APRESENTAÇÃO
LÍNGUA
NACIONAL E SABER METALINGÜÍSTICO: UM PROJETO SINGULAR
Quando propus que o nosso programa de pesquisa aliasse
a história da constituição do saber metalingüístico
com a história da construção da língua nacional,
sabia que esta decisão traria contribuições específicas
ao modo de se pensar e trabalhar a questão da língua em países
de colonização. Restava conhecer os ganhos teóricos
e compreender os aportes no que toca a história da ciência. E
algumas das observações que faço na apresentação
deste número de nosso boletim Relatos dizem respeito justamente a
essa compreensão.
Na medida em que, de um lado, alia Gramática,
História da Sociedade e Ideologia, e, de outro, Saber Lingüístico
e Língua Nacional – regulando as relações entre diversidades
e unidade para o Estado – uma forma de conhecimento como esta dá
uma configuração particular à história das ciências.
Em nossa proposta, isso só foi possível de ser atingido porque,
do interior do conhecimento lingüístico, organizamos uma leitura
que se inscreve nas chamadas novas práticas de leitura, propostas
pela análise de discurso de linha francesa. O propósito dessas
práticas é relacionar o dizer com o não dizer, com o
dito em outro lugar e com o que poderia ser dito. Essa escuta tem de particular
o ser sensível às relações de sentido – seja
pela memória (o interdiscurso) seja pela menção (a intertextualidade).
O que temos, então, são novos gestos de leitura.
No que consiste a especificidade desses gestos, ou
em outras palavras, da mediação estabelecida por esse dispositivo
teórico de interpretação?
No fato de que a língua ela mesma se inscreve na história
para significar. É, pois, a historicidade e a consideração
do funcionamento ideológico do dizer que trazem algo de novo.
Ver a gramática como parte da nossa relação
com a sociedade e com a história (cf. E. Orlandi, 1996) transforma
esse objeto – um instrumento lingüístico (S. Auroux, 1992) –
em um objeto (vivo), parte de um processo em que os sujeitos se constituem
em suas relações e como parte da construção histórica
das formações sociais com suas instituições,
e sua ordem cotidiana.
Não se trata do uso de um artefato mas da construção
de um objeto histórico. Quando se constrói uma gramática
já se põe a questão do ensino. Não se fala então,
dessa perspectiva, sobre a função da Gramática, mas
do funcionamento da produção sobre a língua na relação
desta com o sujeito e com a sociedade na história. Aí, sim,
se atinge o modo de constituição (do saber e da língua)
e não apenas a aplicação de uma coisa sobre a outra.
A nossa sociedade, do ponto de vista da linguagem,
funciona com o saber e com a escrita enquanto materialidade que constitui
a própria forma de nossas instituições. A Escrita é
uma forma de relação social, historicamente determinada. A
Gramática é um objeto de conhecimento social historicamente
determinado.
O Ensino não prescinde desses objetos e dessas
relações.
O século XIX é um momento crítico
na reivindicação por uma língua e sua escrita, por uma
literatura e sua escritura, por instituições capazes de assegurar
a legitimidade e a unidade desses objetos simbólicos sócio-históricos
que constituem a materialidade de uma prática que significa a cidadania.
A forma política dessa cidadania e a forma do sujeito que lhe correspondem
não são de outro, a sua textualidade: gramáticas, dicionários,
obras literárias, manuais e programas de ensino.
Nossa tarefa é, através da análise
dessa textualidade, dessa materialidade, compreender o processo de constituição
e os sentidos dessas instituições e dos sujeitos sócio-históricos
que as praticam.
Nessa história vale ressaltar ainda o fato,
o acontecimento discursivo da imigração. Que produz uma história
que se poderia pretender linear mas que traz mais um atravessamento de memória,
o que produz indistinção tanto no sujeito como na língua,
passageiros de espaços ambíguos e de múltiplas temporalidades.
Os textos que seguem expõem um pouco essa forma
de compreensão. Por aí vemos que, enquanto objetos históricos,
tanto a gramática, como o dicionário, ou o ensino e seus programas,
assim como as paródias da língua, são uma necessidade
que pode e deve ser trabalhada de modo a promover a relação
do sujeito com os sentidos, relação que faz história
e configura as formas da sociedade.
Eni Puccinelli Orlandi
Campinas, outubro de 1997.
Referências Bibliográficas:
AUROUX, S. (1992) A Revolução Tecnológica da Gramatização.
Campinas, Editora da Unicamp.
ORLANDI, E. P. (1996) “o Saber, a Língua, a História”. XI
Encontro Nacional da ANPOLL, João Pessoa.
HISTÓRIA DA GRAMÁTICA NO BRASIL E ENSINO.
EDUARDO GUIMARÃES
DL
– IEL/LABEURB
UNICAMP
Falar sobre as funções da lingüística,
ou da ciência em geral, é colocá-la fora do funcionamento
social, é tomar a lingüística, ou a ciência em geral,
só como instrumento.
Quero aqui deslocar esse tipo de posição.
Para isso vou tratar de como funcionam as ciências da linguagem como
parte do corpo social em que se formula. A questão não é,
pois, a de dizer qual a função social das ciências da
linguagem, mas a de compreender como ela funciona na sociedade. Para tratar
desse funcionamento, vou tomar um momento na história do Brasil importante
na história da gramática e do ensino da língua, especialmente
do ensino da língua portuguesa em nosso país.
O processo de gramatização (Auroux, 1992) brasileira
do português (Guimarães, 1994) se dá a partir dos anos
80 do século XIX(1). Este processo é fortemente determinado,
de um lado, pela relação que o Brasil estabelece com idéias
filosóficas e científicas de outros países, já
não diretamente filtradas por Portugal, e, por outro lado, pela instituição
escolar brasileira que se instalara a partir da fundação do
Colégio Pedro II(2).
Um fato decisivo neste processo de gramatização
brasileira do Português é o programa de português para
os exames preparatórios organizados por Fausto Barreto a pedido do
diretor geral da Instrução Pública, Emídio Vitório,
em 1887. A partir deste programa aparece um conjunto de gramáticas
que procuravam atender às suas indicações. Estas gramáticas,
ao lado de adotarem as indicações do programa diziam que tinham
o objetivo de romper com a tradição portuguesa da gramática
filosófica.
