HISTÓRIAS ESQUECIDAS - UM ESTUDO SOBRE AS OBRAS: MEMÓRIAS DO CÁRCERE E CEMITÉRIO DOS VIVOS

 

Eloisy Oliveira Batista
elo_batista@hotmail.com

 

“Como é que eu, em vinte e quatro horas,
deixava de ser um funcionário do Estado,
com ficha na sociedade e lugar no orçamento,
para ser um mendigo sem eira nem beira,
atirado para ali como um desclassificado?”

(Lima Barreto, in Cemitério dos Vivos)

 

Esse texto procura descrever e comparar as visões de mundo dos narradores das obras Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos e Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto. Os narradores dessas obras apresentam as experiências de enclausuramento forçado vividas por seus respectivos autores, embora sejam obras de ficção.

Graciliano Ramos foi preso político durante a ditadura de Getúlio Vargas sem nunca saber a real razão de ter sido mandado para a cadeia, pois não houve contra ele nenhum processo. Ele permaneceu preso por onze meses: esteve num navio, passou por diversas delegacias, ficou um tempo no Pavilhão dos Primários, foi mandado para a Colônia Correcional, e por último ficou na Casa de Correção. Todas essas mudanças foram feitas sem nenhuma justificativa:

“Via-me submetido a cegos caprichos de inimigos ferozes, irresponsáveis, causadores de males inúteis. Essas trapalhadas obedeciam certamente a um plano; em vão esforçava-me por entendê-las e propendia a julgá-las estúpidas. Sem dúvida tencionavam provar-nos que eram fortes, podiam fazer conosco um jogo de gato com rato” (vol I, p. 343) [1]

Graciliano não era comunista no momento em que foi preso, ele só entrou para o PCB em 1945, nove anos após ter sido libertado. É provável que ele tenha sido preso graças ao exercício de seu mandato de prefeito de Palmeira dos Índios, no qual lutou contra o coronelismo que reinava na região. Foi um grande político, mas em favor do povo, diferente dos anteriores e provavelmente dos que o sucederam, ou seja, ele se afastou do comportamento mais comum: de exploração e corrupção.

Desse fato se pode notar que Graciliano Ramos, assim como Lima Barreto, está totalmente imerso na história daqueles que foram na contra-mão da ordem vigente, ou seja, contam uma história diferente da oficial, a que é contada por historiadores dos historicismos [2] , ou seja, os historiadores que se identificam com o dominador.

Essa é uma das semelhanças fundamentais entre os narradores em questão, ou seja, eles foram excluídos do convívio social e utilizam a literatura para contarem suas experiências, pois a arte é um lugar especial para que essas histórias cheguem ao conhecimento das pessoas.

Lima Barreto foi mandado para o hospício devido ao seu vício: o álcool. Ele foi internado duas vezes, a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. Essa relação entre polícia e manicômio é estranhamente íntima.

“Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo de seus podêres para curar-me. Fêz-me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar-me embora. Disse-me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha tido:

      – Não há dúvida... Mas o senhor ou você – não me recordo – veio pela polícia, tem que se demorar um pouco”.(p. 178)

Esse episódio demonstra que o modo como a autoridade define as normas numa cadeia é muito próxima ao modo como são definidas as normas num hospício, embora suas justificativas sejam bastante distintas: uma cadeia recebe criminosos, pessoas que devem pagar por erros cometidos; um hospício recebe pessoas que não estão em equilíbrio normal e devem ser afastadas do convívio social. Ambos os ambientes têm uma espécie de busca da redenção, de possibilitar a reabilitação dos indivíduos para viver em sociedade.

A leitura das obras escolhidas para esse trabalho faz notar o quanto decidir quem merece ser preso é, muitas vezes, um ato arbitrário e injusto e o quanto são perigosas as classificações de uma pessoa: seja como criminosa, seja como louca. Isso sem entrar no mérito das definições de crime e loucura, o que seria tema suficiente para inúmeras páginas; cabe a esse texto notar apenas as falhas dessas classificações.

