APRESENTAÇÃO
UM
FATO, UM ACONTECIMENTO, UMA HISTÓRIA: IDÉIAS LINGÜÍSTICAS
NO BRASIL
Uma história
se conta por acontecimentos, por fatos que irrompem do/no cotidiano e
que se marcam porque, ao se produzirem, fazem sentido, reclamam interpretação,
demandam, como diz P. Henry, que lhe encontremos causas e
conseqüências. E eu acrescentaria, como texto, essa história,
com seus sentidos, tem de obedecer alguns princípios, entre
os quais, e não menos importante, o da não-contradição.
Mas essa história é feita por homens. Que, nessa posição
que estamos considerando, são autores de ciência e isto
tem sua particularidade. Uma delas é a de comprometer-se,
de um lado, com uma certa ordem de discurso e, de outro, com as instituições
tal como elas administram o conhecimento dentro de uma formação
social, tomada na história.
Estamos aqui trazendo,
expondo e comentando um desses acontecimentos: a vinda de Roman Jakobson
ao Brasil. Essa vinda tem seu sentido na história acadêmica
e ressoa na história institucional que sustenta a produção
do conhecimento. Tem suas causas e conseqüências. Desse
acontecimento faz parte o envolvimento direto de um dos professores
da Universidade de São Paulo, nesse momento – o prof Dr Izidoro
Blikstein. É o seu depoimento que tomamos para termos uma
ancoragem no fio da memória. Esta que, ao dizer, esquece e,
ao esquecer, mostra que ela funciona pela ideologia e trabalha pelo
político. Cabe aos que trabalham com a memória da ciência
tomar o cuidado teórico e metodológico necessário
para não se fazerem recortes que falam o já falado e
só reforçam os processos de legitimação
já instituídos apagando muito do real dessa história,
reforçando assim, ao invés de colocá-los sob
análise, os processos de inclusão/exclusão já
instalados. O cuidado de uma observação com dispositivos
que permitam que, ao se contar, não se esteja apenas falando
a partir de seu próprio dispositivo ideológico de interpretação.
Um método que permita tratar tanto o arquivo como o discurso
científico em suas especificidades, em uma palavra, que problematize
as maneiras de ler (de interpretar).
Um arquivo não se encontra, se constrói. Encontram-se
fatos, acontecimentos. Que, como dissemos, demanda sentidos. Por
outro lado, não se trata, no caso de especialistas da linguagem
que somos, de esquecer nosso próprio conhecimento de linguagem
e falar de um lugar externo como o do historiador. Somos colocados
na posição ambígua de falar da história do
conhecimento sobre a linguagem sendo parte dessa história. Mais
do que isso, somos parte interessada nessa/dessa história,
que é a história da constituição do saber
metalingüístico no Brasil. Mesmo e, sobretudo talvez,
porque há os que estão “fora” dela porque sequer tiveram a
chance de aprender a ler e escrever.
E isto
nos coloca no que tenho chamado, a partir de M. Pêcheux, numa
posição ética e política, numa posição
de responsabilidade: a de interpretar. Já que não há
sentido sem interpretação. Pois bem, assumamos esta
responsabilidade da interpretação. E para isso devemos nos
apoiar em teorias e métodos e não fingir encontrar aquilo
que na história já havíamos posto. Para isso,
e como especialista em análise de linguagem, tomemos as posições
teóricas em que nos inscrevemos como explicitação de
nossos gestos de leitura, ou seja, do arquivo que construímos
ao falar da história das idéias lingüísticas
no Brasil.
Retomando aqui o que apresentei em uma conferência em Maceió
(Fórum das Nações que abriu as festividades
de 500 anos de Brasil), quero lembrar que os discursos que falam de
histórias são eles mesmos parte da construção
da memória e dos processos de identificação.
Para mim, mesmo que muitos não reflitam sobre isso, trata-se
sempre da construção de dispositivos de interpretação
com seus fatos, seus comentários, suas versões. Esses
dispositivos, construindo-se sobre pressupostos e tendo suas finalidades,
inscrevem os pesquisadores em redes de filiações de
sentidos, estirando versões de um lado e de outro, comprometendo-se
com sentidos na história.
