificou-se, em seu período áureo2 em todas as camadas sociais desta região rica em contrastes eloqüentes: imensas fazendas versus pequenas choupanas; coronel versus matuto; litoral versus sertão; urbanização das capitais versus aspecto atrasado do interior; riqueza versus pobreza. Neste contexto, desenvolveu-se a pesquisa Representações De Leitura Nas Capas Dos Folhetos De Cordel.

A leitura da literatura de cordel é descrita, conforme os depoimentos de poetas, editores e vendedores de folheto (os folheteiros), como um ato coletivo perpetuado nas famosas feiras durante a venda. Por essa razão, o folheto é um importante veículo transmissor do saber e, principalmente, objeto de alfabetização, conforme se nota na declaração a seguir:

"Os garotos vêm na feira, os pais levam os filhos especialmente prá comprar folheto. Primeiro a carta do ABC, depois da carta do ABC é o folheto (...). Quer dizer que o folheto fica entre a carta do ABC e a cartilha. Antigamente, não é, que era assim."3

Muitas vezes o aprendizado se fazia diretamente com o próprio folheto: "pedindo para lerem o folheto, perguntando uma letra a uma pessoa, outra letra a outra", o poeta Manoel D'Almeida Filho "terminou aprendendo o alfabeto"4. O caráter oral da estrutura poética do folheto5, cujo estilo característico parece ter se definido no seio da tradição das cantorias, constitui, ao que tudo indica, um dos principais fatores da coletivização da leitura, podendo também explicar o fato de a literatura ser identificada através de ilustração de cantoria (fig. 1).

"Podemos pensar a leitura do folheto como versão mais 'democrática' da situação de cantoria. (...) O saber e a memória estão ali, cristalizados no papel, prontos a ganhar vida nas mãos de um leitor. É claro que ler folhetos exige competência: ler, antes de mais nada, ou pelo menos decorar, cantar e parafrasear."6

No folheto está o registro escrito do qual qualquer leitor pode ter acesso, não havendo necessidade da presença do violeiro. Há uma imagem que ilustra essa situação de maneira bastante peculiar, presente na capa de Peleja de João Crispim Ramos com Rodolfo Coelho Cavalcante (fig. 2)., cujos contendores carregam um instrumento interessante: o folheto. É no período do combate ao analfabetismo que crescem as publicações sobre o enobrecimento proporcionado pela capacidade de leitura (a aquisição do saber e a participação na cidadania como caminhos para a soberania) e sobre o próprio cordel, nos quais a ilustração evidencia a importância do poeta e sua poesia.

IMAGENS IMPRESSAS

Jornal era só pra o rico

A idéia de nobreza de um cidadão capaz de ler é, porém, mais antiga, estando presente esparsamente dentro do vasto número de folhetos publicados entre 18937 e meados deste século, freqüentemente sugerida em descrições de personagens analfabetas na narrativa. Entretanto, os primeiros folhetos com capa ilustrada de Leandro Gomes de Barros apresentam imagens curiosas de situação de leitura, muitas vezes não expressa na narrativa. É o caso das vinhetas 8 que ilustram os folhetos Casamento a Prestação, Como João Leso vendeu o bispo e Três Quengos Finos. A vinheta do padre (fig. 3). revela um momento de leitura em que o personagem se encontra desatento às coisas ao redor, fato perceptível pela sua atitude: o andar irreverente e a bengala distraída. Em outro folheto, A cura da quebradeira (fig. 4)., aparece novamente a imagem do leitor distraído, desta vez sendo roubado. É explicada na seguinte estrofe:

"Essas figuras da capa
Estão ahi para esplicar

Este de frente está lendo
O de traz quer se arranjar
É doente que procura
Remédio para o curar" 9

