QUE HISTÓRIA ESPERA SEU FIM LÁ EMBAIXO?

Martha de Mello Ribeiro
Doutoranda Teoria e História Literária
melloribeiro@bol.com.br

 
É neste aspecto que o abraço e a leitura
mais se assemelham: o fato de que
abrem em seu interior tempos e espaços
diferentes do tempo e do espaço mensuráveis.

Italo Calvino
Se um viajante numa noite de inverno, 1979

            Italo Calvino (1923-1985), um dos mais originais escritores italianos do século XX, escreve seu primeiro romance, Il sentiero dei nidi di ragno, em 1947. A partir deste romance Calvino passa a ser identificado como um escritor não-realista. Nos anos 60 participa ativamente das discussões críticas sobre o destino da literatura e sua relação com a ciência. Participando do grupo OULIPO (Ouvroir de littérature potentielle) Calvino realiza uma série de experiências matemático-literárias. Em função da não-linearidade, da estrutura fragmentada e de sua heterogeneidade de estilos o romance Se um viajante numa noite de inverno (Se una notte d’inverno un viaggiatore, 1979), um dos últimos de Calvino, é definido (pelo próprio autor) como hiper-romance, isto é, um romance longo mas construído com histórias que se cruzam: “Meu intuito aí foi dar a essência do romanesco concentrando-a em dez romances, que pelos meios mais diversos desenvolvem um núcleo comum, e que agem sobre um quadro que o determina e é determinado por ele” (2003, p. 135).

O romance Se um viajante numa noite de inverno é uma “amostragem da multiplicidade potencial do narrável [1] ”, no qual o leitor tem a liberdade de criar seu próprio livro. A não-linearidade do romance permite ao leitor escolher seu próprio percurso de leitura. Esta situação impede a fixidez de uma leitura crítica “correta”, pois ler um hipertexto em sua totalidade é impossível, permitindo assim a combinação de infinitas leituras. O livro se alterna entre dez fragmentos de texto e doze capítulos sobre a vida de um leitor que lê este mesmo livro. “Quem é você leitor?”, pergunta o narrador logo nas primeiras páginas do romance, completando em seguida que seria uma indiscrição perguntar sua história, sua biografia, idade...o interesse é pelo estado de ânimo do leitor. Começa assim o jogo entre o romance e o leitor que lhe vira as páginas. Refletido em espelho nas páginas do romance o ato de leitura toma forma de uma caçada apaixonante, labiríntica, onde não é possível distinguir caça e caçador.

Se um viajante numa noite de inverno relata a jornada do Leitor, personagem principal do romance, em busca do fim da história. Abandonando sua confortável posição passiva de leitor, ele parte em busca do texto original - ao todo são dez romances em diferentes estilos que, por uma série de motivos rocambolescos, permanecem inacabados para o Leitor. A busca de um determinado livro sempre o leva ao encontro de outro livro, totalmente diverso ao anterior, igualmente instigante e surpreendente, mas, como o anterior, sem um fim. Nesta viagem, onde todos os caminhos sempre se bifurcam, somos convidados a percorrer um labirinto de livros, de imagens, de mistérios, de formas, de sonhos, de violência, de falsificações, onde o humor e a angústia permanecem inseparáveis. Ao percebermos a estrutura monstruosa, a grande rede que vai se montando a cada página virada, será tarde demais: entramos no romance (e no labirinto).

O livro começa com a leitura do romance Se um viajante numa noite de inverno de Italo Calvino. Em determinado ponto da leitura, a melhor parte, o Leitor descobre que o livro está defeituoso, as páginas se repetem. Contrariado, o Leitor se dirige à livraria para procurar o livro perdido e encontra a Leitora: Ludmilla, que está com o mesmo problema que ele. Ambos descobrem que o romance iniciado não é de Calvino, mas de um autor polonês. O Leitor já não se interessa mais pelo livro de Calvino, ele deseja agora continuar a leitura do livro polonês. Mas, novamente outro erro: o romance que ele tem nas mãos não é polonês e sim cimério. Intrigado, o Leitor marca um encontro com Ludmilla na pequena sala do professor de literatura Uzi-Tuzii, estudioso da língua ciméria.  Quando o leitor menciona ao professor os nome dos personagens, este imediatamente o reconhece como a obra do maior representante da literatura ciméria: Ukko Ahti. E se põe a traduzir a obra em cimério ao improviso. Mas, tanto a Leitora como o Leitor verificam que, novamente, se trata de um outro romance. Destarte, saltando de história em história, inicia-se a jornada do Leitor, e também a nossa, no labirinto de livros apócrifos.