O presídio e o hospício são armas nas mãos dos que estão no poder, dos que podem decidir quem é, ou não, apto a viver em sociedade. Têm função muito útil para a realização do “progresso” da humanidade que mantém a ordem de dominação já presente nas sociedades de classes. O filósofo Walter Benjamin não acredita em uma evolução natural do mundo, mas sim que há uma constante luta entre opressores e oprimidos, na qual os opressores saem campeões na grande maioria das vezes e a ordem de classes se mantém. Nesse sentido, as instituições em questão são interessantes para afastar aqueles que não se adaptam à ordem vigente, portanto as obras referidas nesse trabalho têm, sem dúvida, um tom de protesto e de denúncia. Pois a história segundo a teoria de Benjamin pode ser vista de duas formas:

“com implicações políticas evidentes para o presente: a confortável doutrina ‘progressista’, para a qual o progresso histórico, a evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz, é a norma, e aquela que ele afirma ser seu desejo, situada do ponto de vista da tradição dos oprimidos, para a qual a norma, a regra da história é, ao contrário, a opressão, a barbárie, a violência dos vencedores”. (p. 83) [3]

É verdade que Benjamin se dedica especialmente à luta de classes em suas teses “Sobre o conceito de história”, mas Michael Löwy destaca que elas são muito mais abrangentes:

“Pouco a pouco me dei conta também da dimensão universal das proposições de Benjamin, de sua importância para compreender – ‘do ponto de vista dos vencidos’ – não só a história das classes oprimidas, mas também a das mulheres – a metade da humanidade –, dos judeus, dos ciganos, dos índios das Américas, dos curdos, dos negros, das minorias sexuais, isto é, dos parias – no sentido que Hannah Arendt dava a este termo – de todas as épocas e de todos os continentes” (p.39)3

Por essa razão, Benjamin torna-se um teórico muito importante para essa análise, pois acredita ser fundamental interpretar a história do ponto de vista dos vencidos.

È interessante notar que tanto o narrador de Lima Barreto, quanto o de Graciliano Ramos não dizem diretamente que se sentem injustiçados, embora o tenham sido e isso se explicita no próprio texto. Não ficam insistindo que não deveriam estar naquelas situações, isso faz com que a indignação do leitor não fique restrita às suas histórias particulares, mas se direcione a situações vivenciadas por muitas pessoas. O que os autores retratam, e é o que mais interessa nesses livros, é um olhar de quem foi preso, algo que é muito mais abrangente do que se fixar no olhar do narrador.

O livro de memórias foi uma escolha muito adequada para se contarem histórias a partir de ponto de vista dos encarcerados, pois permite que o autor reflita livremente sobre assuntos diversificados, caracterizando melhor esse outro lado da história.

É fundamental perceber que o fato de terem sido presos muda o modo como os autores viam o mundo; em Graciliano esse fato é evidente, ele demonstra que o tempo todo reavalia seus conceitos e valores. Ele é, inclusive, bastante positivo com relação a sua situação: ao invés de passar o tempo todo reclamando da fatalidade a que foi submetido, se prende ao lado bom das pessoas e muitas vezes se surpreende com a caridade de muitos dos seus companheiros, dos guardas e funcionários do presídio. Lima Barreto, por outro lado, aceita a sua situação de outra forma:

“A minha consciência, a certeza em que eu estava de que o culpado de estar ali era eu, era a minha fraca vontade, que, entretanto, era forte em outros sentidos, obrigavam-me, para meu decôro moral a nada pedir aos camaradas que me suavizassem a minha situação”. (p.197)

A proximidade do hospício à prisão é mais evidente, pois as pessoas consideradas loucas ou desequilibradas eram obrigadas a viverem trancafiadas num ambiente com indivíduos com os mesmos tipos de “distúrbios”; já a semelhança de um presídio a um manicômio não é tão clara para quem está fora dela, talvez por isso mesmo o narrador de Graciliano mencione tantas vezes a loucura como um elemento presente em sua experiência carcerária:

“A lembrança da noite, do pesadelo extenso, do calor, do negro a coçar as pelancas nojentas, afligiu-me. Naquele estado, o estômago vazio, a garganta seca, ia estirar-me novamente na tábua suja, asfixiar-me, ouvir gemidos, roncos, pragas, borborigmos, delirar, avizinhar-me outra vez da loucura”. (vol. I, p. 152)

No livro de Graciliano a prisão está em primeiro plano e a loucura aparece de modo secundário. O contrário se dá no livro de Lima Barreto, ou seja, a loucura é o tema central e a prisão é, de certa forma, secundária. É importante notar que a relação é entre prisão e loucura e não: crime e loucura ou presídio e hospício, palavras de mesma natureza. Numa relação de causa e conseqüência: em Cemitério dos Vivos a loucura é causa e a prisão é conseqüência, enquanto que em Memórias do Cárcere a prisão é causa da loucura.