1. O Programa de Fausto Barreto
O programa estabelece duas provas para os exames preparatórios:
uma escrita e outra oral. A escrita era “composição” sobre
assunto a ser sorteado no momento da prova a partir de uma lista de pontos
organizada diariamente pela comissão julgadora. A prova oral consistia
de uma análise “fonética, etimológica e sintáxica”
a ser feita sobre um trecho escolhido pela comissão a partir de um
livro de uma lista que constava do programa em questão; e de uma exposição
de um dos pontos apresentados pelo programa, sendo a escolha do ponto também
feita por sorteio.
Um aspecto a se destacar é que a prova de português
precedia a todas as outras.
Os pontos orais constavam de 46 itens. O primeiro deles
era “Observações gerais sobre o que se entende por gramática
geral, gramática histórica ou comparativa e por gramática
descritiva ou expositiva. Objeto da gramática portuguesa e divisão
do seu estudo. Fonologia: os sons e as letras; classificação
dos sons e das letras; vogais; grupos vocálicos; consoantes; grupos
consonantais; sílaba; grupos silábicos; vocábulos; notações
léxicas”.
O item 6 é “Morfologia: estrutura da palavra;
raiz; tema; terminação; afixos; Do sentido das palavras
deduzido dos elementos mórficos que as constituem; desenvolvimento
de sentido novos nas palavras”.
Os itens de 7 a 11 tratam das classes de palavras.
O item 12 é “Agrupamento de palavras por famílias
e por associação de idéias. Dos sinônimos, homônimos
e parônimos”.
Os itens de 17 a 20 são sobre formação
de palavras.
Os itens de 21 a 28 são sobre etimologia portuguesa.
Os itens de 30 a 41 são sobre sintaxe. O item 40 é
“da colocação de pronomes pessoais”.
Os itens de 42 a 46 são sobre o que podemos chamar de retórica
e estilística.
2.1. Na época do aparecimento do programa, Júlio
Ribeiro, que já publicara sua Grammatica Portugueza em 1881, apresenta-o
em “Procellarias” e faz sobre ele alguns comentários. Um deles é
que o programa apresentado se formulava em bases científicas. Segundo
as suas próprias palavras: “Não há o que negar; é
este programa organizado cientificamente, sobre as bases largas, sólidas,
da ciência da linguagem” (Ribeiro, 1887, 92). E para sustentar esta
sua afirmação ele diz que o programa distingue como parte da
gramática a lexicografia e a sintaxe (idem). Deste modo, a ortografia
não é mais considerada uma parte autônoma da gramática,
como constava na gramática geral. Ao lado disso ressalta que o programa
pede conhecimento em morfologia, de modo a que esta não está
submetida à etimologia. Por isso se pode pedir o estudo do grupamento
das palavras por famílias e por associações de idéias
(idem, 93).
2.2. Tomemos agora observações feitas por
Maximino Maciel, que em 1887 publicou sua Grammatica Analytica, no seu texto
“Breve Retrospecto sobre o Ensino da Língua Portugueza”. Neste texto,
incluído como apêndice à sua Grammatica Descriptiva(3),
Maximino diz logo de início que por volta do ano de 1887 “a ciência
da linguagem atravessava uma época de transição” (Maciel,
1910, 499). Para ele, como para muitos desta época, inclusive Júlio
Ribeiro, o método histórico comparativo passava a ocupar o
lugar dos “antigos gramáticos portugueses Soares Barbosa, Bento de
Oliveira, Lage e outros” (idem).
E assim, segundo Maximino, “muitos professores que
se norteavam pelos filólogos estrangeiros, iam evangelizando, quer
na docência particular, quer em publicações esparsas,
as novas doutrinas, desbravando-lhes o terreno onde se tinham de arquitetar
os novos estudos” (idem 501). Segundo Maximino este grupo, no qual cita Fausto
Barreto, Hemetério dos Santos, Alfredo Gomes, João Ribeiro,
Pacheco Silva, Lameira de Andrade, Said Ali e outros, tinha em Fausto Barreto
um “centro de onde se irradiam os delineamentos gerais” (idem). Fausto Barreto
era catedrático do Colégio Pedro II e isto, segundo Maximino,
lhe permitia difundir e firmar novas doutrinas.
Ainda segundo Maximino, este programa “Assinalou nova
época na docência das línguas e, quanto à vernácula,
a emancipava das retrogradas doutrinas dos autores portugueses que esposávamos”
(idem, 502). Ao mesmo tempo ele diz que a partir do programa várias
gramáticas se fizeram como as de João Ribeiro, Alfredo Gomes
e a de Pacheco Silva e Lameira Andrade. Para ele as duas primeiras foram
mais usadas para o ensino, para os alunos e a terceira, mais para consulta.
Assim, “Houve pois com a publicação do programa em 1887, uma
como Renascença dos estudos da língua vernácula: na imprensa,
na docência particular se aclarava, se discutiam os fatos da língua
à luz das novas doutrinas” (idem, 504).
Tantos as posições de Júlio Ribeiro
quanto de Maximino nos dão conta de que o programa de Fausto Barreto
muda o ensino de língua naquele momento, criando,inclusive, pressão
sobre o conjunto de estabelecimentos de ensino da época, tendo aberto
o lugar para o aparecimento de novas gramáticas, dando andamento ao
que chamei gramatização brasileira do português (Guimarães,
1994). Assim depois deste momento continuam a aparecer gramáticas
novas. Lembremos aqui a Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira,
de 1907, que reivindica para si a filiação ao caminho aberto,
segundo ele por Julio Ribeiro com sua Gramática de 1881.
3. As Condições do Surgimento do Programa
Começo retomando o que dissemos em “Identidade Lingüística”
(Guimarães e Orlandi, 1996, 13): “A Língua, a Ciência
e a Política estabelecem entre si relações profundas
e definidoras na constituição dos sujeitos e da forma da sociedade.
Ao mesmo tempo em que a lingüística vai-se constituindo como
ciência, a questão da língua é afetada pela relação
do sujeito com o Estado e as políticas gerais de um país manifestam
essa inter-relação, de que a forma mais visível é
a formulação específica das políticas lingüísticas.”