Constróem-se arquivos junto a maneiras de ler. O que, sem
dúvida, é uma tarefa necessária, social e historicamente,
mas que deve ser feita respeitando os limites da interpretação.
Limites esses somente possíveis de serem situados pela relação
com a teoria e com o método. Distinguir dispositivos teóricos
permite que cada pesquisador, vinculado a seu domínio específico,
ao falar da história, manifeste sua posição, sua
responsabilidade analítica, como dissemos, o que por sua vez,
nos permite – nos dá elementos para – situá-lo ética
e politicamente. Eu mesma, nesse momento que é nosso objeto
de atenção aqui, era professora de lingüística
na cadeira e Filosofia Românica da USP, mas o que interessa
é o acontecimento da vinda de Jakobson, aqui explicitado como
nosso objeto e trabalho e o trabalho que se fazia em lingüística
naquele momento na Usp, e isto tomado a partir do depoimento de
um dos personagens desse acontecimento.
Não se conta uma história sem se fazer recortes. Um
cuidado importante com o efeito-leitor é o de fornecer-lhes
a visibilidade dos instrumentos pelos quais estes recortes são
feitos, para que o leitor possa se situar.
Com esse cuidado e nessa direção de preservar nossa
responsabilidade nesse gesto de interpretação é
que fizemos a entrevista já tendo lido sobre Jakobson e sobre
as atividades preparatórias de sua visita em que se envolveu
o prof Izidoro Blikstein. A partir disto formulamos um roteiro
de entrevista, conduzida por quatro pesquisadores de linguagem –
José Luiz Fiorin, Diana Luz Pessoa de Barros, Eni P. Orlandi e
Eduardo Guimarães – que puderam, no fio da conversa, colocar questões
trabalhando assim a direção da memória que vinha
à tona nesse acontecimento discursivo que foi a própria
entrevista e que também faz parte dessa história, pois
não há como estar fora da história para falar
dela. Ou melhor, não há como estar fora da história ao
falar. Além disso, publicamos junto ao resultado dessa entrevista
um texto de Françoise Gadet – participante pelo lado francês
do projeto sobre história das teorias lingüísticas.
Este texto já publicado na França, nos dá um
parâmetro da importância científica de Jakobson a partir
de uma outra forma de produção sobre este mesmo autor.
Este é um modo de – na continuidade da história que
toda a equipe do projeto História das Idéias Lingüísticas,
com suas várias publicações que cobrem a produção
de um saber lingüístico no Brasil desde a sua descoberta,
vem trazendo para a reflexão – tratarmos agora da história
da Lingüística nos anos em que se constituíram
as condições do seu início institucional no
Brasil, mais especificamente em São Paulo. Situar esse início
factual não significa separarmos o que se passa nesse momento
no Brasil e o conjunto dessa história que nos situa no quadro
geral da lingüística no mundo. E tampouco o fazemos pensando
a “influência” desse autor aqui em nosso território,
mas justamente mostrando como nossa relação com o que
está fora desse território é trabalhada na constituição
de nosso espaço de conhecimento, dando-nos uma forma específica.
Este é apenas um objeto de conhecimento que estamos construindo.
Outros textos sobre esse mesmo evento serão escritos.
Campinas,
Abril de 2000.
Eni P. Orlandi
ENTREVISTA COM IZIDORO BLIKSTEINS
ENI –
Izidoro, conversamos há poucos dias, pelo telefone,
sobre a importância histórica, para a Lingüística
no Brasil, de movimentos intelectuais, de acontecimentos significativos
no processo de produção de conhecimento, tanto em relação
ao lado acadêmico (o que isso significa em termos teóricos,
em elaborações), quanto ao lado institucional, também.
O que se vai sedimentando como trabalho, o que vai fazendo uma história
da Lingüística na Instituição. Eu acho
importante isso. Um acontecimento como a vinda do Jakobson ao Brasil
tem as vantagens de ter todas essas dimensões, não?
A presença do Fiorin, da Diana, do Eduardo e minha aqui é
um pouco para conversarmos, para que você possa falar das coisas que
você acha que devem ser ditas. Como surgiu a idéia da
vinda do Jakobson ao Brasil?