O tédio é um elemento que em muitos momentos faz Graciliano se aproximar do tresvario, a falta do que fazer o irrita profundamente, isso se dá também com Lima Barreto:

“O dia é de tédio e eu procuro meios e modos de fugir dele, de voltar-me para mim mesmo e examinar-me. Não posso e sofro. Arrependo-me de tudo, de não ter sido outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram.” (p. 80)

Graciliano também apresenta reflexões sobre si próprio, mas em nenhum momento ele se mostra arrependido de sua vida anterior à prisão. Ele é muito crítico e analítico com seus próprios sentimentos e suas próprias atitudes, percebe claramente o quanto uma pessoa muda quando passa por uma experiência como a dele, como o ambiente interfere nas ações dessas pessoas:

“Esse automatismo, renovado com freqüência nas cadeias, é uma tortura; as pessoas livres não imaginam a extensão do tormento. Certo há uma razão para nos mexermos desta ou daquela maneira, mas, desconhecendo o móvel dos nossos atos, andamos à toa, desarvorados. Roubam-nos completamente a iniciativa, os nossos desejos, os intuitos mais reservados estão sujeitos a verificação; e forçam-nos a procedimento desarrazoado. Perdemo-nos em conjeturas” (vol. I, p. 174)

É interessante notar o quanto esses lugares perdem o possível papel de propiciar o bem-estar social e se apresentam como um modo de impor o afastamento daqueles que não estão devidamente imersos na sociedade. Graciliano se refere em poucos momentos à situação histórica em que vive, mas quando o faz é muito realista:

“Desviava-me dessas chateações próximas,refugiava-me noutras distantes. O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, velos prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido” (vol.I, p. 178).

Com esse propósito - seja num hospício, no porão de um navio ou em uma prisão convencional - há sempre um nivelamento entre os que se encontram presos. Numa situação como as que nossos protagonistas vivenciaram: dinheiro, títulos, posição social; tudo se dilui. Para isso, muitas providências são tomadas, como o uso de uniformes e o corte de cabelo, por exemplo; isso embora as justificativas possam ser outras, quando são dadas. Graciliano percebeu também esse fato:

“Os lineamentos dos homens pouco a pouco iam se definindo; às vezes se misturavam, e em roda surgiam figuras desconexas, uma balbúrdia” (vol.I, p. 156).

As necessidades são muitas vezes mencionadas nos livros em questão. É interessante perceber que elas, sejam de ordem material ou espiritual, adquirem novo valor quando se está preso. O dinheiro, por exemplo, é uma preocupação para ambos os narradores. Eles, inclusive, fazem da literatura um meio de ganhá-lo, mas não é só por isso que escrevem; tanto para Graciliano Ramos quanto para Lima Barreto escrever é uma necessidade. Michael Lövy, ao comentar a Tese IV, de Walter Benjamin; demonstra mais ou menos como essa relação ambivalente é fundamental:

“Existe, então, em Benjamin, uma dialética do material e do espiritual na luta de classes que vai além do modelo bem mecanicista da infra-estrutura e da superestrutura: o que está em jogo na luta é material, mas a motivação dos atores sociais é espiritual. Se não fosse estimulada por algumas qualidades morais, a classe dominada não conseguiria lutar por sua libertação”. (p. 59) [4]

O cigarro, o álcool, a comida, as roupas; são bens que dentro de uma “prisão” – no sentido amplo do termo – adquirem novo valor, não só pela escassez, mas também pelo tipo de relação estabelecida entre as pessoas. O álcool e o cigarro, para Graciliano Ramos foi mais do que um vício no período em que esteve preso, foi essencial para a sua sobrevivência. Para Lima Barreto o cigarro também lhe amaciava a estadia naquele ambiente, já o álcool foi a causa central de sua desgraça.