Se um viajante numa noite de inverno reproduz este mecanismo - busca e perda do fio da história-, dez vezes. Esta estrutura modular, combinatória, mecânica até, resulta numa força investigativa incrível, interromper os romances sempre no momento mais interessante, instiga não só o Leitor – personagem do romance – , mas nós leitores a buscar um fim para as histórias. É um jogo de combinação (um puzzle) que Calvino nos propõe, e o valor do jogo encontra-se na própria busca, no exercício consciente e constante de encontrar uma orientação (o fio da meada) no texto. Dentro do jogo somos estimulados a criar um final para cada livro interrompido (o que multiplica a ação da leitura ao infinito) e desafiados a tentar descobrir entre eles uma coerência narrativa; tal como existe nos capítulos que relatam a jornada do Leitor em busca do fim da história. Neste tipo de literatura (hipertexto ou hiper-romance) o leitor transformado também em autor, não se limita apenas a reconstruir a narrativa, ele a cria e a inventa de novo, de forma totalmente imprevisível: “é a ação da leitura que se torna decisiva; é do leitor o papel de fazer com que a literatura explique a sua força crítica e isto pode vir independentemente da intenção do autor” (CALVINO, 1995, 10). A particularidade da literatura está no fato de que ela constitui uma comunicação: o autor não tem como precisar o que ele teve a intenção de dizer. Feito estas ressalvas, nos sentimos um pouco mais à vontade para exercer nossa apropriação do texto.

O romance inacabado de Ukko Ahti Debruçando-se na borda da costa escarpada inicia-se como um romance de introspecção romântica: “Estou ficando convencido de que o mundo quer dizer-me alguma coisa, mandar-me mensagens, avisos, sinais” (p.60). O estilo memorialista autobiográfico é reconstruído com alguns dos seus principais ingredientes: há pouco ou nenhum diálogo; ênfase na confissão; presença de um eu sofredor; a estrutura, em forma de diário, narra os fatos ocorridos ao personagem ao cabo de uma semana; etc. Mas, antes do protagonista se matar, o eu soberano se desestabiliza e o romance se interrompe: “De imediato senti que na ordem perfeita do universo se abrira uma brecha, um rasgo irreparável” (p.73). Na matriz autobiográfica se insere o germe do romance moderno: a aventura - que é a demonstração racional do homem sobre os obstáculos: “Fugi – disse-me.- não me denuncie” (p.73). O fugitivo, representante do mundo externo, condena o diário íntimo, fechado em sua perfeição, à autofagia.

Sobre o romance cimério teoriza o professor Uzi-Tuzii: “Debruçando-se na borda da costa escarpada é o texto mais representativo da prosa ciméria, pelo que exprime e mais ainda pelo que oculta”. E ainda: “A continuação do romance cimério só pode continuar no além, [...] na língua silenciosa à qual remetem todas as palavras dos livros que acreditamos ler [2] (p.76-77). Contra o niilismo do professor reage apaixonadamente a Leitora: - “‘Acreditamos...’ Por que ‘acreditamos’? Eu gosto de ler, ler de verdade”. Em seguida, o pensamento tornado vivo do Leitor acentua ainda mais o gesto da Leitora de se colocar no mundo: “Seu modo de estar no mundo, plena de interesse por aquilo que o mundo pode oferecer-lhe, afasta o abismo egocêntrico do romance suicida que acaba afundando dentro dele mesmo” (p.77-78). Agarrar-se ao que há de concreto no mundo é afastar-se da idéia de um misticismo literário, no qual tudo já foi dito ou escrito. Pois, se tudo já foi escrito ou dito o que nos resta para ler ou escrever? A resposta da Leitora para esta tese que nos anula ou fantasmagoriza é o prazer combinatório e infinito da leitura: “Ler é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém sabe ainda o que será...”