O momento histórico aqui analisado é
vital na vida brasileira pois nele está se dando todo um trabalho
um trabalho de reflexão sobre as condições da nacionalidade
brasileira. E neste embate a questão da língua é uma
questão crucial(4). Há toda uma discussão que se instala
sobre se o português do Brasil é o mesmo que o de Portugal
ou não. Todos conhecemos as disputas como a de José de Alencar
e Pinheiro Chagas. Bem como sabemos que esta discussão se projeta
pelo início do século XX(5).
No campo de conhecimento sobre a língua isto
repercute através de estudos sobre, por exemplo, a especificidade
do léxico do português no Brasil, questão que já
se pusera através do Marquês da Pedra Branca no início
do século XIX, logo após a independência do Brasil.
Nota-se que há toda uma mudança que se
faz no ensino do português no Brasil que se baseia numa mudança
de paradigma de conhecimento. Mas o que levou à mudança foi
que este novo conhecimento é formulado como voz oficial do estado
através do programa de Fausto Barreto. Ou seja, uma certa posição
científica é formulada como posição institucional
e isto a partir de uma pessoa destacada, vista, inclusive, como liderança
intelectual.
Mas aí se põe a questão: Como
se constituiu no Brasil o conhecimento sobre língua formulado a partir
do comparativismo? Ele se fez depois do programa? Evidentemente que não.
Sabe-se que este conhecimento já se estabelecera
no Brasil antes de 1887. Em 1879 fora publicada a Grammatica História
da Lingua Portugueza de Pacheco Silva, de 1884 é a obra Estudos Filológicos
de Júlio Ribeiro. Em 1881 Júlio Ribeiro publicara sua Grammatica.
E ele também diz estar baseando-se nos novos métodos naturalistas.
Importante a se ressaltar aqui que a gramática
histórica de Pacheco Silva traz na sua parte final todo um estudo
sobre os Brasileirismos e Provincialismos , como uma forma de caracterizar
as mudanças da língua no Brasil.
Por outro lado, lembremos que Maximino nos relata que
havia um grupo de estudiosos desenvolvendo trabalhos na língua dentro
do comparativismo quando em 1887, o Inspetor Geral da Instrução
Pública solicita o Programa a Fausto Barreto. Ou seja, a solicitação
do programa se dá em virtude de se ter um tipo de conhecimento lingüístico
claramente estabelecido no Brasil naquele momento.
CONCLUSÃO
Assim a sociedade brasileira do século XIX se
desenvolve enquanto desenvolve entre outras coisas o conhecimento científico.
E este conhecimento se dá como tecnologia para o ensino porque é
parte das condições históricas do momento e porque ocupa
um lugar institucionalizado.
Se olharmos para momentos mais recentes da história brasileira,
veremos situações semelhantes. Lembro aqui o que significou
o estabelecimento da nomenclatura gramatical brasileira, no final dos anos
50, a inclusão da disciplina de língua portuguesa na área
de comunicação e expressão, nos anos 60/70, e a sempre
presente hoje, questão do vestibular para o ingresso na universidade.
Falar da relação da ciência com
a sociedade é falar necessariamente do percurso social do conhecimento.
Qual o papel específico do cientista na construção desse
percurso? Quais suas relações (a do percurso social) com o
Estado? Há como construir um percurso social do conhecimento sem passar
pela força legitimadora e coercitiva do Estado? Ou seja, é
possível constituir outros lugares sociais igualmente fortes
, a ponto de serem capazes de estabelecer o percurso social do desenvolvimento?
E no caso específico que estou analisando a pergunta torna-se mais
dura: É possível constituir outros lugares sociais, independente
do Estado, capazes de afetar o ensino de cima abaixo tal como o programa de
Fausto Barreto afetou, ou tal como a NGB e as regulamentações
sobre vestibular afetam hoje?
A questão do ensino e da língua
estão indissoluvelmente ligadas, e a Escola é diretamente ligada
ao Estado que, minimamente, regula o modo de funcionamento escolar.
Além disso, o conhecimento e o ensino se fazem
necessariamente em uma língua. Não qualquer língua,
mas a língua, ou línguas próprias de um país,
no nosso caso o Português.
NOTAS
(1) “Por gramatização
deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua
na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares do nosso
saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”.
(Auroux, 1992, 65). Este é o momento em que as gramáticas
e dicionários se fazem tendo em vista a questão da língua
no Brasil.
(2) O Colégio Pedro II foi
criado em 2 de dezembro de 1837, pela transformação do Seminário
São Joaquim.
(3) A Grammatica Descriptiva publicada em 1894 é uma modificação
da Grammatica Analytica de 1887.
(4) Sobre a questão da Língua
e a nacionalidade ver Língua e Cidadania (Guimarães e Orlandi, 1996).
(5) Sobre esta questão, ver por exemplo, Os Sentidos do
Idioma Nacional (Dias, 1996).
BIBLIOGRAFIA
AUROUX, S. (1992). A Revolução Tecnológica da Gramatização.
Campinas, Editora da Unicamp.
DIAS, L. F. (1996). Os Sentidos do Idioma Nacional. Campinas, Pontes.
GUIMARÃES, E. (1994). “Sinopse dos Estudos do Português no
Brasil: a Gramatização Brasileira”. Língua e Cidadania.
Campinas, Pontes. 1996
GUIMARÃES, E. e ORLNDI, E. P.(1996) “Identidade Lingüística”
Língua e Cidadania. Campinas, Pontes.
MACIEL, M. (1910). “Breve Retrospecto sobre Ensino da Lingua Portugueza”.
Grammatica Descriptiva. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1926.
RIBEIRO, Júlio (1887). Procellarias. São Paulo, Cultura
Brasileira.
FORMAÇÃO DO LÉXICO E SABER LINGÜÍSTICO.
JOSÉ HORTA NUNES
LABEURB/UNICAMP
A partir dos resultados de uma tese de doutorado(1), vamos apresentar
uma reflexão acerca da formação de um léxico
brasileiro, vista da perspectiva da produção de saber
lingüístico no Brasil desde o século XVI até o
XIX. Consideramos a produção de saber lingüístico
como processo de gramatização(2) das línguas.
A elaboração de dicionários está ligada a
transformações significativas na conjuntura histórica
e lingüística. Examinamos alguns momentos dessa produção
levando em conta o papel de teorias, conceitos e instituições
envolvidos. Para isso fizemos uma leitura do dicionário como
um discurso (Mazière 1989), analisando enunciados lexicográficos
em um corpus constituído inicialmente de relatos de viajantes,
e em seguida, de dicionários bilíngües (português-tupi/tupi-português)
e monolíngües (português).
