ANÁLISE DO DISCURSO DOS ESCRITOS DE BANHEIRO NA UNIVERSIDADE
Fernanda
Salomão Vilar - pherfeita@yahoo.com.br
Pedro Henrique Cavano Pereira - ph_call@yahoo.com.br
Tiago Elídio da Silva - tiagoelidio@gmail.com
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem como objetivo analisar os escritos de banheiro e ver quais são os sentidos produzidos por eles, quais são as formações imaginárias aí produzidas, quais são os temas predominantes e como isso circula na sociedade. Foram analisados textos presentes em banheiros de vários institutos da Unicamp: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Instituto de Artes (IA), Instituto de Economia (IE) e Faculdade de Educação (FE), além dos banheiros da área de Engenharia da Biblioteca Central. Analisaremos principalmente os grafitos das portas dos banheiros do IEL e do IFCH, mas utilizaremos os outros como forma de comparação.
O grafito encontrado no interior dos muros universitários, especialmente os das portas e paredes dos banheiros, representam a voz coletiva de um grupo perfeitamente localizável e localizado. Deles conhecemos o grupo social, a idade, sua condição sociocultural e o sexo, e também podemos deduzir os referentes que os motivaram. O que sabemos é que estes textos foram gerados coletivamente, que se criaram no ritmo de seus diferentes autores e que, precisamente por isso, os sentidos produzidos por estes textos, e seu funcionamento nos aproximarão aos tópicos do coletivo que os gerou. Neste sentido, este espontâneo apanhado de escritos sugestivos da porta de banheiro se transforma em um porta-voz de uma coletividade nem sempre escutada e em um local de livre expressão de um grupo social muitas vezes submetido a um silêncio forçado.
Através de nosso corpus, tentamos oferecer uma descrição e análise deste subgênero textual, cujas características especiais o convertem em um interessante e peculiar objeto de estudo. Com um primeiro olhar, pôde-se ver os seguintes aspectos:
No IA, não havia escritos, pois as portas dos banheiros foram trocadas e as paredes pintadas, devido à reforma que o instituto passou. Na FE, não havia escrito algum, talvez pelo fato dos banheiros do instituto serem revestidos com azulejos, o que dificulta escrever neles. Além disso, é um local onde a presença de mulheres predomina, o que talvez influencie, mas não tanto, pois os banheiros femininos do IEL e do IFCH são utilizados por elas como forma de expressão. Nesses dois últimos institutos, tanto os banheiros femininos quanto os masculinos são carregados de mensagens, sendo muitas de cunho sexual, aliás essas são mais predominantes no IEL. No IFCH, as que predominam no feminino são as escatológicas e, no masculino, reflexões e xingamentos, mas há também muitas sexuais. No IE, as portas são pintadas de preto, o que talvez seja uma forma de pré-censura, e não há nada escrito. No banheiro feminino da BAE (Biblioteca da Área de Engenharia) não há nada, talvez pela pouca incidência de mulheres estudantes de engenharia, já no masculino, havia mensagens de enaltecimento dos engenheiros e disputas com estudantes de outros cursos, como Economia.
Esses grafitos geralmente se encontram do lado de dentro das cabines do banheiro, assim só quem entrar em uma delas terá contato com eles. Eles são formulados de acordo com padrão escolar, formatado, com linhas imaginárias, onde se nota um começo e um fim. São geralmente em formato retangular, possuem margem e ninguém interfere na mensagem do outro. O que ocorrem são comentários trazidos por flechas, exceto no banheiro do IFCH, onde ocorre rasura: “Quero comer este cocô que está nadando no vaso” (As palavras em itálico substituíram as originais, que eram: “Quero comer você que está sentado no vaso”).