O livro que eu gostaria de ler agora é um romance em que se narre uma história ainda por vir, como um trovão ainda confuso” (p.79) – esta é uma das pistas do gosto literário da Leitora. Neste momento, como se a história acompanhasse os desejos da Leitora, irrompe na sala Lotaria, irmã de Ludmilla e especialista em lingüística: o romance de Ukko Ahti, Debruçando-se na borda da costa escarpada, é na verdade címbrico e se intitula: Sem temer o vento e a vertigem. “É falso!” Grita em protesto o professor Uzzi-Tuzii, alegando problemas políticos entre címbricos e cimérios ao final da Primeira Guerra Mundial. Mas, nem o Leitor nem a Leitora se interessam por esta polêmica, eles desejam prosseguir com o romance interrompido apenas pelo prazer da leitura, comenta o narrador.

Reiniciado o romance, chega o trovão: Sem temer o vento e a vertigem nada tem haver com os romances anteriores. “Seja como for, é um romance no qual, tendo entrado, gostariam de prosseguir sem parar” (p.81). Nesta parte do livro de Calvino, a Leitora nos dá outra pista sobre sua expectativa de Leitora (“que faz com que o autor não resista e dê ao seu leitor o que ele espera”):

O romance que mais gostaria de ler neste momento – ela explica – é aquele que deveria ter como força motriz o desejo de contar, de acumular histórias sobre histórias, sem pretender impor uma visão do mundo, mas apenas fazer você assistir ao crescimento do romance, como uma planta, um entrelaçado de ramos e folhas. (p.96-97)

É o desejo da Leitora por uma leitura primitiva e natural que impulsiona o Leitor ao centro do labirinto: a editora, local onde todos os livros ganham corpo. Mas, como nos adverte o narrador: “Para avançar na leitura, é preciso um gesto que atravesse a solidez material do livro e dê a você o acesso à substância incorpórea dele” (1999, p. 48). Lá o Leitor descobre que por trás dos originais trocados existe uma conspiração arquitetada pelo Tradutor Ermes Marana (noção importantíssima em literatura. Entretanto, não iremos nos prolongar teoricamente sobre ela, pois este debate se faz de forma bem mais interessante no próprio romance). Em suas cartas, o tradutor, também apaixonado por Ludmilla, relata o desejo de infestar as estantes com livros apócrifos:

Como fazer para derrotar não os autores, mas a função do autor, a idéia de que atrás de cada livro há alguém que garante a verdade daquele mundo de fantasmas e ficções pelo simples fato de nele ter investido sua própria verdade, de ter se identificado com essa construção de palavras? (p.163)

O que perturba Marana não é um nome de autor, mas a relação sedutora entre leitor e livro na densa superfície do texto literário. Esta voz misteriosa que salta dos livros é o que perturba o tradutor. Seu sonho é “uma literatura composta exclusivamente de obras apócrifas”. Assim, “entre o livro e ela (Ludmilla) sempre se insinuaria a sombra da mistificação, e ele, identificado com cada uma das mistificações, teria confirmada a sua presença”. Porém,  Marana não pode lutar contra algo sobre o qual não tem poder: a leitura. Em suas cartas, Marana deixa uma pista ao Leitor: um nome de autor, Silas Flannery . Mas, o velho romancista (um autor!!), também não consegue ajudar o Leitor a terminar a história. Na verdade o escritor irlandês ainda nem começou a escrever, ele espera por uma inspiração telepática para escrever o livro. A partir de seu encontro com o autor, o Leitor entrará cada vez mais na história, transformando-se até em agente secreto.