Trata-se de dinheiro o remédio para a "cura da quebradeira", isto é, onda de falências. Tanto este desenho quanto a vinheta do padre simbolizam a leitura como um exercício de concentração, tornando-os alheios ao que acontece ao redor, embora se verifique um aspecto cômico para a situação. As imagens e os títulos irreverentes podem ser um indício de um espírito crítico da época ou do autor à época. A cura da quebradeira torna-se irônico ao aconselhar o roubo "inocente" frente à crise econômica - e certamente o autor não está sendo inocente. O objeto de leitura é um jornal e o leitor usa chapéu e trajes aprumados, enquanto o personagem que procura o "remédio", pela própria postura, apresenta­se em desalinho. Esta imagem reforça e é reforçada pela declaração de João Severo da Silva:

"Televisão ninguém se falava, então era o folheto mesmo. Jornal era só pra o rico." 10

O jornal, presente no nordeste desde pelo menos 1822, é associado à atuação como cidadão, urbanização, desenvolvimento tecnológico e, enfim, à posse material. Daí seu leitor ser considerado um cidadão distinto e rico. É interessante observar como essa associação ainda persiste na observação de um editor de folhetos em meados da década de 1970, período em que se verifica também um esforço de preservação da literatura de cordel e o estabelecimento da xilogravura como forma e técnica de ilustração oficial dessa literatura.

IMAGENS EXPRESSAS

Quem o saber arrenega provoca repugnância

O poeta João Martins de Athayde, que foi um "analfabeto que sempre viveu das letras..."11, parece ter sido o primeiro poeta a se preocupar com a questão do aprendizado da leitura, editando, em 1945, o único folheto encontrado dessa época que trata explicitamente do tema. Neste caso, a capa ilustra sua preocupação (fig. 5). descrevendo um homem que está sentado coçando a cabeça, sinal de embaraço, enquanto tem uma provável cartilha de ABC na mão. O local em que se encontra sentado sobre uma pedra, uma suposta praia de rio ou mar, amplifica a sensação de solidão graças à distância da casa e da vegetação ao longe. Seu título é A desventura de um analfabeto ou o homem que nunca aprendeu a lêr, que contém na primeira página o subtítulo História d'um homem que nunca aprendeu a lêr e narra a história de um cidadão que perdeu seu negócio por ser analfabeto. A maioria das estrofes lamenta o analfabetismo e a falta de instrução e destaca a responsabilidade dos pais no processo de aprendizado ao afirmar que

"O pai que não mostra ao filho
que o saber é necessário,

(...)

prepara-lhe um futuro
terrível, medonho, escuro"
12

Porém, a responsabilidade não é totalmente dos pais, à medida em que a própria pessoa deve se interessar e compreender a importância da instrução:

"Mas, ai! de quem ignora
o quanto vale a instrução
de si próprio se deplora
sofre a mais negra opressão
serve até de zombaria
o direito, a garantia,
que merece o cidadão." 13

Deixa implícita a idéia de que é necessária vontade política ao citar uma escola aberta ao público: uma nação soberana é composta de um povo instruído. E novamente retorna à figura individual do analfabeto como "a vergonha do lar":

"Instrução! cousa sublime
adorno de uma nação
grandeza que tudo exprime
sol de infinito clarão
a ponta do teu compasso
foi quem traçou no espaço,

nosso gráo de perfeição,

(...)

 

Abram­se as portas da escola,
para este povo entrar,
afim de obter a esmola
do saber que vai buscar,
porque o analfabetismo,
deixa o homem no ostracismo,
faz a vergonha do lar."14

O livro é mencionado como instrumento imprescindível no processo de aprendizagem e sua caracterização se enquadra no conceito primordial de ilustração, isto é, conjunto de conhecimentos que iluminam, e sua leitura depende, novamente, da vontade individual:

"O livro é a lâmpada aceza
na noite da ignorância
a nos mostrar a clareza
da mais desejada instância
e quem um livro não pega
quem o saber arrenega,
provoca repugnância." 15

Na imagem verifica-se um homem adulto aparentando ter acima de 40 anos, personagem que inspira o poeta a lamentar sua situação. Às páginas finais, porém, o autor revela a melhor solução para incentivá­lo a deixar a condição humilhante a que foi obrigado, a iluminação, não havendo limite de idade para tal nem condição material, sendo possível até estudar na cadeia, pois o estudo é, na realidade, liberdade:

"Se toda aquela creatura,
que pela rua tateia,
escravo da desventura,
tendo de dôr a alma cheia,
quizesse se libertar,
procuraria estudar,
nem que fosse na cadeia." 16

Para Athayde, o analfabeto é uma pessoa ingênua, um indouto de boa fé: seu personagem fora enganado, o que lhe foi fatal nos negócios. A descrição é praticamente a mesma no folheto O casamento do calangro, apesar de sumária e de seu enredo jocoso:

"Ora, o pai da Lagartixa
era um pobre analfabeto
entendia que o Calango
fosse sujeito correto
quando veio abrir os olhos
foi tarde, já tinha neto." 17

Do mesmo poeta, o romance O amor de uma estudante ou o poder da inteligência18, traz a idéia da glória da ilustração implícita. A capa estampa a imagem típica aplicada aos folhetos que tratam de assuntos amorosos, o retrato de um casal, e trata do amor de uma garota rica e estudiosa, porém, com um defeito, a feiúra. Sua irmã, ao contrário, é bela e não se interessa pelos estudos, assim como o rapaz por quem se apaixona. Como não havia o segundo volume, não foi possível aprofundar a análise, mas na narrativa existe a dualidade beleza e parvoíce versus feiúra e inteligência, ponto central de discussão. Para os personagens, a beleza é a maior qualidade feminina e o romance se torna interessante neste aspecto porque promete o triunfo da inteligência, uma inteligência ao mesmo tempo nata e adquirida através dos estudos.

O escravo que cumeu o Sinhô, de Cuíca de Santo Amaro, é um exemplar cuja capa e cujo enredo não mostram preocupação com o aprendizado da leitura, mas relaciona o analfabeto à irracionalidade, exemplificando um modelo a não seguir:

"Havia um Senhor de Engenho
Sujeito desumano
Tipo analfabeto
De um instinto tyrano
Que dizia aos seus escravos
Que era ele o Soberano"19

Firmino Soares da Silva compartilha da opinião de Athayde, sobre a responsabilidade dos pais no processo de aprendizagem e o sofrimento da desventura de não ser iniciado nas letras. Baseado em toada homônima, seu folheto Coração de Luto20 (fig. 6). destaca a necessidade do aprendizado da leitura, que abre as portas do conhecimento e confere dignidade à pessoa portadora do saber, expressada na forma material (os trajes) e ressaltada nas qualidades da professora, uma das personagens, tais como beleza e juventude. Antonio, personagem central da narrativa, é retratado, através de desenho, crescido, em imagem que nos remete à do ideal do moço feito, bem trajado, em pose elegante, à sepultura da mãe falecida quando ele tinha apenas nove anos, dois anos após seu ingresso na escola. Chama a atenção o grosso livro que ele tem à mão, que à primeira vista parece ser uma Bíblia, aludindo ao conhecimento adquirido e ao hábito de leitura, embora esteja fechado. É uma ilustração que permite concluir, de maneira subliminar, que existe um hábito de leitura silenciosa, solitária, pelo fato de o livro estar (sempre) à mão e porque não retrata a performance de leitura. O desenho, como se fosse uma fotografia, congela o momento em que o personagem homenageia sua mãe com o objeto símbolo do saber na mão, eternizando a cena. Antonio é um adulto ilustrado, "um homem culto". Apesar do volume, a presença do livro não é eloqüente, é como parte integrante de seu ser, numa referência à sabedoria de uma instância culta adquirida. Estas informações são transmitidas tão somente pela imagem, posto que no texto não há referência expressa à posse do livro e, inclusive, não se sabe em que condições o personagem concluiu seus estudos, pois, da infância à vida adulta, sua trajetória é descrita em duas estrofes sumárias, arrematada pela que se segue:

"Depois Antonio cresceu
e ficou um homem culto
dizia sempre a sua mãe
receba deste teu fruto
uma prece porque eu tenho
'o coração de luto' " 21

Pode se supor que a inteligência do menino, qualidade apontada desde que passou a freqüentar as aulas aos sete anos, e a obediência às recomendações de sua mãe permitiram­lhe a autodidaxia, comum entre os poetas da literatura de cordel.