A questão da formação de um léxico brasileiro
aparece mais fortemente a partir da segunda metade do século
XIX, acompanhando os movimentos nacionalistas. Ela se assenta no
final desse século, sobretudo com a noção de
“brasileirismo”. Conforme João Ribeiro, em 1989, brasileirismo “é
a expressão que damos a toda a casta de divergências
notadas entre a linguagem portuguesa e a falada geralmente no Brasil”
(3). Várias listas de brasileirismo surgiram desde então,
apresentadas como argumentos para legitimação do português.
O que nos interessa ressaltar quanto à noção
de brasileirismo é que ela está ancorada na unidade
da palavra e em uma visão do léxico como estoque de
termos, conjunto de itens a que são atribuídas significações.
No momento em que se propõe uma história da formação
do léxico, a questão que emerge para os defensores
da língua nacional é: que palavras ou expressões
constituem brasileirismos? Quando e onde apareceram? O que
significam? Deste modo, Arthur Neiva (1940) aponta em Pigafetta, cronista
da expedição de Fernão de Magalhães, as primeiras
manifestações de brasileirismos. A primeira lista deles
contaria com doze palavras recolhidas por esse viajante em 1519,
entre as quais temos, por exemplo, “pindá” (anzol, gancho)
e “ui” (farinha). Esta concepção conduz a uma idéia
do léxico como algo que vai se “enriquecendo” desde os tempos
da colonização, com o surgimento e a incorporação
dos brasileirismos.
Numa perspectiva que considera a história do saber lingüístico
e os processos discursivos de significação, um deslocamento
se impõe. A formação do léxico é
vista não através da dimensão empírica da palavra,
mas: a) através dos processos de significação
que conformam uma memória lexicográfica. Deste modo,
o que importa não é somente o aparecimento de palavras
ou expressões, mas o de processos discursivos: de nomeação,
de enunciação, de identificação, de
definição, etc. b) através da produção
de instrumentos lexicográficos: listas de palavras, relatos
com comentários enciclopédicos, dicionários, considerados
não somente como provedores de palavras e significações,
mas como discursos produzidos em condições históricas
específicas.
Considerado esse deslocamento, a história da formação
do léxico não corresponde a um processo linear, continuado,
tal como se supõe com a introdução progressiva
dos brasileirismos ao nível abstrato da língua. Ela decorre
de vários estados da produção de saber lingüístico
e das transformações que eles sofreram ao longo dos
processos históricos. Ela sofre bloqueios, desvios, apagamentos,
deslocamentos; constrói redes de memória e filiações
sócio-históricas.
Em nossa análise, chegamos a alguns recortes que correspondem
a momentos distintos da lexicografia brasileira, em cada um dos quais
depreendemos diferentes condições de produção
do saber lingüístico.
1.
Relatos de Viajantes
Os
inícios da formação de um léxico brasileiro
podem ser apontados nos primeiros relatos de viajantes. Com efeito,
nesses relatos aparecem comentários sobre os habitantes e
as coisas do país, formando-se verbetes organizados tematicamente.
A primeira filiação que apontamos diz respeito portanto
a um saber de tipo enciclopédico, que ainda não está
amarrado a uma unidade de língua nacional. O que temos é
o desencadeamento de processos de referência, dos quais resulta
uma espécie de sintonização da relação
entre palavras e coisas, incluindo-se aí mecanismos de nomeação,
de tradução, de identificação, que se
inserem nas formas narrativas, descritivas e dialogais dos relatos.
Estes nódulos de formação lexical constituem unidades
significativas, encabeçadas por elementos seja em língua
indígena, seja em português, como em Cardim (Tratados
da Terra e Gente do Brasil, 1583), que elabora uma lista comentada
de termos referentes a animais europeus.
Tal produção de saber está relacionada com as
práticas colonizadoras em várias instâncias.
A partir da análise, explicitamos algumas posições de
sujeito lexicográfico, ou seja, lugares enunciativos, historicamente
constituídos, a partir dos quais se diz a significação
lexical. Deste modo, temos, em Caminha, uma voz que enuncia a partir
do lugar da autoridade oficial, um lugar que é falado pelas
instituições (o reino, a marinha, a igreja). Na Carta
(1500), Caminha atribui ao “capitão”, autoridade da descoberta
e da posse, a colocação dos nomes na cena do achamento
(“o capitão pôs nome o monte pascoal”), e aos “marinheiros”,
autoridades do mar, a dos nomes dos sinais de terra (“eram muitas
quantidades de ervas compridas a que os mareantes chamam Botelho
e assim outras aves a que chamam fura buchos”). O sujeito lexicográfico
aparece ainda através de varias figuras: a) a do viajante
aventureiro, como em Hans Staden, que se representa nas situações
de contato em um conflito identitário envolvendo sujeito e
coisas do país; b) a do colono fazendeiro, como em Gabriel
Soares de Sousa, que diz a significação a partir da
posição do proprietário de terra; c) a do naturalista,
como em Jorge Marcgrave, que introduz um discurso de processo natural
em relação aos elementos da fauna e flora.
Essas diversas posições determinam a constituição
do léxico, cristalizando relações de paráfrase,
sinonímia, identificação, as quais configurarão
historicamente uma memória lexicográfica.
2.
Dicionários Bilíngües na Época
Colonial.
Os dicionários bilíngües (português-tupi/tupi-português)
elaborados por missionários jesuítas, com finalidades
catequéticas, desde a segunda metade do século XVI,
constituem os primeiros dicionários de língua, ordenados
alfabeticamente, feitos no Brasil. Eles são bastante peculiares
quanto à formulação dos verbetes. O Vocabulário
na Língua Brasílica (VLB), manuscrito anônimo
português-tupi do século XVI-XVII, traz entradas com
frases inteiras (como esta: "Pancada, pelo sinal dela que fica na
carne ou lugar aonde se deu”), bem como verbetes que incluem reflexões
gramaticais, comentários sobre a adequação dos nomes
às coisas e situações de conversação.
Questiona-se a significação a partir do ponto de vista
de um tradutor-intérprete, que coloca em cena locutores índios
e europeus em situações de uso. A nomenclatura é
delimitada e orientada no sentido do discurso religioso, de maneira que
a cena catequética torna-se uma imagem enunciativa organizadora
de um modo de dizer a sociedade – a ser transformada – através
de dicionários.
Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, essa produção
de bilíngües foi interrompida. Mudam as condições
de produção do saber lingüístico, privilegiando-se
o estabelecimento do português como língua obrigatória
e proibindo-se o uso do tupi nas escolas.
3.
Dicionários Bilíngües na Época
Imperial
No século XIX, a produção de bilíngües
teve uma retomada com outros objetivos práticos. O que estava
então em jogo era a construção de uma história
do Brasil, distinta da de Portugal. Gonçalves Dias, membro
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
foi encarregado de elaborar uma história das línguas
indígenas e elegeu o tupi como “língua dos antepassados
brasileiros”. Seguiu-se então um trabalho de arquivo voltado
para os manuscritos deixados pelos jesuítas. Desse trabalho
resultaram alguns dicionários tupi-português/português-tupi,
dentre os quais salientamos o Dicionário da língua
tupi chamada língua geral dos indígenas no Brasil
(1858), do próprio Gonçalves Dias. Essas
obras se caracterizam por introduzirem no interior dos verbetes uma
narrativa histórica e interpretações etimológicas.
O tupi é posicionado como língua de origem, conformando-se
a imagem do “tupi antigo”. Percebe-se que enquanto os primeiros missionários
apagaram a dimensão histórica das línguas indígenas,
os intelectuais do Império a inseriram em uma visão
evolucionista que tinha o tupi como origem primitiva e o português
como ponto de chegada. No verbete “peteca”, por exemplo, Dias indica
primeiramente a significação no tupi antigo (bater) e depois
no português (“Daqui vem chamar-se peteca a espécie
de volante ou supapo feito de folha de milho, que as crianças
lançam ao ar com a palma da mão”).
Ao
lado dos trabalhos comparatistas, dentre os quais podemos ressaltar
a obra de Martius, que reuniu em Glossaria Linguarum Brasiliensium
(1863) uma serie de vocabulários de língua
indígenas, coletados tendo em vista a unidade da palavra com
fins de comparação, houve, como vimos, uma produção
direcionada à formação de uma identidade nacional, fazendo
a ligação do tupi com o português. Percebe-se
que esses dicionários tiveram uma função antes
edificante de uma simbologia da nação, do que didática,
visto que somente o português era admitido nas escolas.
4.
Dicionários Monolíngües.
A afirmação de que o português do Brasil resultaria
de um “enriquecimento” do português de Portugal leva muitas
vezes a supor um bloco lexical já pronto ao qual foram se
ajuntando novos elementos para a formação do léxico
brasileiro. No entanto, parece-nos importante considerar a historia
da constituição dos dicionários monolíngües
para compreendermos melhor essa formação, evitando-se
reproduzir a orientação ideológica que faz com
que a lexicografia brasileira seja interpretada no efeito de complementaridade.
Além disso, convém dar atenção a todos os
domínios temáticos, e não apenas, como muitas vezes
se tem privilegiado, aos da fauna, flora e etnografia.
O aparecimento do primeiro dicionário monolíngüe
do português constitui um acontecimento importante, que provocou
mudanças significativas no modo de conceber o léxico.
Podemos ter uma idéia dessas transformações
analisando-se a passagem discursiva que ocorre nessas circunstâncias.
O Dicionário da Língua Portuguesa,
de A de Moraes e Silva (1789), primeiro monolíngüe, constitui
uma retomada do Vocabulário Português e Latino,
de R. Bluteau (1712), com supressões, transformações
e acréscimos. Enquanto alguns dicionários de língua
nacional, a começar pelo Dicionário da Academia Francesa
(1694), se voltaram para a descrição sincrônica
dos usos, a tradição portuguesa manteve uma filiação
direta com o dicionário de tipo enciclopédico, como era o de
Bluteau, que apresentava longos verbetes com essa característica.
Foi através da retomada que Moraes efetua de Bluteau que se
consolidou o enunciado definidor na lexicografia de língua
portuguesa. A partir da análise de verbetes da letra P desses
dicionários, chegamos aos seguintes deslocamentos: passagem
da propriedade natural do objeto para a matéria-prima trabalhada,
passagem do modo de fazer artesão à descrição
técnica do processo de fabricação, passagem do discurso
religiosos ao discurso jurídico, passagem do ponto de vista
do produtor ao consumidor.
O primeiro monolíngüe representa uma consolidação
da língua nacional em Portugal e um passo importante para
a gramatização do português brasileiro. Com suas
sucessivas reedições ao longo do século XIX, desencadeou-se
um jogo espetacular que fez com que as diferenças se manifestassem
mais decisivamente. Uma resposta à falta que autores brasileiros
indicavam nos dicionários portugueses veio através
de uma produção local, sobretudo a partir da segunda
metade do século XIX: dicionários de complementos, dicionários
de regionalismos, dicionários de termos técnicos,
dicionários de brasileirismos. Estes últimos, surgidos ao final
do século, reuniram de certa forma toda a produção
anterior que definia os termos usados no Brasil, antes disseminada
em listas e pequenos dicionários. Evidencia-se com isso a
diferenciação do léxico brasileiro com relação
ao léxico português, sendo que reafirma-se o efeito de
complementaridade mencionado mais acima – o qual persiste até hoje
com a marcação dos brasileirismos nos dicionários
de língua portuguesa. Mas uma análise de um conjunto
de verbetes nos permitiu observar, através do estudo das formas
de definições, alguns processos discursivos em jogo.
Por exemplo, no Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa
de Macedo Soares (1888), um dicionário de brasileirismos,
percebemos uma regularidade no uso de uma adjetivação
contrastiva no enunciado definidor. Essa adjetivação
conduz a uma oposição entre as elites e as camadas populares,
oposição que aparece ao modo de propriedades naturais
dos objetos. Vejamos, por exemplo, a definição de “brogúncios”
(“pequena bagagem, pobre e reles, do viajante a pé, do trabalhador
de estrada, do garimpeiro, constando do surrão de roupa do
serviço, rede, marmita, etc.”). Nos verbetes vão se
constituindo oposições entre o rico e o pobre, o limpo
e o sujo, o bom e o ruim, o dia e a noite, as águas e a seca.