Na trama não-linear, auto-referente e heterogênea do romance Se um viajante numa noite de inverno, os fundamentos de construção do texto são projetados no interior do texto. No diário íntimo do escritor de best-sellers Sillas Flannery, capítulo 8,  lê-se: “Ás vezes penso no assunto do livro  a ser escrito como algo que já existe: pensamentos já pensados, diálogos já proferidos, histórias já ocorridas, lugares e ambientes já vistos”. O autor, atormentado por não saber como chegar à página escrita,  reflete: “gostaria de poder escrever um livro que não fosse mais que um incipt, que conservasse em toda a sua duração as potencialidades do início, [...] Deveria ele interromper-se após o primeiro parágrafo?”. Em seguida, ele tem a idéia de copiar em seu caderno o início do romance de Dostoievski, Crime e castigo “para ver se a carga de energia contida naquele início se comunica a minha mão”. Após se encontrar com o Leitor ele faz as seguintes anotações: “Veio-me a idéia de escrever um romance feito só de começos de romances. O protagonista poderia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o novo romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso, e ele não consegue ir além do início...” e assim por diante.

Não há dúvidas, o livro que estamos lendo (nós leitores exteriores) foi escrito por um dos seus personagens: Sillas Flannery . O autor encontra-se no interior do seu próprio livro, ele é um dos personagens. E o Leitor, assim como a Leitora, atravessam os limites da folha impressa e entram no espaço virtual do texto:

Um ciúme pungente me invade (diz o autor), [...] deste mesmo eu de tinta, de pontos e de vírgulas, que escreveu os romances que não escreverei mais, o autor que continua a entrar na intimidade dessa jovem, ao passo que eu, o eu de aqui e agora, [...] dela estou separado pela imensa distância de um teclado datilográfico e de uma folha branca no carro da máquina (p.195).

O importante para mim é que esse importuno (o Leitor) se afaste o máximo possível de Ludmilla; assim, encorajei-o a fazer a viagem e realizar investigações as mais minuciosas até achar o tradutor-fantasma (p.201)

“A figura do autor se tornou plural e se desloca sempre em grupo, porque ninguém pode ser delegado a representar ninguém”, diz o editor (p.100). Dizer que a figura do autor se tornou plural não significa dizer que o autor morreu. A noção de autor se tornou bem mais complexa no mundo atual, não podemos mais identifica-lo a uma pessoa de carne e osso, dono de uma biografia, estado civil, renda...a figura do autor se tornou fluida:  “a pessoa eu, explícita ou implícita, fragmenta-se em figuras diversas, em um eu que está escrevendo e um eu que é escrito, em um eu empírico que está às costas do eu que está escrevendo e em um eu mítico que se faz de modelo ao eu que é escrito. O eu do autor no escrever se dissolve” (CALVINO, 1995, p.6). Como instituição o autor está morto, mas dentro do texto, de uma certa forma, desejamos o autor: precisamos de sua figura mítica, assim como ele precisa de nós: os Leitores.

O Leitor já foi na livraria, na editora, já esteve com o professor de literatura, com o tradutor, com o autor... aonde mais poderia ir o Leitor para procurar o fim da história? Claro que Calvino não poderia deixar de lado a Biblioteca. Lá, o Leitor encontra vários tipos de leitores. Um deles acredita que já leu um romance que começa assim: Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas  que se entrecruzam no tapete de folhas iluminadas pela lua ao redor de uma cova vazia. “Que história espera seu fim lá embaixo?”, ele pergunta, ansioso por ouvir o relato. O Leitor tenta avisar que não é essa história que ele gostaria de saber como termina, e é interrompido pelo sétimo leitor: “O senhor acredita que toda história precisa ter princípio e fim? Antigamente, a narrativa tinha só dois jeitos de acabar: o herói e a heroína se casavam ou morriam” (p.262). O Leitor escolhe casar com Ludmilla.

Antes de dormir, eles terminam de ler o novo romance de Italo Calvino Se um viajante numa noite de inverno...