OS TEXTOS DE BANHEIRO E SEUS SENTIDOS
Os textos que aparecem nos banheiros do IEL são de cunho sexuais e funcionam como anúncio em sua maioria: “Adoraria ter minha buceta chupada por uma mulher. Sou gostosa e curto amizade e sexo / Deixe-me contato”. (Banheiro feminino IEL)
“Atleta come loiro 15 – 970961919” (Banheiro Masculino IEL)
No banheiro feminino do IFCH encontramos mensagens escatológicas, políticas e de repúdio ao instituto: “Meu cocô não sai, retém conflitos” / “Essa porta resume meu nojo pelo IFCH”.
Já no masculino existem reflexões como:
“Mudar o mundo? Eu? O máximo que posso fazer é estudá-lo um pouco”.
O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, só pode ser constituído em referência às condições de produção de um determinado enunciado, uma vez que muda de acordo com a formação discursiva em que está inscrito quem o (re)produz, bem como quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas está sempre em curso, é movente e se produz a partir de determinações histórico-sociais.
No banheiro circulam livremente tantos os sentidos sexuais quanto os políticos e religiosos. Não há pudores, tudo pode ser dito, e isso ocorre por não haver assinatura. Ao se converter em autor, o sujeito da enunciação sofre um apagamento no discurso, dividindo-se em diversas posições-sujeito; ou seja, o autor é que assume a função social de organizar e assinar uma determinada produção escrita, dando-lhe a aparência de unicidade (efeito ideológico elementar). Orlandi (1988) fala em princípio de autoria, uma vez que se trata de considerar o autor não como um indivíduo inserido num determinado contexto histórico-social (sujeito em si), mas como uma das funções enunciativas que este sujeito assume enquanto produtor de linguagem. Os enunciados encontrados em banheiros são proferidos sem o nome de autor (cf. Foucault, 1987), mas seu discurso prevalece e é considerado. Nesses locais não é exigido o nome de autor para o texto ser válido. Porém, há alguns casos, como foi notado na BAE, onde há uma autoria coletiva:
“Engenheiros, venham ser nossos escragiários Ass: IE”.
NÍVEL DA FORMULAÇÃO
Características das frases encontradas nos banheiros do IEL e do IFCH:
Frases curtas, de estilo lapidário, carentes, em certos casos, de recursos gramaticais e sintáticos adequados.
Flechas de referência: “Adoraria ter minha buceta chupada por uma mulher.
Sou gostosa e curto amizade e sexo / Deixe-me contato”.
Adoro guerra de aranha, baby (Banheiro
feminino IEL).
Grafismos e iconografias de toda índole: = 25 cm.
Menina sentada debaixo da frase: “Meu cocô não sai, retenho conflitos”.
Recursos retóricos compartilhados, tais como o uso abusivo das metáforas verbais e icônicas, antíteses, hipérbole gráfica e verbal (onipresente nos grafites sexuais), metonímias gráficas e verbais (quase sempre sexuais), imagens e comparações.
NÍVEL DA ENUNCIAÇÃO
Identificação entre os lugares ocupados pelo emissor e pelo destinatário: Na maioria dos grafites, apesar de seu estilo assertivo, escassamente modal, e do aparente distanciamento que confere o anonimato, aparecem freqüentemente marcas do emissor, de maneira que este antecipa os sentidos produzidos do lugar do destinatário, assim o texto refere quase totalmente ao enunciador. Isso pode ser visto nos seguintes exemplos: “Tenho um puta pinto 20x8 e muita porra. Quer? Deixe Recado” e “Atleta come loiro”.
Autodestinação: Produz-se quando o emissor enuncia para si mesmo, e, neste sentido, se caracteriza precisamente o grafite como um grito de rebeldia válido por para si mesmo, como enunciado que troca sua função apelativa própria pela puramente poética, e cuja existência justifica o ato de sua produção. Desta perspectiva deve entender-se precisamente o signo ostensivo de um simples desenho obsceno sem texto informativo, ou a pura reprodução de siglas ou anagramas, cuja presença os converte em textos.