IZIDORO
– Algumas áreas da então (estávamos em
1968) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras promoveram
a vinda do Jakobson ao Brasil: Francês, Russo, Filologia Romântica,
Línguas Indígenas, Inglês, com apoio também
da Antropologia. Houve uma preparação para receber o Jakobson
com a organização dos “Encontros Preparatórios
à vinda do Jakobson”, na Faculdade de Filosofia, no 10º
andar do prédio da rua Maria Antônia. Os encontros foram
realizados em junho de 1968, com os seguintes temas e professores:
4/6/68
– Prof Jurn J. Philipson: “Tendências da Lingüística
Contemporânea (breve panorama informativo)”;
11/6/68
– Prof Geraldo Cintra: “Diferentes abordagens na Descrição
de Estruturas Lingüísticas”;
18/6/68
– Prof Boris Schnaiderman: “A contribuição de R. Jakobson
à teoria da literatura”;
Prof
Izidoro Blikstein: “Aplicação da teoria de Jakobson
sobre paradigma (substituição) e sintagma (associação)
em Vidas Secas, de Graciliano Ramos”;
25/6/68
– A contribuição de Jakobson à Lingüística:
1) Prof Antônio
Carlos Quícoli – “Aspectos da teoria fonêmica de R.
Jakobson”;
2) Prof Jurn
J. Philipson – “Aspectos das idéias de R. Jakobson sobre a
linguagem infantil”.
Vale lembrar
que os “Encontros” foram organizados por uma comissão formada
pelos professores:
Albert Audubert
(Francês), Boris Schnaiderman (Russo), Carlos Drumond (Línguas
Indígenas), Isaac Nicolau Salum (Filosofia Romântica),
Jurn J. Philipson e Antônio Carlos Quícoli (Línguas
Indígenas) e Martha Steinberg (Inglês). A visita fulgurante
de Jakobson deu-se em setembro de 1968 e ele deslumbrou a USP com
sua visão multidisciplinar, demonstrando as profundas relações
entre Lingüística, Semiótica, Poética,
Literatura, Cinema, Teatro, Antropologia, etc. Podemos ter uma idéia
das suas conferências, consultando o Lingüística, Poética,
Cinema publicado pela Perspectiva em 1970.
ENI –
O Philipson também fez parte. Eu gostava muito
do Philipson. Conversava com ele bastante. Depois ele foi para a
Psicologia...
IZIDORO
– Isso!
ENI – Houve o risco
de acabarem com a Sociolingüística na USP. Aí
eu passei a dar essa disciplina, você lembra? Esse foi um dos
caminhos pelos quais eu fui para o Discurso.
IZIDORO
– Ah! ... certo.
ENI –
Não sei se o Philipson sabia ou não
que eu tinha mantido a Sociolingüística. Quando eu o
encontrava, ele tinha uma deferência, uma delicadeza muito grande
comigo.
IZIDORO
– Ele era muito bom!
ENI –
Comigo ele era muito cordial. O Egon Schader tem a
ver com a constituição da cadeira de Línguas
Indígenas ou não? Ele ficava na Antropologia...
IZIDORO
– o Egon era da Antropologia. Era conhecedor de Línguas
Indígenas. Principalmente o Guarani.
ENI –
Ele dava apoio ao Philipson, ou não?
IZIDORO
– Não sei, O Egon tinha muita afinidade com
a Lingüística. Eu conversava muito com ele. Ele tinha
uma visão bem aberta. Uma visão antropológica. Ele foi
da banca de tese de livre-docência do Edward Lopes.
FIORIN
– Sobre narrativa?
IZIDORO
– É.
ENI –
Ele entrava por causa das questões sobre narrativa
e mito.
IZIDORO
– O Egon era alguém muito sensível para
esta questão Semiótica e Lingüística. Há
um trabalho que ele fez com os índios guarani de que eu me
servi várias vezes para discutir o problema da percepção
cultural. Depois o Egon foi para a ECA. Ele se aposentou e foi para
a ECA dar Antropologia Cultural.
