Seminários EHESS
Question
de responsabilité (X. Le parjure et le pardon. La peine de mort. La bête et le
souverain).
(Estes relatos - elaborados por Zelina Beato - têm por objetivo oferecer um resumo das principais questões abordadas em cada uma das sessões.)
“
Je suis seul/e”
Derrida inicia assim, esse primeiro seminário, que pretende dar continuidade à sua pesquisa em torno do tema “La bête e le souverain”. Preocupa-se em anunciar as obras e os conceitos gerais que usará para tecer suas reflexões (ver bibliografia abaixo).
Bibliografia:
Defoe, Daniel. Robinson Crusoé.(publicado pela primeira vez em 1719).
Heidegger, Martin. Les concepts fondamentaux de la métaphysique. Monde-finitude-solitude. Tradução de Daniel Panis. Paris: Gallimard, 1992.
Derrida
inicia o seminário lembrando os textos políticos que evocou no seminário
anterior: de Joyce, Deleuze, Gadamer, Rousseau. E pede para citar uma passagem
do texto original em inglês de Robinson Crusoé que omitiu na sessão anterior:
“...how like a king I looked. First of all the whole country was my own mere property;
so that I had an undoubted right of domination. 2dly, my people perfectly
subjected: I was absolute lord and lawgiver; they all owed their lives to me,
and were ready to lay down their lives, if there had been occasion of it, for
me. It was remarkable too, we had three subjects, and they were of three
different religions. My man Friday was a Protestant, his father was a pagan and
a cannibal, and the Spaniard was a Papist: however, I allowed liberty of
conscience throughout my dominions. But this is by the way”
(p.212).
Derrida
evoca Heidegger e Defoe, alternadamente. Como sugere, tendo um livro em cada mão.
E nos conta que, em seu computador, o seminário de hoje está gravado num
documento cujo nome é Hei/foe. E mais adiante, recorrerá a esse título para
sugerir que sua escolha não é aleatória. Nesse seminário, em especial,
Derrida preocupa-se em detalhar o sentido/tradução de algumas palavras.
Em
princípio, uma palavra e seus afins usadas de forma recorrente por Heidegger em
seus seminários condensados em Les
concepts... Derrida pinça três momentos em que usa a palavra “walten”
- como reinar, governar, dominar, prevalecer, eivada de uma carga de violência,
e que a tradução[1]
para o francês banaliza. “Ge Walt” – um poder soberano. O
segundo momento em que usa a palavra “walten” como “physis”.
O terceiro momento, quando o termo está associado à idéia de “logos”. O
logos como “walten”.
Heidegger
em seu seminário se pergunta todo o tempo qual o melhor caminho, qual o caminho
direto, sem “desvio” que deve usar a filosofia para responder sua grande
questão, e em especial em sua reflexão: o que é o mundo? Qual o caminho
direto, sem desvio, qual “detour” evitar? O caminho que avança, medindo e
controlando os próprios passos. Assim quer caminhar a filosofia. A filosofia
sofre do mal da nostalgia, como afirma Novalis[2].
Na outra mão, Derrida mantém o livro de Defoe. Crusoé também busca um caminho. Em sua ilha e sem mapas, quer encontrar um caminho direto, aonde ir, qual a saída. Crusoé procura o melhor caminho em sua ilha perdida no mundo, mas também, como às vezes parece fazer a filosofia, anda em círculos. Robinson, certo dia, encontra passos na areia, traços de “pied nude”, o que pode ser uma promessa, mas também uma ameaça. A promessa/ameaça espectral do outro. E se pergunta se os passos não seriam dele mesmo, sobre um caminho que já percorreu sem saber. Eu como outro. O outro em mim, o sinal da chegada sempre possível. Crusoé teme o que pode significar as marcas de pés descalços sobre a areia, em suma teme a própria vinda, um “revenir”. O passado como novo, como “à-venir”. E Derrida lembra que “foe” significa inimigo e joga com seus possíveis desdobramentos. Crusoé está só na ilha com os animais. Só há homem e feras, um homem sem mulher. Ele tem tudo, menos um “outro”, não há um outro como mulher.
Derrida
encerra o seminário retomando Heidegger. Qual o caminho para responder o que é
o mundo? E assim chegar a solucionar suas três teses: a pedra é sem mundo, o
animal é pobre em mundo e o homem é configurador do mundo. Para responder a
isso, terá que, primeiro, responder o que é mundo. Qual o caminho em direção
ao mundo? A filosofia diante de uma paisagem robinsoniana: nada sabemos do “lá”,
mas é justamente “lá” que a filosofia quer chegar. Descartes talvez tenha
sido o primeiro Robinson da filosofia, em busca do melhor caminho, direto, sem
desvio, pela razão - “le chemin plus proche”.
[1] Heidegger, Martin. Les concepts fondamentaux de la métaphysique. Monde-finitude-solitude. Tradução de Daniel Panis. Paris: Gallimard, 1992.
[2]
“La philosophie est proprement parler
nostalgie, quelque chose que pousse à être partout chez soi”, Écrits. Éd.
par J. Minos. Iena. 1923, vol. 2, p. 179, fragment 21.
Derrida
inicia essa terceira sessão, evocando, com uma pergunta, a afirmação com a
qual começou a primeira: Quando digo “je suis seul”, o que isso quer dizer?
A solidão é distanciar-se dos outros? O que eu digo, quando digo “je suis
seul”? Dizer isso me distancia ou me aproxima dos outros? “je
suis le seul” é dizer outra coisa que dizer “je suis seul”. E causa ainda vertigem dizer “je suis le seul a être
seul”. O que é a proximidade? A proximidade não significa necessariamente
estar próximo, estar “plus proche”, como propõe Heidegger. Pensar na
proximidade, estar diante da experiência “como tal”, nos leva a Heidegger e
sua meditação acerca do animal pobre em mundo, do mundo “como tal”. O
privilégio dado à proximidade é o princípio de orientação do pensamento.
Derrida promete não hesitar diante da possibilidade de se distanciar da questão
a fim mesmo de dela se aproximar, “pour revenir sur les pas”. Aproximar ao
se distanciar, ou se distanciar para se aproximar. De que espaço se trata aqui?
De que figura ou de que estrutura de espaço e tempo, de que caminho se trata
quando se diz que quanto mais distantes do ponto de partida, mais próximo dele
estamos.
Para
responder a tantos questionamentos, Derrida propõe partir do tédio, o grande
tema de Heidegger nos seminários de 1929-1930. Fazer a distinção entre
“s’annuir à” e “être ennui par” nos leva ao “tédio original” -
o abandono de nosso próprio eu, do que pode ser-nos mais próximo, o abandono
do vivo. Parte-se da pressuposição da proximidade de si consigo mesmo, a
subjetividade como ponto zero da orientação, que me impede de confundir a
minha direita com a minha esquerda. A questão da orientação não se coloca
senão diante da experiência da desorientação, quando não se é capaz de
distinguir o próximo do distante “como tal”. Qual a saída desse paradoxo
circular, insular? No movimento circular, o passo que me distancia é também o
passo que me leva mais próximo.
