O
FANTÁSTICO E A FANTASIA
Jefferson
Vasques Rodrigues
“O abismo sonha um grito nos olhos de quem o sente”.
O mundo
real deve ser entendido, de um modo geral, como aquele conteúdo da consciência
constituído, por um lado, pela imagem do mundo mediada pela percepção (objeto),
e do outro, pelo conteúdo dessa imagem mediado pelo sentimento e pensamento
inconscientes (“ímago”). Assim, as duas “realidades” que se apresentam, o mundo
da consciência e o mundo do inconsciente, não disputam a supremacia, mas tornam-se
mutuamente relativos. Ninguém se oporá com obstinação a idéia de que a
realidade do inconsciente seja relativa; mas que a realidade do mundo
consciente seja posta em dúvida, eis o que não será tolerado com a mesma
facilidade. No entanto, as duas “realidades” são vivências psíquicas.
Não há
realidade absoluta, de um ponto de vista crítico. Conhecemos o mundo externo e
interno, consciente e inconsciente,
através das imagens mentais, como observado pelo psiquiatra suíço, Carl
Jung: “Longe, portanto, de ser um mundo material, esta realidade é um mundo
psíquico que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas acerca da
verdadeira natureza da matéria. Só o psíquico possui uma realidade imediata,
que abrange todas as formas, inclusive às idéias e pensamentos “irreais”, que
não se referem a nada de exterior”.
Quando se
torna ambígua a distinção da origem de
uma imagem mental, se essa provém do
mundo externo (percepções) ou interno (sensações, imaginação), surge o estado
de hesitação e simultaneidade pelo qual se caracteriza, em termos psicológicos,
a fantasia. Essa impossibilidade de distinção pode ocorrer em estados alterados
de consciência ou então pela projeção: um complexo1
afetivo (libido) associado a um objeto invade a estrutura consciente devido a
repressão unilateral (a paixão é um exemplo).
Essa hesitação real é a mesma hesitação representada para o
leitor num texto fantástico, hesitação que Todorov explicitou como
característica marcante da literatura desse gênero. A oscilação entre uma
explicação racional e conhecida (consciente) e a aceitação irracional de um
evento estranho às leis da natureza (inconsciente) acaba promovendo a simultaneidade desses aspectos. Além disso, para que exista a hesitação é
necessário que o leitor “participe” do texto e ao mesmo tempo perceba seu papel
de receptor. Portanto o leitor não poderia interpretar o texto alegoricamente, o que o colocaria
muito distante da narrativa, nem poeticamente, o que impediria o distanciamento
necessário. Essa forma de participação coincide com a maneira ideal de
compreensão das fantasias, descrita pela psicologia analítica, nas palavras de
seu fundador, Jung: “...porque para ser vivida de um modo completo a fantasia
exige, não só a visão passiva, mas a participação ativa do sujeito”. Só assim a
fantasia pode escapar à sina de se tornar um movimento esdrúxulo da imaginação
(rejeitado) ou de ser analisada ao pé da letra, concretamente, o que deixaria
de lado seu conteúdo simbólico (não se entenda símbolo como alegoria e sim como
“representação” de aspectos in/conscientes).
Todorov
esclarece que em muitos casos a história fantástica, que nasce da coexistência
de dois universos, acaba se dissolvendo
em um dos pólos dessa tensão, característica que esse crítico utilizou para sua
classificação. O texto é dito fantástico-estranho quando os acontecimentos
insólitos são explicados de forma racional e essa explicação é aceita
pelos personagens no mundo ficcional. Se os acontecimentos
sobrenaturais afirmam-se como inexplicáveis caracteriza-se o texto como
fantástico-maravilhoso.