ENI –
Voltando para essa coisa do Philipson já que
partimos dele, eu sempre pensei que pudesse ter havido uma relação
dele com o Egon Schader, pelo tipo de trabalho. O Philipson era muito
citado, principalmente no exterior. Quando eu fiz o livro Terra
à Vista, consultando a Biblioteca Nacional de Paris,
li muitas destas citações; me arrependi muito de não
ter lido coisas dele antes. Ele desenvolveu um tipo de trabalho,
na linha da...
IZIDORO
– Na linha antropológica.
ENI –
Descritiva americana.
IZIDORO
– Ele fazia isso com muita competência. Eram
artigos de três, quatro paginas de descrição
sobre aspectos fonéticos. Eram coisas muito competentes.
ENI –
Vamos voltar à visita do Jakobson.
IZIDORO
– Bem, como já disse, a vinda do Jakobson foi
promovida por um grupo de professores da Faculdade de Filosofia.
ENI –
Não fazia parte também o Antônio
Augusto Arantes da Antropologia? Porque ele vinha assistir às
suas aulas...
IZIDORO
– É! ... ele assistia às minhas aulas.
ENI –
Ele estava interessado porque ele trabalhava com os textos do Levi-Strauss.
IZIDORO
– Ele pode ter participado de alguma coisa, sim.
ENI –
A iniciativa não teria sido dele na Antropologia?
IZIDORO
– Não!... não.
ENI –
Não era a Gioconda ainda?
IZIDORO
– Não!... não.
FIORIN
– A Gioconda era da Antropologia Física, na?
IZIDORO
– É!... Eu não saberia dizer. Mas eu acho que
o João Baptista teve algum tipo de participação
também. O João Baptista, o Amadeu Duarte Lana que era de
Antropologia também. O fato é que isso ocorre em 1968
que é o ano da vinda do Jakobson. A aproximação
da vinda do Jakobson provocou um certo frisson na Faculdade, porque
na verdade essas áreas de Humanas não sabiam direito
o que era Lingüística e muito menos Semiótica.
Conhecia-se o trabalho do Salum de Filologia, mas a Lingüística
vinha chegando aos poucos. Quando eu voltei da França, em
1965, já havia um ano de Lingüística no
curriculum de Letras. Então ao chegar, o
Salum disse que eu ia trabalhar com Lingüística. Então
eu comecei a trabalhar. Muito influenciado pelas idéias do
Jakobson, comecei a discutir em sala de aula Vidas Secas com
os alunos. Na perspectiva do Jakobson, do problema do sintagma e
do paradigma. Logo em seguida, soube que um professor da Licenciatura
estava se queixando de mim por eu estar invadindo a área
dele, ensinando Literatura nas aulas de Lingüística.
Eu disse que não estava ensinando Literatura. Na verdade
acontecia de tudo nessas aulas: cinema, literatura, pintura, etc.
Comecei a perceber, então, algumas coisas que não estavam
agradando muito. Por exemplo, eu fiz um debate com um grupo da
Lingüística e me lembro de que o pessoal foi ver um filme,
acho que era o “Fantasia”, do Disney, para ver um problema de tradução
intersemiótica. Os alunos voltaram e começaram a discutir,
e passaram do horário, entrando no horário do professor
de Latim. Ele também veio falar comigo dizendo que eu estava
invadindo o horário de todo mundo. O que eu percebi, no fundo,
é que havia uma coisa que estava incomodando. Um dia outro
professor de Latim me procurou nas escadarias da Filosofia e me disse
que estas questões de denotação e conotação
já estavam no Quintiliano, ele já não falava
isso? Qual era a novidade no que eu fazia? Estou dando exemplo de
reações não muito favoráveis, não é?
E isso continuou durante muito tempo. A gente percebia que o discurso
do antropólogo estava sendo posto em discussão, o discurso
do sociólogo, o discurso... quer dizer...
FIORIN
– Do professor de Literatura.
IZIDORO
– Estava mexendo com o professor de Literatura.
DIANA
– Principalmente com o professor de língua.
IZIDORO
– Ah!... principalmente com o professor de língua.
ENI –
Bom!... mas havia o outro lado, que é a Filologia Portuguesa.
IZIDORO
– Exatamente.