Derrida
aponta, no texto de Defoe, os vários momentos em que Robinson Crusoé se vê às
voltas com o movimento circular: a fabricação de um carrinho com rodas, de uma
mesa redonda, o medo de voltar sobre seus próprios passos, a cerca para se
proteger das feras - a roda, o círculo, a rota, o retorno a si mesmo. O próximo
e o distante se tocam, o movimento da repetição, a catástrofe da
iterabilidade, do tornar-se sobre si mesmo, repetir o mesmo no deslocamento. É
a lei insular: o próximo e o distante se tocam e entram em contato no círculo,
na ilha, na roda, na oração, no retorno.
Robinson
tem um medo fundamental, de ser “engolido vivo”, pelo mar, pela terra, pelas
feras, pelos canibais, de ser assim “enterrado vivo”: “swallowed up alive”
“buried alive”. É o terror que
lhe inspira sua primeira prece, automatizada, o mesmo movimento mecânico e
circular da máquina, da auto-afecção. Movimento de repetição, de automatização,
auto-mecanização. O círculo é uma ótima metáfora (veículo em grego) para
descrever o sonho do deslocamento sobre si mesmo, deslocar-se mantendo a
identidade. Derrida introduz aqui o tema da auto-imunidade: auto-afecção,
autodestruição. A auto-imunidade consiste para um vivente em destruir de si
mesmo sua própria defesa imunitária de maneira automática, maquinal, espontânea.
Auto-afetar-se do mal que vem destruir o que o protege contra o mal. Robinson é
tomado por um poder auto-destruidor. Uma autodestruição não consciente,
“que marche toute seule”.
Derrida
aproxima-se do final do seminário, ao antecipar os temas do seminário seguinte
e ao retornar a Heidegger. A figura do círculo também vai obsedar Heidegger em
seus seminários de 29-30. O círculo da marcha hermenêutica, o caminho metodológico
que pressupõe um certo conhecimento daquilo mesmo que deve procurar.
A
morte é apenas o fim da vida. Quero morrer vivo, engolido ou enterrado no
ventre da terra, do mar, de um animal feroz ou de um canibal. Esse é o duplo
fantasma de Robinson Crusoé, ser comido pelo outro, desaparecer vivo no
outro – “swallowed up alive” “buried alive”.
Voltar
incessantemente aos mesmos temas, aos mesmos cruzamentos para poder seguir em
frente. Derrida recorda, volta sobre os próprios passos, para procurar o
caminho a partir do mesmo cruzamento. Nomeia os três pontos que se encontram
nesse cruzamento e a partir do qual deseja prosseguir: 1) o duplo fantasma de
Crusoé de morrer vivente; 2) o círculo, a circularidade no seminário de
Heidegger; 3) o caminho – voltar sobre os próprios passos para pensar o “walten”-
“to prevail”, relacionado à força, à violência, a ser conduzido pela força.
São todas questões de caminho entre a vida e a morte além da oposição entre
a vida e a morte.
A
nostalgia. Somos chamados pelo mundo, pela totalidade. O “todo” se chama
mundo. Chamamos mundo a isso que nos apela. Somos já um caminho a caminho, em
marcha. O mundo é o meio do ser a caminho. Somos indecidivelmente empurrados e
retidos; “poussé” e “retenu”. Somos empurrados pela pulsão e retidos
por uma força inversa. Estamos imersos no “nem...nem...”. Somos finitos
porque encontramos uma pulsão contrária. Um movimento infinito não encontra
obstáculo. Nosso ser é a
pulsão[1],
a compulsão que nos empurra para a totalidade. Nesse sentindo, somos todos sem
mundo, somos também pobres em mundo em face dessa nostalgia. Somos sem mundo,
como a pedra e o animal. A primeira definição de Dasein é “a
nostalgia compulsiva de estar em casa”, a pulsão do questionamento que nos
leva ao interior, ao coração da totalidade. A busca pulsional do caminho. O
que importa a Heidegger é a força de filosofar que se aplica a uma apreensão,
“saisir”.
Heidegger
pensa no saber científico, a biologia, a zoologia, como incapaz de saber sobre
a animalidade do animal e sobre o sentido da vida e da morte. Esse gesto de
Heidegger, de desqualificar o saber científico quando esse já pressupõe a
resposta que busca, será para nós um lugar de questionamento. Heidegger
afirma: não vamos jamais conceber esses conceitos e seu rigor conceitual se já
não estivermos apreendidos, “saisi”, expostos, afetados pelo que devemos
conceber, nesse caso, o mundo, a finitude, a solidão.
A
melancolia é o afeto do luto irreparável e toca à filosofia como criação.
Todo gesto de criação é tomado de melancolia. Heidegger cita Aristóteles na
relação entre melancolia e a criação. A criatividade é um dever e como todo
dever, correlativa da liberdade. Criar é livremente configurar. O animal não
é livre, nem criador, nem configurador, nem capaz de nostalgia, de melancolia,
nem de luto, e veremos depois, nem de morrer em seu sentido próprio. Heidegger
aborda justamente a questão da circularidade do caminhar filosófico para
distinguir o homem do animal. Derrida lembra que, ao analisar o seminário de
Heidegger de 29-30, sua intenção é localizar a questão da morte e da vida
entre o animal e o Dasein humano. A animalidade do animal e a capacidade
de morrer do homem são essenciais no seminário de Heidegger. Para Heidegger, o
animal não morre, apenas chega ao fim da vida. Derrida sublinha que a questão
mais problemática é a confiança com que Heidegger atribui ao Dasein
humano o acesso da relação com a morte.
Derrida antecipa a questão do próximo seminário perguntando se não seria preciso questionar a morte como característica humana e o fim da vida como atributos do animal e do vegetal. Pensar a morte é pensar nos sobreviventes. Há sempre a sobrevivência de um resto. Sem nos esquecermos de que há por trás de tudo isso o grande fantasma organizador de Robinson Crusoé: morrer vivente, “swallowed alive, buried alive”.
O
que é uma coisa e o que é o outro? O que é o outro quando se ocupa de fazer
de mim uma coisa, qualquer coisa, uma outra coisa que uma coisa; por exemplo, um
cadáver?
Antes
de prosseguir, Derrida sugere a leitura de dois outros textos de Heidegger[1]
em torno da “coisa”. Textos que tratam da mortalidade do Dasein por
oposição a uma a-mortalidade do animal.