AUTO-IMAGEM

Porque a gente ajudar o governo não é só pagando os impostos não

De acordo com Mauro William Barbosa de Almeida, a partir de 1972, com a crescente procura de estudiosos, antigas gráficas tiveram novo impulso e outras pequenas surgiram para um novo mercado nacional e urbano com novos agentes ­ o governo e intelectuais. Antes, o consumo do folheto era essencialmente familiar (uma ou várias famílias) e constituía uma atividade de lazer. Este aspecto não se perdeu, mas ficou restrito no decorrer da década de 1960, frente ao custo de produção cada vez mais alto e à diminuição do nível de vida dos compradores.

Em alguns de seus folhetos, na quarta capa, Manoel Caboclo e Silva expõe os seguintes dizeres:

"COM LIVRO E AMOR SE CONSTRÓI A VIDA.

A Literatura de Cordel é a voz do pobre, é o carro alegórico que leva o analfabeto ao MOBRAL; é a escada de luz.

Não seja um analfabeto." 22

É patente a influência da campanha governamental de erradicação do analfabetismo na consolidação da preocupação por parte dos poetas, sendo significativo o folheto O caminho para o Mobral, de José de Souza Campos. A participação do poder público, porém, restringe-se à criação do Mobral, instituição procurada pelas pessoas após o contato com o folheto, este sim, reponsável pelo primeiro contato com a leitura e abrindo caminho para a formação de verdadeiros cidadãos. Graças à ampla penetração popular, a literatura de cordel contribui com o governo disseminando a idéia da imagem do leitor e da própria poesia popular como sinônimo de conquista e status.

"(...) porque isto é sabedoria humana, não é? Cordel, a literatura de cordel, aí quando eu escrever vocês toda vida botem uma crasesinha lá numa partezinha no sentido de que a literatura de cordel está ajudando, de que é uma centelha de progresso, é uma integridade do povo, é ajuda aos governos. Porque a gente ajudar o governo não é só pagando os imposto não." 23

Referência eloqüente é o título O encontro de um trovador com uma fera monstruosa24, a qual é identificada, na estampa, como analfabetismo (fig. 7). O encontro é um ato heróico do trovador, que com suas armas, as letras, vence a fera monstruosa.

A preocupação com a politização do leitor popular permite que a literatura de cordel abra espaço ao enaltecimento do jornal, que se observa no folheto Sesquicentenário do Diário de Pernambuco ou 150 anos de glórias, de José Soares, editado em 10 de fevereiro de 1975, que evidencia a existência da mídia impressa desde 1825. O jornal que "era só pra o rico", até então desprezado pela falta de musicalidade poética25, passa a ser símbolo de progresso e de inserção na vida política, como deixa claro o trecho de O industrial fracassado ou o senador caloteiro de Pernambuco:

"E isso é importante
na boa democracia
os jornais escrevem tudo
sobre tudo, à revelia
porque pobre não protesta
nunca poude e nem podia" 26

Um novo sentido de poder se associa à leitura e ao jornal, o poder do exercício da democracia. É importante ressaltar que o autor destes versos tem formação superior, o que pode justificar a necessidade de esclarecer a importância do veículo em questão para o consumidor tradicional de folhetos. A imagem da leitura do jornal torna­se então símbolo de aquisição da cultura de elite. E mais: os poetas, ao se tornarem alvo do interesse de estudiosos, passam a produzir cada vez mais folhetos de referência à própria literatura e ao imaginário nordestino, estampando nas capas imagens enaltecedoras que enfatizam a própria importância do poeta27(fig. 8), cuja classe possui uma qualidade mística não observada na elite, que "não gosta desses folhetos a não ser para pesquisa" .

Todavia, a figura do analfabeto e da pessoa instruída continuam nos moldes traçados por João Martins de Athayde e pelo poeta Cuíca de Santo Amaro, porém, engendrando personagens cômicos como Lindolfo, de atitudes e gestos grotescos (O namoro do matuto com a professora) ou hediondos como o marido que assassina a esposa (O crime de quem não sabe ler).