EDUARDO
– Izidoro, o que você está dizendo é que,
antes da vinda do Jakobson, você lidava com certos aspectos
do pensamento dele, e isso já trazia alguns problemas.
IZIDORO
– Já trazia problemas
EDUARDO
– E como é que isso se desenvolve? Aí chega o
momento da vinda do Jakobson, no qual você se desenvolveu,
junto com um grupo de pessoas. Por que razões você
se envolveu com isso? Evidentemente, isso parece óbvio pela
própria história que acaba de contar. Como é que
você se organizou? Como é que se combinou a vinda?
Como é que se organizou o conjunto desses interesses na vinda
dele, para um lugar em que fazia problema o pensamento dele?
IZIDORO
– Acho que a gente tem que retroceder um pouco. Estou começando
a fazer uma costura aqui, aliás a entrevista está me
fazendo reconstruir um pedaço de vida. Com as perguntas, a
gente começa a refletir.
DIANA
– Pensar em coisas que não tínhamos pensado.
IZIDORO
– Exatamente. Vocês sabem, quando eu fui para o meu estágio
na França sob orientação do Aubreton era para
trabalhar com Filologia Grega. O tema, meu primeiro tema, foi dado
pelo professor Taillardat. Ele disse que eu poderia estudar as finais
do infinitivo grego. Eu pensei, o que é que eu faço?
Na França, sem lenço sem documento, as finais do infinitivo
grego... Eu lia, estudava as vinte e quatro horas do dia. Encontrei
uma boa bibliografia. Comecei a fazer... Fiz o mestrado. Eu fui para
a França exatamente no mês da renúncia do Jânio.
Isso foi em 61. Em 63, vim para o Brasil. Aproveitei um período
de férias, e vim para cá, e logo fui conversar com
o Salum porque ele já tinha manifestado o desejo de que eu
trabalhasse com o Maurer e ele. Fazendo essa visita ao Salum,
ele me disse que, ao voltar para a França, deveria procurar estudar
as novidades, e começou a falar do Martinet, do Estruturalismo
Lingüístico, dos Elementos de Lingüística
Geral, do Roman Jakobson, isso em 63.
ENI –
Quem estava dizendo isso?
IZIDORO
– O Salum. Eu já estava lendo os Elementos de Lingüística
Geral do Martinet. Ele me disse que eu procurasse me inteirar
disso e escrevesse uma carta falando das novidades. Então,
quando voltei eu já voltei com a cabeça meio virada.
Pensei, não vou ficar nas...
DIANA
– Nas finais do infinitivo grego...
IZIDORO
– Eu tenho de saber o que é isso. E comecei a tentar
enfim conhecer essa bibliografia nova. Era o estruturalismo nascendo.
Estava começando a pegar fogo. Era 63. 64, ainda mais que
eu tinha ido justamente para fazer esse trabalho de Filologia Grega.
Isso criou um dilema para mim, porque eu tinha de terminar a tese
de terceiro ciclo, que era sobre temática da Filologia Grega,
mas eu estava absolutamente afundado no Estruturalismo, já
conhecendo o Jakobson, a Semiótica, etc.
ENI –
Só um parêntese, você terminou a tese do terceiro
ciclo lá?
IZIDORO
- Eu não terminei. Eu trouxe o material e aproveitei
para o meu doutoramento aqui. O tema era “análise etimológica
da família de cara e cabeça”, etc...
DIANA
– Não era mais infinitivo...
IZIDORO
– Não era mais infinitivo. Mas eu estava com um sério
dilema. O que gerou esse pequeno dilema, essa... paixão...
ENI –
Do Jakobson?
IZIDORO
– Sim, paixão pelo Jakobson. O que desencadeou
o meu entusiasmo foi a leitura de um artigo de crítico de
cinema Philippe Pilard, sobre o tema “Estruturalismo e Cinema”, publicado
em 1965 na revista Image et Son. Esse artigo era uma espécie
de cartilha da Lingüística e da semiologia, em que se
explicavam as noções de signo, significante, significado,
sintagma, paradigma... era pequena introdução à
entrevista dada por Roland Barthes para essa revista. Barthes procurava
aplicar a semiologia para explicar a construção do
filme L’homme de Rio, de Philippe de Broca, feito em 1964. Barthes
comentava particularmente uma cena, e isso é que me chamou
muito a atenção, uma cena em que aparecia uma espécie
de um magnata interpretado por Adolfo Celi.