Há uma diferença entre esses dois autores que é importante mencionar: Lima Barreto é um inadaptado ao mundo, não só ao manicômio:

“Aborrece-me este hospício; eu sou bem tratado; mas me falta ar, luz, liberdade. Não tenho meus livros à mão; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é a minha casa. Meu filho ainda não delira, mas a tôda hora espero que tenha o primeiro ataque...” (p. 81)

Já Graciliano defende que é possível se “acomodar” a tudo. Ele narra situações inverossímeis com uma naturalidade que incomoda o leitor, há mudanças de valores que não são fáceis de assimilarmos, isso porque nosso olhar se distancia das experiências narradas:

“Em condições normais balanceamos as nossas possibilidades, e não vemos além delas; a sociedade nos determina com rigor os atos possíveis, e às vezes, para nos movermos, necessitamos um papel selado, assinado, carimbado; sem isso, encrencamos, certamente. Ali dentro essas limitações desaparecem, anulam-se as fronteiras, vemos que nos podemos mover para um lado e para o outro, indiferente às restrições, alheios às conveniências. Movemo-nos até bater com o nariz numa porta de ferro. Mas esse obstáculo é transitório. Descerra-se a porta, queremos transpô-la, sem perguntar se havia para isso uma proibição. Os deveres incutidos lá fora não existem: vamos até onde podemos ir”.(vol.I, p. 366)

È muito interessante essa proposta de inversão do conceito tradicional de liberdade. A prisão possibilita uma nova visão sobre pessoas, acontecimentos e sobre si mesmos. Graciliano se descobre um homem mais forte do que acreditava ser, capaz de atitudes que nem ele próprio esperava, já as auto-análises de Lima Barreto são mais melancólicas:

“Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca, eu mesmo com uma fama de bêbedo, tolerado na repartição que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. Môço, eu não podia apelar para minha mocidade; ilustrado, não podia fazer valer a minha ilustração; educado, era tomado por um vagabundo por todo mundo e sofria as maiores humilhações. A vida não me tinha mais sabor e parecia que me abandonava à esperança”.(p.176)

Esse trecho é anterior a sua primeira internação. É curioso como a prisão pela qual Graciliano passou foi muito mais cruel e violenta que o hospício, no qual esteve Lima Barreto; mas enquanto Graciliano encontra na maior das imundícies alguma dignidade, Lima Barreto só vê sua própria degeneração. O mais incrível é que ele é o tempo todo consciente disso, o olhar que ele tem sobre sua própria situação é claro e muito analítico, esse é um ponto essencial para aqueles que contam histórias que vão de encontro à dominação:

“Um dos horrores de qualquer reclusão é nunca se poder estar só. No meio daquela multidão, há sempre um que nos vem falar isto ou aquilo. No hospício, eu ressenti esse incômodo que só pode ser compreendido por quem já se viu recolhido a qualquer prisão; lá, porém, é pior do que em outra qualquer, sobretudo quando se está perfeitamente lúcido, como eu estava, e não pode, por piedade, tratar com mau humor os outros companheiros, que são doentes.” (p.210)

Para Benjamin, a rememoração tem um caráter de redenção, simplificando bastante as implicações dessa afirmação, fica claro que a redenção dos autores aqui estudados não está na prisão, mas sim nos seus escritos. Ambos tencionaram escrever as experiências enquanto foram vividas. Lima Barreto tomou notas e escreveu a partir delas. Graciliano tomou notas que se perderam, mas afirma em diversos momentos ao longo da narrativa que esse livro seria escrito, ele é, inclusive, uma forma de ameaçar os oficiais que o prendem.

Lima Barreto, também anuncia o lançamento do livro enquanto está internado, numa entrevista a um jornalista; ambos têm a escrita não só como meio de conhecerem a si próprios e as experiências vividas, mas como forma de poder.

Benjamin chama a atenção também para a importância que a história tem no presente, ela determina a visão que se tem nesse momento. Se o leitor tem contato com a história pelo viés do oprimido muda completamente seu modo de lutar contra as injustiças do mundo.

Escrever foi a maneira encontrada pelos autores em questão para fugir da alienação a que foram coagidos. Um indício forte dessa alienação está presente nas entrelinhas do texto, ou seja, a pouca marcação de tempo ao longo da narrativa. Embora na primeira parte de Cemitério dos Vivos, intitulada “Diário do Hospício (apontamentos)”, as datas dos acontecimentos sejam mencionadas, no texto principal elas quase não aparecem. Isso porque os sujeitos foram obrigatoriamente expulsos não apenas do espaço, mas também do tempo, o que é bastante grave, pelo fato de estarem alheios ao que está acontecendo no momento em que viveram. Graciliano afirma em certa altura do texto que “o tempo deixara de existir”. É como se suas histórias não pertencessem ao momento histórico dos homens livres, fossem exclusivas daqueles que se encontram presos e não têm o direito de intervir na história oficial. Seus livros são uma intervenção posterior.

