EURÍPIDES: UM POETA DA VIDA
“ A revelação misteriosa de Dioniso
e a compreensão destes mistérios dionisíacos exigem que se dê à própria
existência a forma que se revela nestes mistérios: só assim, com a condição de
que se realize na própria existência a verdade revelada, pode-se compreender
esta revelação, pois realmente só se pode compreendê-la na forma da vida divina
presente no ser que somos nós, homens mortais.”
Jaa Torrano
A arte e o
estilo clássicos que promovem uma representação idealista de um mundo melhor,
normativo, de seres eticamente elevados, configura uma expressão aristocrática
que prevaleceu na Atenas clássica. O espírito e a vida pública chegam a uma
máxima interpenetração: o Estado Ateniense esforçava-se em convencer os
cidadãos de que a prosperidade individual era intrinsecamente ligada ao crescimento
e desenvolvimento da comunidade, “convertendo” o individualismo numa poderosa
força política. As artes enfrentam uma incompatibilidade: o liberalismo e
individualismo da democracia e a severidade e regularidade do estilo clássico.
Todos os grandes artistas e filósofos dos séculos V e IV a.C. estão ligados a
esse pensar aristocrático, excetuando-se Eurípides e os sofistas.
Nesse contexto,
a tragédia surge como “a criação de arte
mais característica da democracia ateniense, e em nenhuma outra forma de arte
se discernem, tão direta e tão claramente como nela , os conflitos internos da
sua estrutura social; seus aspectos externos eram democráticos, mas o seu
conteúdo era aristocrático” (A. Hauser). Nas tragédias, enfatizam-se os
atos elevados, próprios dos heróis, “cuja
sobre-humanidade reside em sua proximidade dos Deuses maior que a suportável
para os mortais” (J. Torrano). Mas para a pólis, as ações dos heróis são geralmente excessivas e
transgressoras (eles possuem uma falha trágica, uma harmatia). Os cidadãos (os espectadores, que são a personificação
da pólis) são representados pelo coro e através da empatia colocam-se no lugar do herói trágico, permitindo que este o
conduza através de suas experiências - “o
espectador sente como se estivesse atuando ele mesmo, goza os prazeres e sofre
as dores do personagem, ao extremo de pensar seus pensamentos” (A. Boal). A
função da tragédia é a de corrigir as ações do homem, do cidadão, purgando-lhe
da mente o medo, o terror e paixões
afins (harmatias) através da catarse, quando o espectador é
aterrorizado pelo espetáculo da catástrofe (portanto, não se admite happy end); neste momento o cidadão se
purifica da característica anti-social que reconhece possuir e que é contra a
lei, contra a cidade (o Estado). Sófocles e Ésquilo escolhem sem hesitar esse
esquema aristotélico de tragédia, descrito na Poética. Ambos estavam comprometidos com a nobreza e com a
aristocracia, que financiavam as peças: “Ésquilo,
em Orestes, apresenta como exemplo
aterrador o egoísmo; Sófocles, na sua Antígona, abraça a causa da heroína
contra o Estado democrático e, em Filocteto, manifesta uma frígida antipatia
pela fantasia burguesa e sem escrúpulos” (A. Hauser).
Porém, na
geração de Péricles, como nos diz
Tucídides, há uma transformação dos valores vigentes, em que a reflexão é
sinônimo de fraqueza e a loucura é vista como virilidade. Essa decomposição
externa da sociedade era o reflexo do detrimento interior do Homem em face de
uma complexificação da vida. Pela primeira vez surgia um movimento que
procurava dar liberdade a todos os indivíduos, de todas as classes. Começa a
nascer uma burguesia urbana, comprometida com uma nova poesia, influenciada
pela retórica sofística e impregnada dos problemas da época, em que se chocavam
forças contraditórias. Quando se chega ao século IV, todos os ramos da arte
encontram-se influenciados de alguma forma pelas idéias sofistas, com suas
críticas dos dogmas, mitos, tradições e convenções.
Eurípides é o
protagonista dessas novas idéias, de uma nova poesia. Ele é um democrata que
ataca a velha aristocracia com uma atitude cética perante o Estado como Estado.