"O rapaz era Lindolfo
Coitado, nada sabia
E a Jovem Marilene
Deusa da Sabedoria
Moça rica de beleza
Por aquela redondeza
outra igual não existia

(...)

 

Tudo isso, meus leitores,
É o atraso cultural,

Isso há muito aconteceu
Como era natural,
Porém hoje é diferente
Louvores ao Presidente

Em ter criado o MOBRAL

 

 

A ­ analfabeto só vive
L ­ evando peia, coitado,
I ­ sto serve de exemplo
P ­ ara se ser educado.
I ­ gressando­se na Escola
O ­ nde só sai preparado." 28

O analfabeto continua sendo um sujeito sem sorte e a pessoa portadora do saber é "rica de beleza". Mais uma vez o Mobral é lembrado como uma instituição importante para a alfabetização da população.

No folheto O crime de quem não sabe ler29 (fig. 9) a cena estampada na capa é o momento impiedoso em que um homem está prestes a atingir uma mulher com uma facada. A imagem não traz referência à leitura, mas à condição brutal de um iletrado (suposição que se faz ao relacionar o título). A narrativa esclarece que o homem analfabeto comete um crime passional ocasionado por um mal-entendido, pela sua incapacidade de decifrar os códigos da escrita. Sua esposa havia escrito uma carta a um admirador pedindo que a deixasse em paz porque se encontrava muito feliz e satisfeita em seu lar com o seu marido.

O PODER DA ESCRITA

Aprende assinar teu nome

O gravador Dila oferece uma indicação importante em relação ao universo da alfabetização na estampa de Segredo do Cangaceiro (fig. 10). Primeiramente, o texto não faz referência ao impresso, o que torna a imagem enigmática ao permitir a associação do livrinho ao segredo, cujo teor pode estar escrito em folheto ou em diário. O personagem não­cangaceiro pode ser a representação do leitor de Dila concentrado em ler o folheto e, graças ao envolvimento e concentração na história o leitor poderia sentir a presença real do cangaceiro. Ou ainda, a imagem do cangaceiro explicaria a intenção de ressaltar a veracidade da narrativa. Em outra associação, o que o personagem tem à mão poderia ser o diário do cangaceiro, o qual tenta recuperá­lo (as figuras apresentam­se em movimento). Em qualquer caso, o objeto de leitura aponta para um elemento importante associado à alfabetização: o registro escrito.

No folheto, a escrita é a cristalização de um momento de criação, eternizando­o e permitindo a democratização da cantoria: qualquer pessoa tem acesso à sua leitura, podendo ainda ser aplaudido como um excelente leitor. Em outra situação, como no caso de um diário, a escrita permite o registro particular de emoções e pensamentos. É relacionada ao fim do analfabetismo, e a situação de escrita torna-se outro símbolo visual da alfabetização (fig. 11), já que assim se compôs a campanha governamental: a pessoa alfabetizada deveria saber ler e escrever. Dessa maneira, pode­se dizer que a alfabetização pretendida pelos poetas para a classe que representam abrange tanto a capacidade de leitura quanto o domínio da escrita, para assim seu povo fazer parte da vida sócio­política de maneira completa ou, no mínimo, ter uma vida melhor.

"Eu como humilde poeta
Dedico por minha vez
Minhas congratulações
Ao homem camponêz
Visto ter sido na roça
Que o meu genio se fêz

 

Envio uma advertência
Para todo pessoal
Que vive como indigente
Do sertão ao litoral
Tem uma luz no caminho
Que os leva ao Mobral

 

Vai com praser ao mobral
Aprende assinar teu nome
Desarma teu garotinho
Ensina­o fugir de fome
Se não a morte o abate
Logo cedo aterra o come" 30

O trecho transcrito revela a trajetória comum à maioria dos poetas, que nascem e "fazem seu gênio" no campo. O autor se dirige ao pobre, pois como pobre caracteriza o seu consumidor e vincula o ensino da leitura e da escrita à esperança de melhoria de vida.