O
que os outros farão de mim, quando eu tiver passado, morrido. O outro é aquele
diante do que estou completamente desarmado. Os outros, soberanamente, podem
fazer de mim qualquer coisa, dispor dos meus restos e me sobreviver. Derrida
dramatiza sua afirmação: “se eu disser que Robinson Crusoé foi enterrado
vivo, engolido vivo - “swallowed up alive”, “buried alive” - vocês não
me acreditariam, mas é isso que vou afirmar”. Na descrença, diriam que ele poderia
morrer vivo. A menos que a diferença entre o indicativo e o condicional seja
de modalização e que isso importe pouco no fantasma de Robinson Crusoé. Como
se o nó de seu fantasma, “swallowed up alive”, “buried alive”, lhe
acontecesse de todos os modos, e que o modo segundo o qual se apresenta,
presente-futuro, percepção-alucinação, ficção-realidade reste como
modificações de qualidade, secundária exterior. Ele tem medo de ser engolido
vivo, de ser enterrado vivo, portanto, ele assim já se vê, ele já está
engolido vivo, enterrado vivo. O fantasma é poderoso diante da realidade. Uma
virtualidade fantasmática que não diminui em nada o efeito poderoso do que se
apresenta como fantasma, organizando e comandando o tudo que chamamos a vida e a
morte, a-vida-a-morte. Defoe, Robinson Crusoé - livro, narrador do diário,
personagem narrado, todos são mortos vivos. O desejo de todos é de que o livro
lhes sobreviva, ao ser lido, interpretado, encenado, traduzido, reimpresso,
filmado, ilustrado. Esse sobrevivente-livro é a sobrevivência de um
morto-vivo, como é todo traço, no sentido que dou a essa palavra. Na maquinação
dessa roda, cada vez que um traço (gestual, verbal, escrito, mudo) é deixado,
essa “maquinalidade” confia virtualmente ao traço uma sobrevivência, na
qual a oposição entre vida e morte perde pertinência. O livro é um corpo
morto, enterrado numa biblioteca e que pode ressuscitar pela leitura.
Derrida
afirma que se propõe a examinar a questão do sepultamento em oposição à
incineração como opções do mundo ocidental para tratar os restos da morte,
em todas as instâncias: estatais, legais, familiares, religiosas para nomear
Robinson Cruso, é como um romance do resto. A começar que Robinson Cruso é
personagem, é obsedado pelo fantasma de morrer vivo, em seguida, porque
Robinson Crusoé, o livro, pode e deve também ser lido como um curto tratado de
antropologia ou etnologia. Derrida cita o artigo de um antropólogo, Francis
Affergan, Le Marqueur de l’autre dans Robinson Crusoé, 1967, que se
baseia também numa segunda parte do livro, tirando dessa segunda parte do livro
de Defoe, algumas passagens eurocêntricas, etnocêntrica, arrogantes e
colonialistas, relembrando a ligação durável e turbulenta entre a etnologia,
como disciplina científica, o etnocentrismo e a história do colonialismo e do
imperialismo.
Derrida
abre um parênteses para fazer uma diferenciação entre três espécies de
outro. O fantasma de Robinson de morrer vivente significa para ele ser consumido
no outro. Aporia: Quanto mais outro, menos o outro; ou o inverso, quanto menos
outro mais o outro. A terra e o mar, que me engolissem vivo, são uma espécie
de outro, a fera, vivente como eu, mas bem diferente de mim, seria uma outra espécie
de outro. O canibal, um vivente como eu, mas também um homem como eu, é ainda
uma terceira espécie de outro. Nessa hierarquia, o mar e a terra, muito mais
distante de mim e por isso, menos “o outro”. O canibal mais outro,
justamente porque semelhante.
[1]
Heidegger,
Martin. La question de la chose. Traduit par Jean Rebout et Jacques
Taminiaux, Gallimard, 1971.
________________ La chose. Traduit par Jean Rebout et Jacques
Taminiaux, Gallimard, 1958.
Coragem!
É preciso coragem para pensar o morto vivo. É
preciso coragem para pensar “isso”, “ça”. A coragem que nasce do medo.
Coragem sem medo não é coragem. Qual a relação entre essa coragem e o
fantasma? O que é o fantasma. Qual a relação entre esse medo e o fantasma? Nós
nos deixamos afetar pelo fantasma, pelo impossível, a despeito da exclusão lógica,
da realidade, do senso, do bom senso. Freud situa o fantasma num lugar sem
lugar, e por isso mesmo, em todos os lugares. No texto sobre o Inconsciente, Freud afirma que o
fantasma, o sintoma, a pulsão, o afeto pertencem, em qualidade, ao sistema
consciente, mas de fato ao sistema inconsciente – um desafio à lógica. Há aí
uma contradição entre o sistema que exclui a contradição, o consciente, e o
sistema inconsciente, que não é jamais perturbado pela contradição. O
inconsciente é irresponsável, mente e diz a verdade ao mesmo tempo. Heidegger
e Freud têm esse aspecto em comum, não se deixarem amedrontar pela contradição,
pela aparência do círculo vicioso. A questão da origem dessa indecidibilidade
é decisiva – o que está em jogo é o conceito de recalque. Freud lembra que
a passagem de um sistema a outro implica uma censura. Deve-se barrar um número
infinito de impressões – economia topológica do arquivo. Freud também fala
da impossibilidade de representação da nossa própria morte – no
inconsciente, cada um de nós é convencido de sua própria imortalidade. É
preciso meditar nesse acreditar do inconsciente.
Chegou
o momento de falar sobre o fantasma que orienta as escolhas entre o sepultamento
e a incineração – a primeira escolha, estatisticamente – é pelo
sepultamento. Uma escolha, feita pelos vivos, que responde a um desejo. Do ponto
de vista desse fantasma do morto-sobrevivente pode-se fazer o cálculo do
investimento, no sentido psíquico e fiduciário. Pode-se contar o sofrimento e
o gozo, os benefícios e os prejuízos. Uma terrível lógica auto-imunitária
da economia do sofrimento.
A inumação promete dar o tempo e o espaço – não serei aniquilado instantaneamente. O sepultamento dá lugar à existência de um cadáver. O fantasma pode se precipitar e precipitar o desejo de sobreviver pela inumação. A incineração escamoteia e faz desaparecer o cadáver. Sabe-se que o critério de estado de morte é variável, não guarda nenhuma certeza universal, científica, consensual. “se não estou morto, que não me enterrem vivo, menos ainda que me queimem”. O fantasma pode também determinar a escolha pela incineração – que eu não sofra o inferno de ser enterrado vivo e de me decompor”. Um certo tipo de suicídio irreversível. Um outro benefício do sepultamento, a imobilidade do lugar. A urna com as cinzas é transportável, sem lugar estável – está em todos os lugares. No sepultamento há um lugar, um caminho para o trabalho de luto. Que o morto repouse em seu lugar de morto e que lá descanse sem retornar. O luto é facilitado ao manter o morto no lugar público, longe do espaço privado, que se decomporá no tempo e no espaço próprios, fora do lugar dos vivos.
A incineração, por outro lado, pode evitar a cadaverização, a decomposição, tranqüiliza os vivos e os mortos de todos os horrores. Mas também evita afastar o morto, mantido em todos os lugares. Isso dificulta o trabalho do luto. Aniquila o morto, desaparece com os restos, onde há cinzas não há restos.
Em ambos, o double bind auto-imunitário, a mesma aporia, a mesma fidelidade infiel. Entre os dois partidos: “incinerantes” e “sepultantes”, há sempre as acusações mútuas de desumanidade. Os incineradores acusam os sepultantes de deixarem o cadáver se decompor como os animais. Os que sepultam acusam os que incineram de agressão contra a integridade de um cadáver, possivelmente vivo, que tem direito ao tempo, ao espaço e a esperança de sobrevivência. Em qualquer opção estará presente a aporia: quanto mais fiel, mais infiel, ou o contrário, quanto mais infiel, mais fiel se pode ser.