E essas oposições se desdobram, sobre as representações
sociais: gente boa, aceada/povo ruim, rústico; roupa fina,
branca/roupa suja; poderoso, influente/vadio; índio manso,
domesticado, aldeiado/selvagem, grosseiro, estúpido. Nota-se
que esse discurso responde a um movimento republicano em que se busca
significar, na língua, o “povo brasileiro”, que passa então
a figurar desse modo nos dicionários(4).
Essas diferentes faces da lexicografia brasileira, pelas quais passamos
rapidamente, mostram que a formação do léxico,
quando se considera sua historicidade e seus modos de constituição,
não se resume a transformações ao nível
das palavras e expressões, nem à delimitação
de determinados domínios lexicais. Ela está ligada,
de um lado, às políticas lingüísticas que
definem a produção de um saber lexicográfico
(na relação com as instâncias de um saber em uma formação
social), e de outro, às próprias formas discursivas
através das quais esse saber se apresenta nos instrumentos
lingüísticos.
NOTAS:
(1)J. Horta Nunes. Discurso
e Instrumentos Lingüísticos no Brasil: dos Relatos
de Viajantes aos Primeiros Dicionários, tese de doutorado,
IEL – Unicamp, Campinas.1996.
(2) “Por gramatização deve-se
entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua
na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares do
nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”.
(S. Auroux, A Revolução Tecnológica da Gramatização
Campinas, Editora da Unicamp. 1992, p.65).
(3) Cf. E. P. Pinto, O português
do Brasil, Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro,
Edusp, São Paulo, 1978.
(4) Esse momento é também o
do aquecimento das primeiras gramáticas do português do
Brasil. E. Orlandi mostra como a reprodução dessas gramáticas
tem a ver com o estabelecimento da República, quando se fortalecem
as instituições, entre as quais a Escola, e língua
e Estado se conjugam em sua fundação (cf. E. Orlandi,
“O Estado, a Gramática, a Autoria” Relatos nº 4, junho
– 1997, Campinas.
REFERÊNCIA:
AUROUX, Sylvain.
(1992), A Revolução Tecnológica da Gramatização,Campinas
Editora da Unicamp.
MAZIÈRE,
Francine, (1989). “O Enunciado Definidor: Discurso e Sintaxe”, In
História e Sentido na Linguagem, Campinas, Pontes.
NEIVA, Arthur. (1940), Estudos da Língua Nacional,
Companhia Editora Nacional, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Porto Alegre.
NUNES, José
Horta. (1996), Discurso e Instrumentos Lingüísticos
no Brasil: dos Relatos de Viajantes aos Primeiros Dicionários,
tese de doutorado, IEL – Unicamp, Campinas.
ORLNDI, Eni Puccinelli. (1997) “O Estado, a
Gramática, a Autoria” Relatos nº 4, junho – 1997, DL – IEL –
Unicamp.Campinas.
PINTO, Edith
Pimentel. (978), O Português do Brasil, Livros Técnicos
e Científicos, Rio de Janeiro, Edusp, São Paulo,
1978.
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O IMIGRANTE E O
PORTUGUÊS BRASILEIRO.
EMERSON TIN
A questão da identidade e da alteridade
nos fenômenos de imigração reflete uma situação
“de duas línguas no mesmo (?) sujeito” (E. Orlandi, 1966: 114). Ou
seja, o imigrante carrega consigo duas línguas: a materna, a nativa,
aquela que aprenderam desde o nascimento, e a adotada, a nova língua,
a língua do país que escolhera – ou fora obrigado a escolher
– para viver e morrer.
Como sabemos, os imigrantes – principalmente os italianos
– vinham para o Brasil para ficar, não pensando em voltar para a Itália.
Passavam assim, a ocupar um espaço indefinido sem se reconhecerem,
em certo sentido, como cidadãos. O imigrante já não
era mais italiano, pois a viagem praticamente não tem mais volta;
mas ainda não é brasileiro, ainda não conquistara essa
cidadania – ainda não dominara a língua. Sabemos que “a linguagem
não é usada somente para veicular informações
(...) ocupa uma posição central a função de comunicar
ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que
ocupa na sociedade em que vive” (Gnerre, 1991:5). O imigrante, assim, ao falar,
se inscreve na história do italiano, em um primeiro momento e, em
seguida, passa a figurar num lugar de indistinção, numa “terra
de ninguém”, quando não fala nem o italiano, nem o português,
ma uma mistura de ambos: o “português macarrônico” (E. Orlandi,
1996). Dessa forma, o imigrante acaba não mais tendo pontos de referências
definidos: a Itália é uma terra distante, separada do Brasil
por um Oceano; o Brasil é uma terra estranha, desconhecida, misteriosa.
Além disso, o “português macarrônico”
não merece uma legitimação pela escrita. Os imigrantes
italianos, pobres em sua maioria, vinham ao Brasil principalmente para o
trabalho nas lavouras de café, em substituição ao negro
escravo. Por isso, e pelo fato de o “português macarrônico” não
conferir o status de cidadão brasileiro ao seu falante, “pode-se falar
o português macarrônico mas não se pode escrevê-lo.
A não ser como paródia. Côo uma língua que passa
ao lado de outra. Esta sim, com foros de legitimidade e parte da constituição
da cidadania, com sua escrita” (E. Orlandi, idem: 127).
Podemos ver, nesse “português macarrônico”, uma série
de indícios que caracterizam uma mistura de línguas, ou seja,
uma mistura do italiano com o português, que é trabalhada por
Juó Bananére, entre outros autores, através da paródia.
Na verdade, pode-se dizer que o poema de Bananére acaba por revelar
o esforço do imigrante italiano em se expressar na língua que
passou a falar. Mas essa inscrição não ocorre pela imposição
da língua: “O colonizador, por definição, é
o que, em termos de memória, exerce sua memória tradicional,
impondo-a (e impondo-se) ao colonizado. O imigrante não se define assim.
Ele não tem o poder (nem o direito) de impor a sua memória.
Embora toda prática de linguagem seja transformadora, ele fica mais
afetado pela memória local” (Eni Orlandi, 1996: 127). Aliás,
é o que vemos ainda hoje. Por exemplo, aqui em Campinas – cidade que
recebeu, assim como toda a região, um grande número de imigrantes
italianos, principalmente para o trabalho nas lavouras de café – serão
ministradas aulas de língua italiana nas escolas municipais, num acordo
firmado com o cônsul da Itália. Entretanto, tais aulas não
serão obrigatórias, num indício do que a autora afirmou,
ou seja, que o imigrante não pode impor a sua memória, não
tem esse direito.