Mas o registro escrito possui um poder do qual nem mesmo o demônio está imune. Esta entidade maléfica, o ser temido, assume algumas vezes uma personificação curiosa, a do sujeito desconfiado, que necessita apoiar­se num contrato assinado para garantir o cumprimento de um acordo. Sempre que o tema é o pacto com o demônio é imprescindível a presença de papel e caneta ou bico­de­pena, cujo contrato é assinado com sangue, caracterizando­o como pacto de vida (ou morte), o que significa tratar­se de um contrato que supera as expectativas da justiça humana.

"Leandro crendo no Cão
Ali logo se entregou
Com um pouco de seu sangue
Todo o contrato assinou
E o diabo disse a ele
­ Agora tudo te dou." 31

É interessante notar a associação da garantia escrita exigida por alguém que desconfia, representado pelo demônio, um agente do mal e que deseja, dessa forma, amarrar, prender o outro num compromisso irrevogável. Pode­se concluir que a exigência do contrato caracteriza­se como falta de confiança na palavra alheia e, assim, só mesmo alguém de má índole para ter a coragem de desconfiar de uma pessoa. Por se tratar de um ser desprezível, alguns folhetos mostram como burlar um pacto com o demônio ou como ter cuidado na sua elaboração, assegurando remissão ao pactante. É o caso da narrativa de O homem que fez um pacto com o Diabo para ganha na L. Esportiva (fig. 12).

João da Diva, um homem pobre, enriquece através da intervenção demoníaca, assinando um contrato estritamente comercial. Porém, após a morte de sua esposa, gasta parte de suas riquezas em viagens particulares e com outra parte faz doações, como uma forma de redimir­se e livrar­se de qualquer comprometimento maior e talvez mais perigoso com o Diabo. Quando este vem lhe cobrar a alma, João permanece forte e lhe entrega apenas a parte que lhe cabe no negócio.

A insistência de o Diabo necessitar de um documento escrito está presente também nos folhetos A queixa de Satanás a Frei Damião e Uma queixa de Satanás a Cristo:

"Mas agora mesmo eu vou
com Frei Damião falar
vou mostrar os documentos
pra ver que jeito ele dar
pra nós dividir o mundo
e a minha parte eu levar." 32

A escrita tem um poder superior ao Diabo, que deve se submeter, como todos os homens, às leis supremas do Deus Cristão. É através de documentos que busca a divisão do mundo com Frei Damião, é através de "ordem por escrita feita ao punho do senhor" que pode ver realizado o seu desejo de dominar as pessoas de vida pecaminosa. Até o Diabo se rende ao poder da escrita!

O domínio da leitura e da escrita garante às pessoas, pois, não ficar à mercê de uma instância superior e maléfica representada pelo Demônio, por exemplo, inclusive evitando ações alheias que representam a ruína de uma pessoa não alfabetizada, como já foi ilustrado por João Martins de Athayde. Além disso, permite a isenção do estigma de uma condição inferior: a do pobre analfabeto, sujeito desumano. Afinal, reelaborando a frase de Bollème e adaptando-a à fala de algum poeta, ter leitura é abraçar o poder, o poder de participação e de expressão; prender nas mãos um pouco de saber representa a dignificação do indivíduo.

A denominação literatura de cordel foi adotada para classificar o folheto (a forma material da poesia popular nordestina) como produção de uma cultura graças à similaridade com a literatura popular que floresceu na Europa durante a Idade Média. Entretanto, a poesia popular nordestina tem um caráter bastante peculiar, conforme nos mostra o estudo de Márcia Azevedo de Abreu, cujo estilo característico desenvolveu-se, ao que tudo indica, no espaço de oralidade das cantorias e desafios poéticos freqüentes no decorrer do século XIX. A literatura, assim, mantém fortes vínculos com a oralidade e possui uma estrutura musical conformada ao ritmo, à métrica e à rima, e sua leitura cantada se dá a nível coletivo.