Degradação do emissor: Cabe assinalar a ausência de autor conhecido, assim como a degradação deste através de sua própria mensagem. Em nossa sociedade o escrito passa pelo reconhecimento da autoria, e, em conseqüência, tanto o anonimato das mensagens como as pressuposições que geram quanto ao seu autor (incultura, falta de respeito e educação) incidirão, necessariamente na comunicação, modificando as expectativas do destinatário: “Essa é a elite intelectual brasileira” (texto encontrado no banheiro feminino do IEL como forma de degradação dos escritos que estavam abaixo, todos sobre homossexualidade feminina).
Caráter apócrifo: A existência de textos assinados não acrescenta a credibilidade de seu autor, nem confere categoria hierárquica, posto que geralmente é interpretada como uma contra-informação, tendente a escurecer a possível autoria.
“UHU! A verdade é o amor! Aê! Fran” ( banheiro feminino IEL)
“Engenheiros venham ser nossos escragiários. Assinado: IE”. (banheiro masculino da BAE)
Esse último, com assinatura coletiva, é interpretado como marca de discurso comum, se não, ao contrário, como meio de ocultação da individualidade produtora do texto, amparada em uma autoria coletiva.
Ausência de estrutura argumentativa: Em todo argumento se reflexa inequivocamente a estruturação do texto, ele exige, para tanto, estratégias próprias do gênero, relacionadas com um espaço discursivo extenso, incompatível com a concisão lapidária do grafite, além de uma predisposição conceitual a serenidade discursiva incompatível com o contexto situacional do grafite de banheiro.
DISCURSO MÚLTIPLO (FRENTE AO DISCURSO ÚNICO)
Níveis temáticos similares, que fazem coincidir os marcos referenciais dos três tópicos de discurso próprios das frases de banheiro: política, sexo e contestação/frustração acadêmica.
Podemos somar a esses três marcos, a invasão de frases e consignas em inglês, mais ou menos críticas ou de outras de maior difusão extraídas de letras das canções de ídolos musicais:
“I had but I could not keep, had it but I couldn’t keep linger on your pale blue eyes (to a friend)” (Banheiro feminino do IEL)
O texto nas portas de banheiros possui em sua especial estrutura elementos próprios de una configuração macroestrutural, tais como as pressuposições, as correferências, os tópicos de discurso, ligados ao marco, e os conectores e outros elementos ligados à coesão textual. Possui como característica diferenciadora, a diversidade de preenchimento da função-autor, e, sobretudo, os jogos semiótico-textuais próprios da especificidade do gênero.
Neste sentido, esta função de autor coletivo que muda a cada micro-texto pode transformar-se, mediante um processo semiótico particular:
Em objeto de referência, por sua vez, quando outro grafite
enuncia algo sobre ele: “Os
engenheiro são tudo gente bôa”
“São bichas enrrustidos”.
Em autor ampliado,
quando outro grafite se soma ao conceito ou opinião
vertido por ele: “Os engenheiro são tudo gente bôa”
“E são mesmo”.
Pode transformar-se
em destinatário de outro texto quando outro grafite responde de maneira explícita:
“Adoraria ter minha buceta chupada por uma mulher sou gostosa e curto amizade
e sexo” “Vê se você toma vergonha nessa
cara, sapatona”.
Por outro lado, o texto
inicial pode, por sua vez, converter-se em objeto de referência de outro texto,
se outro enunciado alude explicitamente a ele: “Adoraria ter minha buceta
chupada por uma mulher sou gostosa e curto amizade e sexo”
“eu também!”
Ou em objeto enunciado, por sua vez, se outro enunciado-resposta o toma,
parcial ou totalmente: “Casei-me e não estou feliz Preciso de um bom sexo”
“só Jesus
salva”.
A resposta a um grafite
pode ou não representar um contra-texto, não está geralmente relacionada com
o funcionamento das antecipações n texto primeiro.. Esta resposta pode ter
sido suscitada, voluntária ou involuntariamente, por meio de estratégias
ilocucionárias diversas, tais como o anúncio encontrado no banheiro
masculino do IEL: “alguém no IEL come mulher?”