Assim, se esse imigrante é um sujeito “indistinto”,
podemos no entanto perceber, no processo de inscrição do imigrante
italiano no português brasileiro, uma espécie de “gradação”.
Vejamos a seguir, com mais vagar, cada um desses “estágios”.
A Chegada na América
Um primeiro “estágio” ocorreria quando, logo
de chegada, o imigrante, no caso, o italiano, tivesse o primeiro confronto
com a nova língua: ele, italiano, falando italiano, no Brasil, espaço
de falantes de português-brasileiro em sua maioria. Nesse momento,
o imigrante estaria , como já dissemos, à margem da cidadania
e da história lingüística do português-brasileiro;
ele é o outro, que ainda não se reconhece – nem é reconhecido
– como brasileiro. Falta-lhe justamente o domínio da língua.
Mas isso não significa que a sua presença no espaço
brasileiro não fosse percebida, nem causasse influências. Um
exemplo, aliás muito conhecido, de uma influência imediata do
imigrante italiano no Brasil é a história que se conta sobre
a origem da expressão “terra roxa”, que denomina um tipo de terra comum
no Estado de São Paulo e propício para o cultivo do café.
Conta-se que, chegando, os italianos a chamaram de “terra rossa” (terra vermelha,
em italiano). Os brasileiros, ouvindo a expressão, passaram a chamar
tal terra de “terra roxa”, por aproximação do que ouviram. Esse
é um pequeno exemplo de que a chegada na América dos imigrantes
italianos não passou despercebida, nem mesmo no momento dos primeiros
contatos; longe disso, acabou por influenciar costumes e maneira de falar.
“Contatos Imediatos”
Um segundo momento seria o retrato por Juó Bananére
em suas paródias: o imigrante já passa a dominar certos aspectos
da nova língua, mas ocorre uma mistura entre os elementos de sua língua
materna e a língua adotada, ou seja, o imigrante passa a se esforçar
para se inserir na história do português-brasileiro; seria
uma espécie de italiano abrasileirado. O trabalho de E. Orlandi (1996),
que estamos comentando, refere-se a este momento.
MIGNA TERRA
Migna terra tê parmeras
Che ganta inzima o sabiá
As aves Che ato aqui,
També tuttos sabi gorgeá
A abobora celestia tambê
Che tê lá na mia terra
Tê moltos millió di strella
Che non tê na Inglaterra
Os rios lá sô maise grandi
Dus rio di tuttas naçó;
I os motto si perdi di vista
Nu meio da imensidó.
Na migna terra tê parmeras
Dove ganta a galligna dangola;
Na migna terra tê o Vap’relli,
Chi só anda di gartolla.
Na Canção do Exílio, Gonçalves
Dias compara constantemente o Brasil e a Europa, ou seja, a sua terra e a
outra. Já na paródia de Bananére essa dicotomia, essa
oposição parece desaparecer: a “migna terra” já não
é a Itália, mas também não é o Brasil.
“A indistinção em Migna terra (Brasil ou Itália?), o
“lá” (que é o Brasil ‘aqui’), a escrita com formas misturadas
(gn/nh, g/c), o não falar-se em ‘volta’, são a própria
definição do imigrante: é o que vem e fica” (E. Orlandi,
idem). Vemos esse “italiano abrasileirado” no texto acima através
dos usos g/c (“ganta”, ao invés de canta), gh/nh “(migna”, ao invés
de minha, o “correto em português, ou mia, o “correto” em italiano),
tt/d, u/o (“tuttos”/ “tuttas, ao invés de todos/todas, que seria o
“correto” em português ou titti/tutte, o “correto” em italiano), ch/qu
(“Che”, ao invés de que). Isso tudo revela, como bem constatou Eni
Orlandi (ibid.), a indefinição de identidade, do lugar que
o imigrante reconhece como sendo a “sua terra”.
De minha parte, gostaria de trazer para a reflexão
também um outro poema de Bananére onde vemos essa indefinição
do lugar do imigrante. É o caso do “Sonetto Futuriste”.
SONETTO FUTURISTE
Pra Marietta
Tegno uma brutta paxó,
P’rus suos gabello gôr di banana,
I p’ros suos zoglios uguali dos lampió
La da igregia di Santanna.
Ê mesimo una perdiçó
Ista bunita intaliana,
Che faiz alembrá os gagnó
Da guerre tripolitana.
Tê uns lindo pesigno
Uguali cós passarigno,
Chi sto avuanó nu matto;
I inzima da gara della
Te una pinta amarella,
Uguali d’un carrapato.
A começar pelo título – uma referência
ao movimento de vanguarda do Futurismo, em voga na Itália no início
do século –, encontramos uma alusão à Itália.
Logo na primeira estrofe, ocorre um deslocamento: a comparação
dos cabelos de Marietta com a “cor de banana”, fruta tipicamente tropical,
e dos olhos com os lampiões da Igreja de Santana, um bairro de São
Paulo. Na segunda estrofe, contudo, volta a referência italiana: talvez
à guerra da Itália contra a Turquia, em 1911 – 1912,
período em que aquela ocupa Trípoli. Vê-se que a referenciação
se torna indeterminada: Bananére se utiliza de imagens italianas e
brasileiras, simultaneamente. Isso nos mostra, de certo modo, a mistura das
culturas e a indefinição do lugar do imigrante. O seu lá
e o seu aqui não se podem fixar com clareza.
Podemos perceber o mesmo fenômeno, ainda, em
uma letra de Adoniran Barbosa, na qual se nota, se não uma mistura
de línguas, uma mistura de culturas. Vejamos:
SAMBA ITALIANO
Piove, piove
Fá tempo que piove quá Gigi
E io, sempre io
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricorda Gioconda
De quella sera in Guarujá
Quando il mare
Ti portava via
E me chiamaste: “Aiuto, Marcello”
La tua Gioconda à paura di quest’onda
Percebe-se no texto que, apesar de estar escrito muito
mais em italiano que em português-brasileiro, o espaço retratado
já não é na Itália, mas no Brasil. O texto remete,
inclusive, a um momento passado que tivera lugar numa praia brasileira. Embora
em italiano a letra já traga o espírito brasileiro, o que
já é um indício, ainda que tênue, de um início
de transição de culturas, de um início de integração.