ENI –
Marido da Tônia.
IZIDORO
– É... o Adolfo Celi tinha estado no Brasil. Foi marido
da Tônia Carreiro. Ele volta para a Europa e interpreta então
o papel de um magnata que está morando no Brasil, que é
dono de muitos diamantes. Roland Barthes comenta particularmente
o vestuário dele, uma flor na lapela, etc... e começa
a falar em signo, significante/significado, etc. O paradigma interpretado
por ele, e esse paradigma se estende para o sintagma, que é
o iate dele, sua casa, etc. Começa a usar conceitos de Jakobson e
Saussure na análise do filme. Pensei que dava para se trabalhar
com outras manifestações discursivas. Usando esses
conceitos eu peguei fogo, me entusiasmei. Comecei a mexer um pouco
com tudo isso. O meu orientador Jean Taillardat às vezes
me pedia contas do que eu andava fazendo. Então eu dizia
e ele respondia que daquele jeito eu não ia terminar a tese.
ENI –
Mas isso também foi muito comum com os brasileiros.
Eu não sei sua experiência. A gente ia para lá
pensando uma coisa, mas tinha uma vivência que mostrava outras
possibilidades. Eu acho que você tinha que cavar possibilidades
para depois continuar essas coisas aqui. Eu acho esse trânsito
importante, da gente na volta, essa reformulação de
programas... também faz parte.
IZIDORO
– Por volta de agosto de 65, o Prof Maurer me escreve uma carta
dizendo que eu tinha que estar aqui para exame médico porque
eles iam me contratar para a cadeira.
ENI –
Nesse momento eu já estava na USP. Eu comecei em 65 e 66,
a fazer a tese com o Maurer. Ele abriu a possibilidade de a gente
fazer a Especialização, trouxe você... Eu acho
que quem organizou a possibilidade de haver lingüística
foi, fundamentalmente, o Maurer. Pelo que eu vi de ações práticas,
ele é que abriu uma possibilidade de eu fazer uma especialização
em lingüística geral, quando se tinha só lingüística
indo-européia. O Maurer me explicou muita coisa de lingüística,
por exemplo, o Bloomfield.
IZIDORO
– Aliás, chamava-se glotologia clássica, esse
era o nome da disciplina.
ENI –
Era esse? Nem lembro.
IZIDORO
– Glotologia clássica.
ENI –
Trouxe você visando abrir essa perspectiva para a lingüística.
O Salum ia assistir às nossas aulas. Eram seminários
em que o Maurer dava algumas aulas e depois ele distribuía
para três pessoas, eu, Emílio Giusti e a Lélia
Erbolado. A Lélia pegou o Saussure e falou das dicotomias, o Emílio
falava de fonética e fonologia, e eu apresentei o Hjelmeslev,
também no estruturalismo. O meu estruturalismo não
era funcionalista como o seu.
IZIDORO
– Era o Hjelmslev.
ENI –
Aí eles me contrataram, lembra? Eu me lembro de que era já
para a gente trabalhar em Lingüística. Eu trabalhava
no diurno e eu lembro que você...
IZIDORO
– Essa entrada da lingüística, assim,
um pouco triunfal, seduziu os alunos. Eu me lembro de ter entre
os alunos nas primeiras turmas o José Miguel Wisnik, o Flávio
Aguiar...
ENI –
A Marisa Lajolo não era, não?
IZIDORO
– A Marisa Lajolo, exatamente.
ENI –
O Haquira.
IZIDORO
– O Haquira, quer dizer, esse pessoal estava todo lá.
E aí houve um fato que começou a provocar realmente
uma reação. Havia uma revista chamada Hífen, não
sei se vocês se lembram. Era uma revista dos estudantes que
publicavam artigos neles. A análise do Alegria, Alegria foi
publicada lá. Tinha um grupo que analisava as músicas
do Caetano Veloso. Essa revistinha de estudantes fazia avaliações
periódicas dos cursos. Era o único tipo de avaliação
na época. Quem conduzia isso era o Haquira, ainda como estudante.