O heroísmo dos homens e a exaltação dos deuses cedem lugar em Eurípides, para a
“representação de enfermidades da alma
humana: o descobrimento dos trágicos efeitos da patologia erótica e da erótica
deficiente, o efeito deformador da dor excessiva sobre o caráter.” (W.
Jaeger). Seus personagens estão sempre aterrorizados por sentimentos intensos e
dolorosos, beirando à loucura, que é tratada ora como virtude ora como vício, buscando o autoconhecimento, a realização
espiritual. Na sua Poética,
Aristóteles escreveu que um poeta imita “as
coisas quais eram ou são, quais os
outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser” (1460b, 8-11) e cita Sófocles que,
comparando-se a Eurípides, declarou: “Eu
pinto os homens como deveriam ser; Eurípides os pinta como eles são”. O
espectador não mais se sente aterrado diante do fatalismo da vontade divina,
mas espanta-se frente ao destino do homem, às variações bruscas de sua fortuna,
que permite, inclusive, uma predileção pelo happy
end. Com Eurípides, “a integridade da
natureza trágica dos acontecimentos fica até certo ponto enfraquecida e
destruída” (A. Hauser).
Sua modernidade
está relacionada às características de sua vida peculiar. Eurípides foi
discípulo de Anaxágoras e Protágoras (que o influenciaram profundamente),
abandonando a educação atlética e voltando-se para a pintura, a música e a
poesia. Passava dias sozinho, lendo, meditando, escrevendo. Seu afastamento do
mundo, seu temperamento melancólico e reflexivo causavam estranhamento em seu
tempo. Eurípides é o ‘primeiro psicólogo’, o ‘primeiro poeta infeliz, o
primeiro que a poesia tornou desgraçado’. Seu comportamento nos lembra a
moderna concepção de gênio, que falha em atingir seu êxito real, que é
incompreendido e que se isola do mundo. É relevante também a não participação
na vida pública de um autor pela primeira vez na história da literatura: “ Eurípides não era soldado, como Ésquilo,
nem dignitário sacerdotal, como Sófocles, mas, em compensação, é o primeiro
poeta de que se afirma haver possuído uma biblioteca” (A. Hauser).
Eurípides é autêntico, um fenômeno único entre os poetas de seu tempo, que está à frente de sua época e preconiza idéias
e sentimentos que ecoam em nossa moderna sociedade burguesa ocidental.
Nele mostra-se
com clareza a penetração da racionalidade na poesia, na vida. Segundo W.
Jaeger, Eurípides “pertence a dois
mundos: o mundo antigo, que estava destinado a derrubar, mas que brilha na sua
obra. A poesia conserva o papel de guia, mas abre o caminho ao novo espírito
que a havia de arredar da sua posição tradicional”. Em seus dramas a
atitude trágico-heróica perante a vida é destruída pelo realismo psicológico, que constituiria uma de suas
contribuições ao teatro grego: Eurípides nos mostra o que há de íntimo no
homem, seus sentimentos intensos e dolorosos. A
existência dos Deuses, o castigo divino, o heroísmo dos homens, a maldição
(culpa) são aspectos questionáveis e os assuntos mitológicos servem apenas de
pretexto para discutir questões filosóficas e os problemas comuns da vida da
classe média. “Foi Eurípides que
empreendeu a tarefa de retirar o mito do seu alheamento e da sua vacuidade,
corrigindo-lhe a exemplaridade por meio do contato com a realidade vivida e
desprovida de ilusões” (W. Jaeger).
Em suas peças trata, por exemplo, das relações dos sexos, do casamento,
da situação da mulher, valorizando pessoas marginalizadas socialmente, segundo
os valores sofistas que prezam as próprias qualidades do indivíduo, e não a sua
classe social. As suas criações não tinham o caráter educativo-coercitivo
presente nas obras de seus antecessores; pregavam antes uma educação cujo
objetivo era a formação de intelectuais, baseada na autoconsciência, na
auto-observação e na autocrítica, com “a
participação apaixonada em problemas especializados da política e da vida
espiritual” (W. Jaeger).