Voltemos à questão: o que é um fantasma? Fantasma como espectro e como imaginário. Uma reflexão sobre a especificidade fantasmática não pode deixar de passar pela experiência da morte-vivência, pelo afeto, pela imaginação, pela sensibilidade como auto-hetero-afecção.
Derrida
havia anunciado que a sessão do dia 19 seria aberta à perguntas. As perguntas
são variadas e não necessariamente atadas aos textos de Heidegger e Defoe que
Derrida trabalha. A primeira intervenção faz uma relação entre a fotografia
e a morte, a partir de seu efeito de imobilização. Derrida
relembra o texto de Heidegger que citou a propósito da fotografia de uma máscara
mortuária., como imagem que reproduz uma imagem, reprodução de uma reprodução.
Como disse, a questão do seminário é justamente a morte – o animal não
morre, e o exemplo veio inserido no momento em que analisávamos o que é isso,
essa coisa, que chamamos cadáver. Uma coisa outra que uma coisa. As três hipóteses
de Heidegger envolvem a pedra, o animal e o homem – nessas três hipóteses,
onde se encaixaria o cadáver? ao lado da pedra, sem vida? ao lado do animal? ao
lado do homem?
Intervenção: qual a relação do texto de Defoe com a soberania? Robinson Crusoé é ameaçado pelo desejo canibalista do outro e é, então, que surge o fantasma de ser devorado. Crusoé vai circunscrever o canibal em seu fantasma. É a vida ameaçada que estabelece a relação com o outro, Robinson Crusoé tem um delírio de soberania fundado no fato de que é o mestre de Sexta-feira.
Derrida: toda soberania é delirante a priori. Não há pretensão à soberania que não seja excessiva, hiperbólica, injustificável e, portanto, demente. A soberania é se sentir vivo, mas ninguém dá vida a ninguém, nem mesmo a mãe. Em todo caso, o soberano é alguém que diz: se dou a vida, posso tomá-la de volta. Dar e tomar a vida é o delírio do soberano. De qualquer forma, a questão que quero trazer aqui é porque associar o seminário de Heidegger a um romance como esse de Defoe. Em primeiro lugar queria mostrar de um lado que Defoe, RC e toda a configuração filosófica a qual pertencem e do outro Heidegger e a configuração filosófica a qual pertence partilham traços comuns com o animal e com a soberania do homem sobre ele. O domínio do homem sobre o animal, como é descrita em Robinson Crusoé se aproxima da forma como o Dasein trata o animal – como simples vivente sem mundo e incapaz de morrer. Um outro ponto que justifica a minha escolha é que, apesar da diferença evidente de discurso entre Defoe e Heidegger, há qualquer coisa de romanesco em Heidegger, um tipo de proposição que não se sustenta como simplesmente lógica e demonstrável. O ponto nevrálgico da demonstração de Heidegger quanto à diferença entre o animal e o homem é que esse não tem acesso ao ser “como tal” e, portanto, ao outro como tal. Essa é a questão: como tal. O que é isso? O homem e o animal vêem o mundo, mas o homem vê o mundo “como tal”. O que quer dizer isso? Além disso, até onde eu saiba, Heidegger jamais tratou da questão do animal antes ou depois desse seminário. Um traço curioso, como um romance que aparece apenas uma vez. Uma tese em filosofia se retoma, se repete. Por definição, um filosofema não se liga a uma só ocorrência textual.
Intervenção: por que a soberania é um delírio?
Derrida: Primeiro porque é uma declaração e uma declaração está sempre inserida no terreno da linguagem, da generalidade. Quando digo que sou soberano é preciso que me entendam, é preciso que o mundo inteiro saiba. Quando me coloco como exceção a uma generalidade, arruíno por isso mesmo, qualquer possibilidade de exceção. Se tenho necessidade de afirmar a soberania é porque encontro limites e resistência, há um outro país com pretensões à soberania e há a guerra. Não há soberania absoluta sobre o que quer que seja. A soberania está ligada ao direito, à legalidade que a envolve e a limita. Mas há os efeitos dessa soberania, sem eles não haveria os estados, as liberdades individuais, cidadania, etc e renunciar aos efeitos da soberania é também um delírio. Tudo se organiza na economia desse delírio.
Intervenção: RC fala sobre ser um rei soberano e diz não ter mais que três súditos. Há nisso um tom de ironia.
Derrida: é verdade que RC zomba de si mesmo. Um rei que tem três súditos não é grande coisa.
Intervenção: O senhor tem mais súditos que ele.
Derrida: Se isso é verdade, não tenho tanta certeza. Em todo caso, há situações em que três é demais, dependendo da idade, do sexo. RC se diverte, mas ao mesmo tempo não quer nenhum. O soberano absoluto não pode ter nenhum, o súdito também tem sua soberania e traz resistências.
A
Blanchot.
Quando
escrevo, quando enceno, sempre, a cada palavra, eu pressinto a figura espectral
de um evento, que poderia “après coup” [depois], susceptível a
re-interpretação, re-encenar, invisível e imprevisível, o que me teria sido
ditado, soprado, conscientemente ou telepaticamente, de dentro de mim mesmo ou
de muito longe. Se bem que jamais eu arriscaria dizer, com uma certeza indubitável,
aqui e agora, eu penso. Eu diria
que sinto que pressinto ou que pressinto que sinto, mas não o sinto mais e sei
menos ainda aquilo que não deixará de chegar. Escrevi
em Circonfession, “je posthume comme je respire”. Eu
postumo, entre o sentido evidente do futuro anterior, pós-mortal, sentir antes,
antecipando sem antecipar, sentindo como os animais sentem a vinda de uma catástrofe
como um terremoto, antes mesmo do evento. Ao dizer “je posthume comme je
respire”, eu tinha o sentimento de brincar com a terra, húmus, a terra do
sepultamento, que pode ser identificado na palavra posthume, eu acreditava
querer dizer que nada me é tão natural indispensável como estar fascinado,
inquieto, pelo que vem postumamente, depois da morte. Póstumos, sem H, é também
o que virá, a posteridade, depois da morte do pai, aquilo que porta o futuro
testamentário e a fidelidade de uma herança. Esse pressentimento, tão
particular, premonitório, por tudo que disse ou discretamente evitei dizer, na
semana passada a propósito do grande argumento entre ser sepultado ou ser
incinerado, é se no fim morreremos como morto vivo e queimado ou sepultado. O
grande fantasma. Eu sabia, há muito tempo, e de forma mais eminente nos últimos
anos, e ainda de forma ainda mais ameaçadora depois da semana passada, que
Maurice Blanchot estava morrendo. Eu sabia que ele já tinha optado pela
incineração. A incineração de Maurice Blanchot aconteceu antes de ontem, num
crematório da província, numa paisagem “unheimilch” ao século
vinte e um e eu não gostaria de falar sobre isso. A morte de Blanchot é para
mim, como é para seus amigos, para seus leitores um luto, e como cada luto, um
luto sem medida, incomensurável. Vocês todos sabem quem é Maurice Blanchot,
mesmo se não forem franceses. Diria mesmo, helas, sobretudo se não
forem franceses, saberão quem foi M. Blanchot nesse século. Alguns de vocês
aqui sabem o que foi ou quem foi, ou teria sido e ainda resta para mim, Maurice
Blanchot – o amigo, o pensador, o escritor, em sua dimensão, muito antes de
mim e agora nunca mais depois de mim. Jamais deixarei de saudar M. Blanchot. E
se a palavra reconhecimento tem algum sentido, mais de um sentido, é aqui o
momento de dizer, com uma melancolia sem fundo, à memória de Maurice Blanchot,
o meu reconhecimento.