O Início da Integração
Um terceiro momento seria aquele em que o imigrante
italiano, ou os seus descendentes, passam a se integrar à cultura
brasileira, mas sem apagar a suas origens. Isso é o que vemos retratado,
de certa forma, nas letras de Adoniran Barbosa, nas quais temos um português
italiano, em que a língua já é o português-brasileiro,
mas ainda vemos alguns leves traços do imigrante italiano, principalmente
no que diz respeito aos “erros”, ou traços de baixo nível de
escolarização. Aliás, não deixaria de ser relevante
o fato de Adoniran Barbosa – na verdade seu nome era João Rubinato
– ser descendente de imigrantes italianos: “João Rubinato pertence
às primeiras gerações de valinhenses, filhos de imigrantes
italianos que desembarcaram na cidade no final do século passado.
Mas sua história se confunde com a dos italianos que residiam no Bixiga,
em São Paulo” (Silvana Guaiume, 1997). Essa origem acaba por se refletir
no discurso de Adoniran: “A linguagem acaipirada das composições
é reflexo da origem interiorana de Adoniran, misturada com vícios
do vocabulário italiano” (Silvana Guaiume, 1997). São célebres
as letras de “Tiro ao Álvaro”, do “Samba do Arnesto” ou ainda de “Iracema”,
em que Adoniran Barbosa retrata com muita felicidade a fala dos moradores
dos bairros de São Paulo com maior concentração de
população de ascendência italiana. Vejamos um exemplo:
SAMBA DO ARNESTO
O Arnesto nos convido
Prum samba
Ele mora no Braz
Nóis fumos
Num incontremos ninguém.
Nóis vortemos cuma baita
Duma réiva
Da outra veiz
Nóis num vai mais!
(Nóis num semo tatu)
Notro dia
Encontremos co’o Arnesto
Que pediu descurpas
Mais nóis num aceitemos.
Isso num se faiz, Arnesto,
Mais você divia
Ter ponhado um recado
Na porta, ansim:
Óia turma, num deu
Pra esperá.
Aduvido que isso num
Faz mar,
E num tem importança.
Da outra vez
Nóis te carça a cara.
Percebemos no texto acima alguns indícios do
que seria o retrato caricato da fala de uma faixa da população
paulistana: os descendentes de imigrantes italianos moradores em alguns bairros,
como o Bixiga e o Belenzinho. Isso se nota nos “erros” de português:
a/e em verbos de 1ª conjugação (encontremos, vortemos,
aceitemos); l/r (vortemos, descurpas); ditongação de monossílabos
(nóis, veiz, mais, faiz). Poderíamos continuar apontando uma
serie desses indícios da fala de um grupo social popular formando,
no caso, de imigrantes e descendentes de imigrantes italianos, como o próprio
Adoniran Barbosa.
É interessante notar-se que, diferentemente
de Juó Bananére – cujo nome é Alexandre Marcondes machado
–, o que se tem agora é o olhar do próprio imigrante sobre
si mesmo. Se em Bananére temos a visão de um brasileiro escrevendo
como se imigrante italiano fosse, em Adoniran Barbosa temos a “legitimação”
da fala do imigrante, através dele próprio. Agora não
é mais o outro que o vê e o retrata, parodiando-o; ele mesmo
se vê e se retrata. Em lugar de posar como modelo, pinta seu auto-retrato,
com ironia.
Brasileiríssimo, enfim.
Por fim, num último momento, temos o brasileiro descendente de
italiano, cuja fala quase já não mais revela a sua ascendência
e cuja memória de língua (2) é a portuguesa-brasileira,
e não a italiana – remotamente podemos dizer que ainda a sua memória
de língua é afetada pela língua italiana pois, além
de jamais perdermos nossa memória de língua, o descendente
de italiano sempre estará exposto, embora não domine o idioma,
a vocábulos e/ou expressões italianas ou italianizadas, sobretudo
imprecações (como “ma che!”, “porco cane!”, “Dio Santo!”, “ecco!”
e outras menos comportadas...) e há costumes reveladores de sua origem
(os grandes almoços de domingo com toda família reunida em
torno da macarronada, pratos típicos ensinados de geração
a geração, as massas feitas em casa).
Neste contexto é que se inserem iniciativas como a do ensino de
língua italiana nas escolas municipais de Campinas, de forma a percorrer
um “caminho inverso”: reforçar a memória de língua italiana
nesses descendentes dos imigrantes, através de um discurso de “reavivamento”
dos laços culturais entre a Itália e esses “italianos” do
Brasil. Isso, aliás, vem ao encontro da proposta de Eni Orlandi (1996,
131): discutir esses fenômenos cotidianos da língua, que expressam
sempre uma idéia de violência de uns falantes por outros, já
que é na língua que se explicitam as confrontações,
pois “a língua pertence a todos e é, ao mesmo tempo, o que
temos de mais propriamente nosso. Lugar de reações à
história e ao social e lugar de singularidade.”
Notas:
(1) EMERSON TIN é bacharel
em letras pelo IEL (Instituto de Estudos da Linguagem), UNICAMP, e aluno
do Curso de Lingüística desta Universidade. Essa resenha
do texto “O Teatro da Identidade – A Paródia como Traço da Mistura
Lingüística” de E. P. Orlandi (1996) é produto de seu
trabalho no curso de História das Idéias Lingüísticas
ministrado na graduação do Departamento de Lingüística
no IEL – Unicamp.
(2) Essa é uma noção
que tem merecido a atenção de pesquisadores que trabalham discursivamente
com a língua, em particular cf. o trabalho de Mª Onice Payer
a respeito da imigração italiana.
Bibliografia
GNERRE, Maurizio (1991). Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo:
Martins Fontes.
GUAIUME, Silvana (1997). “Adoniran Barbosa”, Correio Popular, 03 de agosto
de 1997, Carderno C, p. 10.
ORLANDI, Eni Puccinelli (1996). “O Teatro da Identidade – A Paródia
como Traço da Mistura Lingüística (Italiano/Português)”.
In: Interpretação, Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico.
Petrópolis. RJ: Vozes, pp. 114 – 131.
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