Para
Todorov, a função do texto fantástico é “subtrair o texto à ação da lei e assim
transgredi-la”. Com isso seria possível burlar a censura social permitindo a
incursão por temas tabus para a coletividade como incesto, amor homossexual,
necrofilia, sensualidade excessiva, doenças mentais e vícios. Já para a
narrativa, a emersão de eventos sobrenaturais, movimentos extraordinários,
permite a saída de um estado de equilíbrio ou desequilíbrio constantes
dinamizando assim a realidade que até o momento se encontrava estabilizada. Verifica-se, aqui também,
semelhança com as funções da fantasia: apresenta ao seu receptor-emissor
imagens que procuram romper uma fixação consciente (lei) procurando dar fluxo a
libido estagnada trazendo assim, aos olhos da consciência, uma outra face da
realidade psíquica. Como já mencionado anteriormente, isso apenas é possível,
segundo a psicologia analítica, se o emissor-receptor encarar a fantasia sem
desprezo (distanciamento) ou entrega (alucinação). Deve haver a simultaneidade
de estados. Posição equivalente a que Todorov defende com relação ao leitor da
literatura fantástica.
É
interessante notar a evolução dos textos fantásticos, a partir dos textos
homéricos e lendas antigas, verificando uma mudança importante que só veio a se
cristalizar a partir do século XVIII : a conscientização da situação fantástica
pelo próprio narrador, indicando um maior aprofundamento no entendimento da
realidade, pelo menos da realidade ficcional, como algo mutável e suscetível. E
já no século XX, a literatura fantástica passa a assumir o fato insólito,
típico desse gênero, como um acontecimento normal dentro da narrativa, não
sendo necessária a torrente de explicações racionais que o texto fantástico, da
época do iluminismo, exigia. Pode-se
fazer um paralelo entre o processo de conscientização da ir/realidade do mundo
ficcional ao processo de
conscientização da ir/realidade do mundo real (psicológico). Referindo-se a
esse último, Jung disse: “ Quanto
mais limitado for o campo consciente de um individuo, tanto maior será o número
de conteúdos psíquicos (“imagos”) que se manifestam exteriormente, quer como
espíritos, quer como poderes mágicos projetados sobre vivos (magos, bruxas).
Num estádio superior de desenvolvimento, quando já existem representações da
alma, nem todas as imagens continuam projetadas (quando a projeção continua,
até mesmo as árvores e as pedras dialogam); nesse novo estádio, um complexo ou
outro pode aproximar-se da consciência , a ponto de não ser percebido como algo
estranho, mas sim como algo próprio.” - é o que vem acontecendo ao longo do
desenvolvimento da literatura fantástica -
“Tal sentimento, no entanto, não
chega a absorver o referido complexo como um conteúdo subjetivo da consciência.
Ele fica, de certo modo, entre o consciente e o inconsciente, numa zona
crepuscular: por um lado, pertence ao sujeito da consciência, mas por outro lhe
é estranho, mantendo uma existência autônoma que o opõe ao consciente. De qualquer
forma, não obedece necessariamente a intenção subjetiva, mas é superior a esta,
podendo constituir um manancial de inspiração, de advertência, ou de
informação”.
Verifica-se portanto o
espelhamento entre a realidade psíquica e a realidade ficcional, ambas
questionando a realidade dos padrões estabelecidos exemplificando que esses
mesmos padrões, sejam ficcionais ou “reais”, não podem simplesmente ser
encarados como sinais que ocultam algo de geralmente conhecido, mas sim como
símbolos verdadeiros: tentativa de
elucidar mediante a analogia alguma coisa ainda totalmente desconhecida ou em
processo. A literatura, como as artes, representa esse processo de descoberta e
a literatura fantástica representa a própria consciência dessa processo,
questionando portanto a própria literatura diante da realidade. Inicialmente apresentando o desconhecido
como soturno e demoníaco, vide o “ O Corvo” de Poe, o Fantástico, com o passar
do tempo e o fluir da libido inconsciente, vem se tornando natural e presente
como em “Cem anos de Solidão”.
Bibliografia:
POE, Edgard “O Corvo –
A Filosofia da Composição”, São Paulo, Editora Expressão, 1986
JUNG, Carl ”A Natureza da Psique”, Rio de
Janeiro,Vozes, 1997
JUNG, Carl “O Eu e o Inconsciente”, Rio de Janeiro,
Vozes, 1997
MARQUES, Gabriel “Cem
Anos de Solidão”
RODRIGUES, Selma “O
Fantástico”, São Paulo, ed. Ática, 1988
TODOROV, T. “As Estruturas Narrativas”, São Paulo,
ed. Perspectiva, 1979