Celan
escreveu um dia, “le monde vient à manquer”, “le monde manquait”, três
palavras que são também uma citação de um récit de Blanchot de 1953.
Na morte de Celan, Maurice Blanchot escreveu o texto: « Le dernier a
parler ». que Blanchot me enviou em 1984, com uma dedicatória, tem como
primeiras palavras a morte e o companheiro, cedo, perdido. Platão: “car de la mort n’a de savoir” e
Paul Celan: “nulle n’est témoin pour le témoin”.
Para
deixar a ele “la parole et le dernier mot » um título escatológico por
definição – que significa a palavra final, que seja ele o último a falar de
sua morte e dessa morte que tem sido o tema de nossos seminários. Vou citar
Blanchot, a propósito da palavra “accompagnon”. Ninguém tem o direito de
falar por ele, nos dois sentidos de “por”, em seu nome ou para lhe fazer um
elogio. Sempre escolhemos um companheiro, não para nós”, mas por qualquer
coisa em nós, fora de nós, que é preciso que nos falte, a nós mesmos, para
passar a linha do que não esperamos. Um amigo cedo perdido, a perda mesmo que
é agora em nós. A morte impossível, faltar a si mesmo. Como no sintagma,
“le monde vient à manquer”, tudo falta. Quando algo nos falta, somos sem
mundo, como diz Heidegger da pedra. Em
“Celui que ne m’accompagnait pas”, quero citar as palavras com que
Blanchot encerra o livro : « Peut-être que tout ce qui meurt, même
de jour, se rapproche de l’homme, demande à l’homme le secret de mourir.
Tout cela ne durera plus très lointaine, que je n’ai plus le droit d’appeler
mon compagnon – et m’entendrait-il
encore ? où est-il à present ? peut-être très près d’ici ?
peut-être est-il sous ma main ? peut-être est-ce lui que ma main
tentement repousse, écarte encore une fois ? Nonm ne l’écarte pas, ne
le repousse pas, attire-le au contraire, conduis-le vers toi, fraie-lui le
chemin, appele-le, appele-le doucement par son nom. Par son nom ? mais je
ne dois pas l’appeler et, en ce moment, je ne le pourrais pas. Tu ne le peux
pas ? en ce moment ? Mais alors c’est le seul moment, c’est une
necessité urgente, tu ne lui as pas tout dit, l’essentiel manque, il faut
completer la description, « il faut ! maintenant, maintenant ! »
Qu’ai-je oblié ? pourquoi tout ne disparaît-il pas ? pourquoi
est-ce un autre que entre dans la sphere ? de qui s’agit-il donc ?
n’est-ce pas moi que ai pris le breuvage ? était-ce lui ? était-se
tous ? cela ne pouvais pas, il y avait un malentendu, il fallait y mettre
fin. Tout la force du jour dut se tendre, s’elever vers cette fin, et peut-être
respondit-il aussitôt, mais quand la fin arriva, après l’éparpillement
de quelques secondes, tout avait déjà disparu, disparu avec le jour ».
BLANCHOT, Maurice. Celui
que ne m’accompagnait pas.
Collection L’Imaginaire. Paris : Gallimard, 1993
Rezar. O que quer dizer rezar? Como rezar? Como não rezar? Se rezar consiste em fazer alguma coisa, como um gesto do corpo ou um movimento da alma, fazemos alguma coisa quando rezamos. Se laisser prier em francês, numa tradução, significa que alguém passivamente se deixa rezar. Para se deixar rezar é preciso escutar. Faz-se alguma coisa com as palavras, sem descrever, sem constatar, sem dizer o que é tal como é. Mesmo que se possa rezar sem palavras. Faz-se algo que não pressupõe o logos. Uma oração, se não supõe o logos, poderia ela mentir? Se não mente jamais, podemos fazer uma oração mentir? Não quero fazer uma ligação entre rezar e as questões de morte. Ao falar em rezar, o que é rezar, dou um quadro mais geral. O que fazemos quando dizemos a alguém, je vous en prie, o que é rezar sem endereçar essa oração à singularidade de um “quem”? Rezar, sem demandar, sem esperar qualquer coisa em retorno, qualquer coisa de material ou de sublime, mas qualquer coisa. Sem esperar que alguém ouça? Qual analogia entre a expressão quotidiana, je vous en prie e a grande oração solene? Mais radicalmente, é possível dirigir-se a qualquer outro, seja a qualquer vivo, seja a qualquer morto, sem rogar, silenciosamente, com o olhar, sem pedir: escute-me, olhe-me, eu te rogo, vire-se em minha direção, esteja atento ao que faço. Ou seja, esteja presente ao que vem de mim. Qualquer que seja, ela pede: lembre-se de mim e do que te digo. Como falamos da questão do enterrar vivo, do sepultamento e da incineração, o “lembre-se de mim”, ou faça isso em minha memória, como Jesus o fez, deu-se a comer vivo. Essa é a condição do cristianismo, da ressurreição.
Mas
guardem essa questão. Hoje, sem perder de vista e sem esquecer a grande tragédia
anunciada sobre o animal pobre em mundo, e a questão do walten, sem esquece-los
para recoloca-los sob outra perspectiva, eu partirei da oração como um lugar
de cruzamento entre a o seminário, a problemática de Heidegger e Robinson
Crusoé – a vocação, a aprendizagem na oração. No seminário de Heidegger
há um momento em que anuncia a questão da oração. Heidegger analisa a
constituição onto-teológica da filosofia, a maneira como Deus entra na
filosofia, como étant supremo, Deus superior a tudo, causa a si, portanto,
soberano. O Deus da filosofia não tem “endereço”, um deus que não escuta,
a quem não se reza, não se sacrifica, não se canta. Heidegger não fala da
oração performativa.
A
oração não é constativa, não pode ser classificada de verdadeira ou falsa,
segundo a noção de logos apophantikos – um logos que mostra aquilo do que
fala. Heidegger analisa a condição performativa da oração. E a estratégia
de Heidegger é usar Aristóteles para falar do “como tal”. O animal é
privado de logos – da possibilidade de perceber o étant como tal. Heidegger
oferece uma definição de mundo que é importante para entender o animal dele
pobre e o homem dele configurador.