Nessa busca
pelo autoconhecimento, insere-se sua peça As
Bacantes, escrita provavelmente em seu último ano de vida. Nela o poeta
mergulha no mito dos deuses e nos cultos, numa ‘experiência religiosa e
embriaguez mística’. “Em As Bacantes já se apresenta todos os sintomas de uma
atitude fundamental do saber perante a fé, baseada numa verdade religiosa que
ultrapassava os limites da razão: o triunfo do maravilhoso e da conversão
interior sobre o intelecto, a aliança do individualismo e da religião contra o
Estado, a experiência imediata e libertadora da divindade na alma individual,
livre das limitações de toda lei” (W. Jaeger).
Na verdade, o
tema religioso serve de pano de fundo para tratar de assuntos relevantes para o
poeta psicólogo: a busca de si mesmo, o choque do Estado e da sociedade
burguesa (cidadania x individualismo) e o próprio teatro (a arte).
A peça começa
já de maneira inusitada: o próprio Dioniso - deus do teatro - encarnado em
forma humana, é quem diz o prólogo, apresentando-se como Deus nato a todos os
tebanos, exigindo-lhes que o reconheçam como tal. É ele também que apresenta e
preside o coro das bacantes, composto por estrangeiras vindas da Lídia. Temos
aqui duas inversões em relação às tragédias clássicas: o deus está ao lado do
coro - e não do herói trágico -, que não é formado por cidadãos tebanos e,
portanto, não representa a pólis, mas
sim o povo, com sua multiplicidade anônima e ao mesmo tempo sua individualidade
existencial.
Ao levar seus
seguidores para fora da cidade, Dioniso exige a negação ao Estado, instituindo
um novo culto: “Para onde conduzem os
coros, ó Dioniso portador do tirso? Para Nisa, berço das feras? Para os
píncaros da Corícia? Acaso para os frondosos tálamos do Olimpo? Piéria ditosa,
a que Évio honras confere!” (As
Bacantes, 556-561). Dioniso nos leva a um culto da vida, a uma busca do
autoconhecimento: “Ó feliz,
bem-aventurado aquele que, conhecendo os mistérios divinos sua vida santifica,
sua alma enfervesce, pelos montes dançando com Baco, purificado com os ritos
místicos” (72-75).
Em seu
empreendimento, Dioniso, deus da vida, encontra obstáculo em Penteu, rei de
Tebas, representação máxima do Estado, que o acusa de charlatanismo e de tentar
corromper os cidadãos, decretando sua prisão.
Reconhecemos nos diálogos entre esses personagens - e nos discursos da peça - a retórica que
Eurípides usa para “encaminhar a
linguagem poética da tragédia para a linguagem da vida ordinária, procurando
defender o direito do ponto de vista subjetivo do acusado, por todos os
processos de persuasão” (W. Jaeger). Ao final da tragédia, Penteu é logrado
por Dioniso, que o conduz às bacantes. Agave, a própria mãe do rei, principia o
sacrifício em que ele é dilacerado pelas mulheres possessas. Penteu dilacerado
representa a decadência do sistema das pólis,
o espírito falido das cidades gregas.
Encontramos na
peça todos os elementos que influíram nos dramas de Eurípides: a filosofia, a
retórica sofista, o naturalismo psicológico das personagens, a loucura ambígua
(boa e má), o questionamento dos deuses
(Agave diz ao Deus: “Não convém aos deuses ter paixões de mortais”), o
realismo burguês - com a predileção por personagens menos elevados (mais
reais). Eurípides constrói metáforas da ruptura entre a vida pública, citadina
e a vida privada, entre o herói elevado (mito) e o indivíduo comum (real). O
triunfo de Baco é o triunfo da “vida abençoada” e o começo de uma nova era.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Aristóteles.
Poética. Tradução de Eudoro de Souza.
São Paulo: Abril, 1973.
BOAL,
Augusto. Teatro do Oprimido e Outras
Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
Eurípides.
As Bacantes. Tradução de Eudoro de
Souza. São Paulo: Abril, 1976.
Eurípides.
Bacas, O Mito de Dioniso - Bakxai.
Tradução de Jaa Torrano. Edição Bilíngüe, São Paulo: Hucitec, 1995.
HAUSER,
Arnold. História Social da Literatura e
da Arte v. I. São Paulo: Mestre Jou, 1972.
JAEGER,
Werner. Paidéia - A Formação do Homem
Grego. São Paulo: Ed. Herder, 1973.