Walter Benjamin inicia a Tese VI da seguinte forma:

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo”.

Essa afirmação é fundamental para se pensar um livro de memórias, pois embora seja um olhar do oprimido, não pode ser considerado a verdade, é apenas mais um olhar. Um olhar que interessa especialmente a quem não se identifica com os “vencedores”. Graciliano Ramos escreveu o livro baseado em suas próprias recordações, não utilizou anotações e acha que isso foi um ganho, pois acreditava que se pudesse escrever tudo como realmente aconteceu o livro seria por demais inverossímil. O caráter pessoal dos autores, que se coloca num primeiro momento pela escolha do foco narrativo, é importante para a consideração dessa parcialidade da narrativa, que nem por isso perde seu caráter denunciador, pelo contrário, representa a história de pessoas reais que foram pela contra-mão da história.

Um exemplo interessante da parcialidade e pessoalidade dos textos é o preconceito contra homossexuais apresentados pelos dois autores. Para Lima Barreto trata-se de degradação causada pela situação:

“Há outros que se degradam no sexo, com uma indiferença de amaldiçoados a isso... É um horror silencioso, que nos apavora e faz-nos cobrir a humanidade de piedade, e nos amedronta sôbre a nossa vida a vir”. (p. 185)

Já Graciliano tem consciência de seu preconceito e percebe que ao longo de sua experiência ele vai se diluindo, sem nunca desaparecer. Ele sente repulsa, mas aprendeu a respeitar os esses homens à sua maneira. Essa mudança de comportamento é significativa, já que os homossexuais são ainda mais oprimidos.

 “Esse nojo e esses escrúpulos esmorecem com o tempo: refletindo, alinhavando motivos, inclinamo-nos a uma indecisa piedade, afinal até isto míngua e desaparece: achamos aqueles invertidos pessoas vulgares submetidas a condições especiais: semelhante aos que perderam em acidente olhos ou braços” (vol.I, p. 310).

Graciliano Ramos acredita que o ambiente novo os mudava completamente tornando-os instintivos, próximos dos animais. Em diversos momentos ele chama a atenção para a mudança de aspectos físicos e psíquicos nos companheiros presos e em si mesmo:

“Tinha um coração humano, sem dúvida, mas adquirira hábitos de animal. Enfim todos nos animalizávamos depressa. O rumor dos ventres à noite, a horrível imundície, as cenas ignóbeis na latrina já não nos faziam mossa. Rixas de quando em quando, sem motivo aparente; soldados ébrios a desmandar-se em coações e injúrias. Essas coisas a princípio me abalavam; tornaram-se depois quase naturais. E via-me agora embrulhado num pugilato”. (vol.II, p.147-148)

Não é simples um homem perceber sua própria história de opressão, suas próprias aquisições de pensamentos e comportamentos advindos dessa situação e é isso que torna as obras Memórias do Cárcere e Cemitério dos Vivos tão interessantes e importantes para a história. Embora se tratem de ficção, deixam no leitor a marca de denuncia de quem efetivamente viveu uma experiência de tirania, mas não foi engolido pela história oficial.

 

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos; prefácio de Eugênio Gomes, São Paulo, Brasiliense, 1961.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”; São Paulo, Boitempo, 2005.

RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere(vol.I); prefácio de Nelson Werneck Sodré,  ilustrações de Percy Deane, 31º ed., São Paulo, Record, 1994.

RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere(volII); ; prefácio de Nelson Werneck Sodré,    ilustrações de Percy Deane, 32º ed., São Paulo, Record, 1996.



[1] Ao longo do texto serão mencionadas apenas as páginas das citações dos livros Memórias do Cárcere vol. I, Memórias do Cárcere vol. II e Cemitério dos Vivos, a bibliografia completa se encontra no final do texto.

[2] Tema usado por Walter Benjamin nas teses “Sobre o conceito de história”.

[3] LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”

[4] LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”