“sim! as outras mulheres”.
Tudo isso pode funcionar como geradores de um texto múltiplo final.
FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS NO BANHEIRO
Pêcheux define que as formações imaginárias sempre resultam de processos discursivos anteriores. As formações imaginárias se manifestam, no processo discursivo, através da antecipação, das relações de força e de sentido. Na antecipação, o emissor projeta uma representação imaginária do receptor e, a partir dela, estabelece suas estratégias discursivas. O lugar de onde fala o sujeito determina as relações de força no discurso, enquanto as relações de sentido pressupõem que não há discurso que não se relacione com outros. O que ocorre é um jogo de imagens: dos sujeitos entre si, dos sujeitos com os lugares que ocupam na formação social e dos discursos já-ditos com os possíveis e imaginados. As formações imaginárias, enquanto mecanismos de funcionamento discursivo, não dizem respeito a sujeitos físicos ou lugares empíricos, mas às imagens resultantes de suas projeções.
Os jogos de formações imaginárias que ocorrem nos banheiros dos diversos institutos pesquisados são muito interessantes:
O primeiro é a imagem que se tem de uma Universidade: local onde existem vários jovens, ambientes de estudo e conhecimento. É o que revela a frase encontrada no banheiro feminino do IEL: “Essa é a elite intelectual brasileira”. Esse exemplo, aliás, evidencia outra imagem, pois se trata de uma ironia. É uma mensagem que mostra que ao invés de serem pessoas que estão em um local de estudo, em que não se deveria rabiscar bens públicos, ocorre o contrário, são pessoas que ficam escrevendo tais grafitos e de conteúdo chulo.
O segundo jogo de imagem representa imaginariamente a relação entre diversos institutos. O IEL é conhecido pela alta incidência de homossexualidade: “Alguém no IEL come mulher?” “Sim, as outras mulheres” (Frases encontradas no banheiro masculino do IEL). O IFCH é conhecido por ser um ambiente de grandes pensamentos, critica política, devido às disciplinas que são ali cursadas: “Mudar o mundo? Eu? O máximo que posso fazer é estudá-lo um pouco”.
O terceiro jogo está na imagem dos alunos de cada instituto e dialoga perfeitamente com a imagem do instituto. O IEL é um local onde não se teria preconceito em se assumir homossexual, esse instituto seria conhecido pela alta incidência de homossexuais. No IFCH existiriam as pessoas preocupadas com a política, marxistas radicais, entre outros.
CONCLUSÕES
O banheiro é um lugar dedicado ao corpo, em sua mais natural condição. Através da produção de grafitos, serve à comunicação humana como um canal de expressão escrita disponível a todos, um meio ao monopólio dos superveículos massificadores. Sem limite de censura externa e acessível a todos, torna-se um palco discreto de confidências. (Barbosa, 1984) E é justamente isso o que foi visto nos banheiros analisados em nossa pesquisa. Nos banheiros dos Institutos, encontramos mensagens consideradas obscenas, ligadas ao corpo, tanto sexuais quanto escatológicas.
Em nossa sociedade, tais assuntos são considerados tabus. Existem normas a serem seguidas e uma repressão sobre o uso do corpo. No banheiro, é onde ocorre a transgressão, a ruptura, e as pessoas se libertam. Por isso, ele se torna um veículo de expressão pessoal, mural de garantida audiência para nossas acertadas e espirituosas observações sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre tudo. Território sujo e livre, que parece oferecer-nos segurança, anonimato, intimidade, o banheiro é um dos locais onde mais se produzem grafitos em nossa sociedade (Barbosa, 1984).
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, G. Grafitos de banheiro. São Paulo, Brasiliense, 1984.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, Loyola, 1987
ORLANDI, E. Discurso e leitura. São Paulo, Cortez, 1988.
PÊCHEUX, M. "Análise automática do discurso", in Gadet e Hak (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Ed. Unicamp, 1990.