O
logos semantikos é a forma mais geral de logos – que dá algo a compreender,
tem uma significação. E o logos apophantikos é um logos constativo, que além
de oferecer um significado, envolve a possibilidade de erro, de engano, de
mentira. Todo logos é, portanto, semântico, porta um significado, mas nem todo
logos semantikos é apophantikos, isto é, constativo e, dessa forma, capaz de
mentir. Os animais têm a possibilidade de emitir sinais compreensíveis entre
si, mas falta-lhes a simbolização. O animal não diz nada através de seu
grito, e assim, não mente, não dissimula, não erra. O logos é em princípio
synthekes – não natural, convencional. A linguagem é um pacto
intergeracional, o animal é privado de phoné, e é essa abertura ao étant
como tal que permite ao homem a linguagem, a convenção.
A oração não mente – não é verdadeira nem falsa. De uma oração não se diz que pode mentir, que pode enganar, que pode errar ou falsear. Não há logos apophantikos sem a possibilidade de mentir, de errar – sem o risco sempre iminente e aberto a falar do falso. Sendo assim, a oração não é um enunciado apophantikos.
Na
sessão passada, falamos sobre a oração, que resta estrangeira à questão.
Pode-se pedir, mas não questionar. Hoje podemos retomar o tema do perdão e a
figura do animal, da soberania, o perdão impossível, a soberania do perdão,
tema que tem me preocupado nos últimos anos. Falo a linguagem da água, do mar
e do oceano, da linguagem marinha da insularidade, falamos da terra do
sepultamento e do fogo da incineração. Nossos elementos. Eu me questiono o que
me levou a me servir de neologismos: os incinerantes e os sepultantes, entre um
desejo e um gosto que foge a mim mesmo. Expressões
unheimlich. Essa forma de classificação tem uma estranha ressonância, como se
definissem agrupamentos, não apenas semelhantes às espécies de animal, mas
aos agrupamentos, às sociedades secretas, as ordens os sectos, ordens
religiosas – carmelitas, agostinianos, franciscano, dominicanos, agostinianos,
teotônicos, os trapistas e finalmente, os incinerantes e os sepultantes. Essas
confrarias com rituais representam uma organização histórica, artificial –
um chez deuil. Pela primeira vez no mundo ocidental o homem tem a liberdade de
escolher entre pertencer a uma ou a outra dessas ordens – a ordem dos
incinerantes ou dos sepultantes. Mas por que apenas duas possibilidades?
Il
faut pouvoir. É
uma expressão em francês que traduz um suspiro, diante de uma demanda
exagerada, um desencorajamento, ou diante de algo que se condena. O que
significa poder em geral? Pouvoir. Ninguém tem o poder de responder à questão
do que é o poder em geral. Não se terá jamais a possibilidade ou o poder de
responder – ou compreender o que essa palavra isolada, ilhada, sem uma frase
que a articule com outras coisas do mundo, sem estar presa a uma concatenação.
Como por exemplo, o poder de rezar, como não rezar. O senso da palavra poder é
definido pela oração, ela mesma. É a questão da oração mesmo que define o
poder de rezar.
O
que é poder rezar? Como o perdão, que só pode perdoar o impossível. O que
pode o poder se ele não é outro que o poder do impossível? Mas o il faut
indica também a possibilidade da falta de poder, o poder pode faltar.
Comecemos por uma citação: ‘une trace, c’est
une empreinte, ce n’est pas un significant... L’empreinte du pied de
Vendredi que Robinson Crusoé decouvre au cours de sa promenade dans l’ile
n‘est pas un signifiant’ (Seminaires, livro V, 1957/8, p. 342/3). Por
que citar Lacan aqui? É por que ele nos leva a uma questão essencial: a
incapacidade do animal de acessar o significante. Para Heidegger o logos é o
poder, uma faculdade. Lacan fala também poder “O significante como tal é
qualquer coisa que pode ser apagada. Uma das dimensões fundamentais do
significante é de poder anular-se a si mesmo”. A incineração apaga os traços.
Lá onde há a possibilidade de erro não há o poder do logos, não há Dasein,
não há logos para o animal.
Heidegger
confessa, sem confessar, que ele mesmo pode se enganar – está exposto ao Täuschung.
É preciso ter a possibilidade do falso como possibilidade primeira, original,
originária. É preciso partir da possibilidade do erro, do falseamento.
Heidegger insiste na origem comum entre a verdade e a não verdade – co-originárias,
como possibilidade do Dasein.
Heidegger fala do acesso ao logos como poder. O tratamento dado ao animal pela filosofia, pela cultura, a diferenciação é sempre associada ao poder e ao não-poder de falar, de rir, de morrer. A questão não é de poder fazer isso ou aquilo, mas o poder de sofrer. Pode o animal não sofrer? Ao pensar no animal e na nossa relação a ele é preciso partir não do poder, mas da compaixão.
Aberto
ao debate.
Derrida
antecipa em parte seu projeto para o próximo ano – o título dos seminários
será ainda “La bête et le souverain”. Continuará a ler Heidegger e pensa
em substituir Robinson Crusoé por algum outro livro.
Intervenção: qual a relação entre o fantasma e a questão da
coragem do medo. A segunda questão é sobre a demanda em sua qualidade de
verdadeira ou falsa e cita Celan.
Derrida: É sempre possível que a demanda esconda uma verdade
inconsciente. Isso não muda a estrutura naquilo que ela mantém de estranha ao
sistema verdadeiro ou falso. Tenho insistido há anos que a demanda de perdão
guarda uma cena de grande violência. Além dos conceitos que você trouxe, de
maneira geral, o que sempre faço, o que faço aqui é analisar o conceito, o
que é o conceito de demanda, de oração, de perdão. Uma vez feito isso eu não
concluo isso ou aquilo, não digo que nunca houve um perdão, uma demanda. Mas
me interesso pelas questões da linguagem, da cultura, da história. Isso não
implica na minha crença em qualquer coisa que corresponda a esse conceito, a
crença de que algo como uma oração, um perdão, dignos desses nomes, tenham
acontecido. Disso nunca me livrei. Isso é trágico, viver assim, para vocês e
para mim. Pedimos perdão, fazemos demandas todo dia. Sei que falamos para nada
dizer. Em todo caso, fala-se qualquer coisa, mas não podemos ter certeza que àquilo
corresponda uma verdade. É assim que vivo, infelizmente, e tento lhes comunicar
essa doença. Mas isso dá uma espécie de liberdade, mesmo assim. Quanto ao
fantasma. Vamos falar sobre o fantasma do tratamento do cadáver. Temos a tradição
de tratar bem, com respeito. Como não ligar isso seja estranho ao fantasma uma
vez que sabemos, de um saber absoluto, que um cadáver não sente nada,
completamente nada. Ele é completamente indiferente ao tratamento que lhe dão.