De forma crítica e bem-humorada (com a angústia própria das pessoas lúcidas), Calvino ficcionaliza muitas das técnicas narrativas modernistas: o uso da repetição, da folha em branco (referência crítica à vanguarda, na idéia de uma essência da arte), do pastiche, etc; e superpõe, parodiando talvez, diversos gêneros da literatura: policial; psicológico; revolucionário; de amor; erótico; fantástico; abstrato; metafísico; exótico. Nossa hipótese: Simular que estes dez romances já existem (ou realmente existem?), apresentar somente partes (resumos) deles e os intercalar com a história de um leitor que os lê é uma astúcia de Calvino. Primeiro: ele evita ter que escrever romances enormes, laboriosos, de uma única idéia, que poderiam afastar o leitor contemporâneo, educado por imagens e acostumado a obter as informações em poucos minutos; Segundo: é uma forma de resistência, uma ironia positiva, ao mundo dos mass-media, e, principalmente, à desorganização e à inconsistência da linguagem, das imagens e do mundo; Terceiro: o escrever breve é mais produtivo, do ponto de vista de formação de um leitor médio, do que romances com quinhentas páginas. Afinal o hábito da leitura se adquire lendo.

Mas talvez a inconsistência não esteja somente na linguagem e nas imagens: está no próprio mundo. O vírus ataca a vida das pessoas e a história das nações torna todas as histórias informes, fortuitas, confusas, sem princípio nem fim. Meu mal-estar advém da perda da forma que constato na vida, à qual procuro opor a única defesa que consigo imaginar: uma idéia da literatura. (CALVINO, 2003, p. 73).

“O romance como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas no mundo” (CALVINO, 2003, p.121) é a idéia de Calvino para a literatura. O romance Se um viajante numa noite de inverno é um compêndio da história da literatura editada por seu leitor. É um romance-enciclopédia feito de acumulações do passado, de associações de imagens, de gostos, de memórias, de leituras de um Calvino-leitor sem a pretensão de uma integração do saber: “Os livros modernos que mais admiramos nascem da confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão” (CALVINO, 2003, p.121). Remexidos e reordenados de várias maneiras, cada fragmento de romance nos dá acesso a livros já lidos pelo próprio Calvino: Borges, Pasternak, Proust, Haroun-al-Rachid, Italo Calvino, etc. “Quem somos nós?”, pergunta Calvino, “senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca” (2003, p.138). Mas não é essa a resposta que ele gostaria de dar, diz Calvino. O que ele gostaria era poder falar sobre o não-dito, o não-escrito. Ou quem sabe: ter acesso a uma experiência direta, pura, desinteressada como aquela da jovem e apaixonante leitora: Ludmilla, que deitada em sua espreguiçadeira simplesmente lê os livros: “É essa a beatitude especial que vejo aflorar na fisionomia da leitora e que a mim é negada”, sofre Sillas Flannery.

“Às vezes me convenço de que a mulher está lendo meu verdadeiro livro, aquele que há tempos eu deveria escrever e que jamais conseguirei [...] qualquer coisa que eu escreva será falsa se comparada a meu livro verdadeiro, que ninguém exceto ela jamais lerá”, (p.174). Se o verdadeiro livro que se deseja escrever, já está escrito. O que resta fazer? Negar o labirinto ou se deixar seduzir por ele? Para Calvino nem uma coisa nem outra. É o desafio ao labirinto que ele deseja salvar. O hiper-romance é o desafio de Calvino a este terrível labirinto criado pelo modernismo: pois se entendermos a modernidade como a arte do futuro, no sentido progressista, então a crença no progresso exigirá que a arte se aceite como instantaneamente perecível, ou seja, decadente. No terreno árido da modernidade se tornou característico o mito do começo absoluto. Este desejo constante de renovação é na verdade o traço característico de uma modernidade mais radical: a vanguarda, dialeticamente niilista e futurista. Por meio deste raciocínio, modernidade e decadência podem ser vistas como sinônimos, pois “a renovação incessante implica a obsolescência súbita. A passagem do novo para o velho é, a partir daí instantânea” (COMPAGNON, 1999, p. 38). Esse é o caminho que fatalmente leva a literatura e a arte para o desaparecimento.

É contra este terrível destino que se levanta Calvino .

REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA:

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

______. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das letras, 2003.

______. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

______. Cibernética e fantasmas. Anotações sobre a narrativa como processo combinatório. In: Saggi, v. I, Milano: Mondadori, 1995.

______. O desafio ao labirinto. In: Saggi, v. I, Milano: Mondadori, 1995.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.



[1] Definição de Calvino para a estrutura do hiper-romance: In: Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das letras, 2003, p.135.

[2] Grifo nosso.