Portanto, o tratamento do cadáver não é um tratamento do cadáver. Tratamos
de nós mesmos. Se isso não é
fantasma o que seria? Ao levar flores a um túmulo, cobrir o caixão com uma
bandeira, sabemos bem que é a maneira de tratar em si mesmo a imagem, o ícone,
a memória do outro em si. A isso chamamos amor. Se eu não tiver já, por
auto-afecção, a medida de sentir o que o outro sente e de me fazer qualquer
bem com isso, eu não abraço. E há gente que não abraça nunca. O fantasma é
sem limite. Há fantasma lá onde apesar do saber que tenho, continuo a fazer
como se não soubesse. Quando me inclino sobre o túmulo de alguém amado. Sei
que não há nada ali. Mas isso não me impede de fazê-lo, de fazer “como
se”. Faço isso por mim mesmo, se não fizer isso, não terei possibilidade de
relação a mim mesmo. Os fantasmas me estruturam, minha sobrevivência depende
dessa fantasmática. A coragem de que falo não se liga a coragem diante do
fantasma, mas da mesma forma que falo de perdão diante do imperdoável, da crença
diante do incrível, falo da coragem diante do medo. Não há coragem sem que
seja diante do medo, do não saber. Isso não é um jogo, não é jogo de
linguagem, são as aporias semânticas, débrouillé vous avec ça.
Intervenção: o que fazer com esse débrouillé vous. O
problema resta sempre, como fazer?
Derrida: Se enceno, se dispenso um saber, para mim ensinar
consiste em deixar o outro como outro, deixo ao outro a responsabilidade de se
“débrouillé”. A cada momento que cada um se débrouille, trate seu
próprio fantasma, é isso a responsabilidade impossível de compartilhar. Cada
um deve ficar só. É isso a solidão. Quando falo de solidão, da minha solidão,
você pensa na sua e se diz, pode ser a mesma coisa – mas como você se
engana. Mas é isso a linguagem. Há um grande poeta inglês Hopkins que
elaborou uma teoria que ele chamava: self selving, como um “self se
selve”, como um eu se torna ele mesmo. Ele
o faz através do que Hopkins chama de – self taste - o gosto de si
mesmo. O gosto que cada um tem de
si mesmo. É absolutamente indescritível, incompartilhável. Ninguém pode
partilhar o gosto de si mesmo. Tente descrever a alguém descrever o gosto de
uma cerveja. O gosto não se compartilha.
Intervenção: o gosto da Madeleine para Proust...
Derrida: Ninguém poderá explicar o que era o gosto da
Madeleine para ele. Por isso é literatura. Se alguém dissesse, o gosto da
Madeleine é esse. Acabou-se. Nada mais a dizer. Mas o gosto é incomunicável e
dai a solidão. Mas por que Hopkins diz paladar dentre os outros sentidos? É
porque o paladar é um sentido por auto-afecção que envolve a boca. Na boca há
a palavra, falo por auto-afecção, mas também é o lugar do ingerir, como no
trabalho de luto, aprisiono o outro em mim. No self-taste já existe o
outro.
Intervenção: O senhor poderia distinguir entre autodestruição e
auto-imunidade.
Derrida: Autodestruição é literalmente se destruir, fazer arakiri, se queimar. A auto-imunização, termo científico, é o que acontece com um órgão em mim destrói seu próprio dispositivo imunitário. Segundo um mecanismo obscuro, tal órgão começa destruir os recursos destinados a assegurar uma certa imunidade do homem, é uma destruição parcial. É um processo localizado.Isso quer dizer que todo ser finito tem a possibilidade desse processo. Até na política há um processo que se parece com uma marcha suicida. Um gesto com o objetivo de salvar uma sociedade, um estado, um regime no fundo traz uma perda. Para salvar a democracia, por exemplo, porque há os terroristas, etc, os EUA vão limitar as liberdades democráticas. Para salvar a democracia prende-se sem julgamento. Para salvar o mundo da violência faz-se a guerra, com o risco de trazer exatamente o que se quer evitar. Há uma fatalidade na auto-imunidade.
Não
é minha intenção esgotar qualquer coisa, mas, aqui, gostaria de pelo fazer
parecer um fechamento. Como definir, em mais de uma língua, porter, to carry,
to bear, tragen, portar, carregar? Para, dai apreendermos
os sentidos das palavras “Walten”, em torno de “austrag”, “tragen”,
“Gewalt”.
Die Welt ist fort. Ich
muss dich tragen – o mundo se foi, eu devo te portar. Indica ao mesmo
tempo um dever e uma necessidade. A injunção que me deixa livre para me
encarregar de você. Lá
onde rien ne va plus. Um mundo que se vai, sem ir. Die Welt ist fort. Ich
muss dich tragen. Todo o portar que pode sustentar essa dupla proposição
- Die Welt ist fort – uma proposição constativa e outra - Ich muss
dich tragen, performativa, que estabelece um compromisso, uma promessa. Como
um amor, no momento da separação do mundo, que saúda, prometendo salvar sem
salvação. Por que devo te portar, quando o mundo está longe? Uma declaração
que concerne à totalidade do que chamamos mundo e que supõe que o/a destinatário/a
partilham uma mesma linguagem e um mesmo conceito de mundo – co-habitam esse
mesmo mundo que se vai, distanciando-se, que vai sem ir, que acaba de partir,
que acaba de não vir, que vem na partida. Como uma criança, que não nasceu,
um ser que se porta ainda no útero da origem do mundo. Para além de todo esse
portar, há hoje o comportar de uma declaração de amor no momento de uma
declaração de guerra.
Sabemos
que toda guerra é mundial e planetária – a apropriação do mundo, a imposição
de uma soberania pela força, sem direito ou pelo direito, sobre a vida de todo
o étant e todos os vivos que o habitam. Um fim de mundo para qualquer
soldado ou civil morto no Iraque é o fim do mundo, não de um mundo particular,
mas do mundo em geral. O mundo vai-se no desastre mesmo da palavra exército.
Poll[1]
não tem mundo, não tem direito ao mundo como tal. Poll foi a primeira vítima
da arrogância humana, que crê em seu direito à fala e, portanto, no direito
ao mundo como tal.
Eu
tive um pesadelo, estava diante de um tribunal, algo como um alto conselho de
segurança durante o qual me foi dada uma missão bizarra: como advogado,
deveria defender uma tese segundo a qual: Saddam Husseim, Bush, Rumsfeld, Aznar,
Blair, Chirac, Sharon, Arafat, Putin e Poll, quero dizer, Paul, o papa João
Paulo, e alguns outros, que no meu sonho pareciam executores que falavam grego
ou alemão, eu deveria defender a tese de que todos os falantes desse mundo, com
todos os interesses que defendem, todos esses falantes, com poder de decisão, a
todos deveria reconhecer, e essa é a minha tarefa, o acesso ao logos, não
somente ao logo semantikos, mas também ao logos apophantikos,
mesmo Bush, e mesmo Saddam Husseim. O pesadelo que agitou meu sono, apesar da
gripe que tornou tudo um pouco unheimlich, não havia nenhuma, forma
alguma de fugir à missão e me senti como um desses advogados públicos
obrigado a defender um serial killer, ou um pedófilo ou um matricida.
Mas... minha consciência profissional, a intransigência inflexível do meu
superego filosófico, insistia, dizia mesmo: você deve, em nome da justiça e
da verdade – você deve ser justo com todos, todos eles têm acesso ao logos semantikos,
e mesmo ao logos apophantikos, e mesmo Bush. E são todos, além disso,
culpados. “sim, você deve, é seu dever ser justo com todos eles...”. Se
você não quiser estar com eles, (era isso que eu me dizia no meu pesadelo)
reconheça, pelo menos, que há o logos apophantikos nesses personagens
que falam ao mundo onde marcham seus generais, seus pobres soldados cegos e suas
máquinas de guerra, ditas inteligentes. Eu
me perguntei o que aconteceria se fechássemos todos esses “Poll’s”, se os
isolássemos naquela porção de ilha denominada Guantanamo, para lhes ensinar a
falar, para ai acompanharem um seminário intensivo sobre Robinson Crusoé, o
seminário de Heidegger e o perigo ameaçando o horizonte. E desde que minha
febre passou, devo reconhecer que isso não muda nada e que não há guerra possível
sem logos apophantikos – essa é a tragédia. Isso que nos dá
a pensar.
Nós
seguimos, durante algum tempo, e deles nos apropriamos para colocar em uma nova
perspectiva, cada um de vocês, desde de dezembro, de perto ou de longe, dois
maciços textuais: Robinson Crusoé e o seminário de Heidegger, que no fundo
falam do mesmo, de La bête et le souverain, falam desse et entre
o animal e o soberano. A configuração do que chamamos animal com o
soberano nos deram uma visão do que liga esses dois viventes, um e outro, nesse
estar com, relacionando-se, sofrendo, na necessidade de se excluírem, se
submeterem, se capturarem, se perseguirem, se comerem, se portarem, se
exportarem, se suportarem num mundo inegavelmente comum. Habitam e morrem juntos
em qualquer coisa que chamamos mesmo mundo. Morrem do mesmo jeito, na água, na
terra, no ar, no fogo. O mesmo habitat que porta todos esses viventes, onde eles
co-habitam. Pode-se questionar esse mesmo entre os animais e os homens,
mas ninguém pode também provar, inegavelmente, que o mundo é igual para dois
seres da mesma espécie, dois seres humanos e que aquilo que a palavra mundo
designa é a mesma e única coisa para cada um de nós. Mas para falar dessa
tese, dessa disseminação do conceito de mundo, é preciso um conceito comum do
que seja mundo. Que não passa de um efeito artificial, uma construção verbal
destinada a mascarar nosso abandono, nossa angústia infantil infinita diante do
fato de que não há mundo. A ausência infinita e comum de mundo, a solidão
incomensurável de cada um. Mesmo quando, a cada instante do dia ou da noite,
somos invadidos por um sentimento intenso em relação a um outro, mesmo o mais
próximo com quem partilhamos tudo a começar e a terminar pelo amor – o mundo
no qual vivemos é diferente até a monstruosidade do desconhecido. O não
compartilhável abissal, intransponível, que nada pode vencer ou ligar, seres
solitários, insulares – ilhas de um mesmo arquipélago – da
intraduzibilidade vertiginosa, até o ponto onde a solidão infinita, a solidão
de mundo, do fato de que não há um mesmo e único mundo – le monde.
Fazemos de conta que estamos juntos. Não podemos deixar de reconhecer que essa
distância intransponível é o que a linguagem e o dirigir-se ao outro permitem
– um espaço de um “como se” que assegura o social. Um contrato arbitrário,
consensual, histórico, convencional e não natural que assegura a sobrevivência.
Como um contrato de seguro sobre a vida. Quando fazemos de conta, we pretend,
como se diz em inglês, fingimos que temos os mesmos sentidos do mesmo vocábulo,
por exemplo, da palavra mundo, a totalidade disso que é mais um “como tal”,
que ninguém, jamais, encontrou. Esse nominalismo utilitário e refinado não é
mais que uma astúcia animal destinada a garantir a sobrevivência. A soberania
reclamada por aquele que forja a linguagem, impõe uma significação, coordena
os sentidos e os faz prevalecer. Fazemos de conta que habitamos o mesmo mundo,
falando a mesma língua, quando sabemos bem que lá onde o fantasma se encontra
não há nada. O mundo partiu e devemos portar o outro. Eu te porto lá onde
nada nos unirá, nada nos acolherá, nem numa ilha, nem num mundo, nem na vida,
nem na morte.Verdade diante da qual não haveria mais diferença entre o animal
e o soberano.
Os
dois textos, de Robinson Crusoé e de Heidegger falam da solidão, do isolamento
do homem numa situação dita originária. Os dois textos têm em comum a suposição
de uma diferença entre o animal e o homem, de transcendência humana e de poder
do homem, sobre a palavra, sobre a técnica, em relação so saber sobre o étant
como tal, o logos semantikos e apophantikos. Mas tudo se complica
no momento de associar esse poder à soberania. A relação de RC com os animais
e os selvagens é sempre vertical, em Heidegger o poder do homem está como
configurador do mundo. Todos que citei, de Defoe a Lacan, passando por
Heidegger, pertencem ao mesmo mundo no qual o animal é separado do homem por um
múltiplo defeito de poder: poder falar, poder morrer, poder significar, poder
aceder à verdade. O que RC pensa de seu papagaio Poll é quase o mesmo que
Kant, Lacan, Heidegger e tantos outros pensam de todos os animais incapazes de
uma palavra responsável.
Vocês
se lembram da minha insistência quanto ao termo Walten e todas as suas
ocorrências, que apelam a um super poder que decide tudo, da primeira à última
instância, em particular em relação a um “como tal”, quanto à diferença
entre o être e o étant. Que apela a uma soberania tão soberana
que excede à figura ou a determinação teológica e política ou onto-teológica
da soberania. O Walten de Heidegger seria tão soberano que seria ainda
privado de toda dimensão antropológica, teológica e política ou
ôntico-ontoteológica da soberania. É esse ponto de excesso que me
importa. O Walten seria tão soberano que estaria além da soberania no
seu limite teológico e político. O que quer dizer excesso de soberania? Walten
é o intraduzível que desafia qualquer possibilidade de tradução para
designar aquilo que é mais difícil de pensar, a saber, a diferença entre l’être
et l’étant. Dominar é prevalecer. Há um gewalt no Dasein,
uma violência muito além do seu sentido usual, que não é brutalidade. O Dasein
é superviolento, ultrapoderoso, num excesso de prepotência, de prevalência. O
homem é violento porque está exposto à violência do Walten – do étant.
O unheimlich dessa potência reside no que esse poder tem de aparência
domesticada, familiar. O homem é aprisionado pelo Gewalt desse Walten.
Ele se atribui, como sujeito, a iniciativa da invenção da linguagem. Por isso,
pensa que é o autor de tudo isso, que inventou a linguagem e por isso torna-se
estrangeiro a sua própria essência. O que distingue o homem do animal é,
portanto, a violência do Walten, que torna possível sua imagem
edificadora.
Uma
última citação de Heidegger: Só existe uma única coisa, repito, uma única
coisa que põe em cheque, ou violenta esse Walten é a morte.
A
questão permanece – quem pode morrer, a quem esse poder é dado ou negado?
Pela morte está em cheque a super, hiper, soberania do Walten.