Num número da Hífen, vinha uma avaliação das
várias disciplinas – filologia românica, a avaliação
dizia: “perfeitamente dispensável”; lingüística,
primeiro ano: “matéria essencial”. Vocês podem imaginar
o tipo de trauma que isso causou?
ENI –
Isso já antes do Jakobson?
IZIDORO
– Antes do Jakobson. De maneira que, quando o Jakobson está
chegando ao Brasil, há uma mobilização do pessoal
mais interessado em lingüística e antropologia para recebê-lo.
E nessa mobilização se associaram os irmãos Campos
também. O Augusto e o Haroldo de Campos. Então se deram
os Encontros Preparatórios que eram no Salão Nobre
da Maria Antônia, no ultimo andar. Havia um comparecimento maciço,
estavam lá o Augusto, o Haroldo de Campos, Philipson, Salun.
Eu fiz uma apresentação também. E falei muito
sobre o Vidas Secas. Como é que eu explorava os comportamentos
das personagens. Na ocasião houve até um princípio de
polêmica. Questionaram porque o Peirce não estava sendo
discutido nas reuniões também. Esses Encontros Preparatórios
mostraram que havia um espaço para essas idéias. De
modo que quando o Jakobson chega havia um espaço e havia uma
vibração muito grande. Depois ele é convidado para
vários lugares. Ele deu palestras numa série de Faculdades,
e com uma afluência de público extraordinária.
Mas só para reforçar mais a idéia da fronteira
criada, depois da vinda do Jakobson eu continuei investindo nessa
linha de trabalho, a tal ponto que o João Baptista Pereira
me convidou para dar um semestre de lingüística para o pessoal
da Antropologia. E aí eu comecei a dar essa parte também.
Isso também foi incluído na minha carga horária.
ENI –
Eu fui para a França em 68, eu não vi o Jakobson. É
gozado... quer dizer, eu participei um pouco, embora eu não
fizesse parte do grupo que vinha a sua casa.
IZIDORO
– O grupo de sexta-feira.
ENI –
Eu ajudei a traduzir os textos do Jakobson, porque eu queria participar
de alguma maneira.
IZIDORO
– Agora essa alegação que eu estava saindo do
programa tinha a sua razão de ser, precisavam de mim para
s primeiros anos e eu ficava dando aula em Antropologia. Como é
que eram essas aulas de Antropologia? Eu precisava exibir filmes.
Então, imagina as loucuras que somos capazes de fazer! Disseram-me
que o Juizado de Menores que funcionava na Asdrúbal do Nascimento
tinha uma ótima filmoteca com projetor de filmes, que eles
tinham na verdade toda a coleção do Cinema Brasileiro.
DIANA
– O Juizado?
IZIDORO
– É, porque eles pegavam cópias d os filmes brasileiros.
Quem descobriu isso para nós foi o Jean-Claude Bernardet.
ENI – Jean-Claude era
incrível.
IZIDORO
– então, esse é um outro fato. O Jean-Claude Bernardet
me disse que estava gostando muito dessas idéias do Greimas
e me propôs fazer uma análise estrutural das chanchadas
do cinema brasileiro. Isto é, analisar as estruturas narrativas...
Então, eu ia co o Jean-Claude Bernardet a esse Juizado para
analisar os filmes. Isso era em 1968, o Bernardet foi cassado, o
projeto caiu por terra, mas eu fiz amizade com esse juiz de menores
e então perguntei se eu não podia dar algumas aulas lá.
Ele permitiu. Assim eu dava lá algumas aulas de Antropologia
e Lingüística, que era em nível de pós-graduação.
Faziam parte dessa turma a Eunice Durham e a Ruth Cardoso. Elas acompanharam
as aulas. Era muito interessante. Elas tinham suas abordagens antropológicas...
O fato é que, terminado esse período letivo, fui obrigado
a abandonar as aulas de Lingüística na Antropologia.
Voltando ao Maurer, eu acho que ele teve uma presença muito
grande na entrada da Lingüística.
ENI –
Foi muito forte. Isso precisa ser realçado.
IZIDORO
– A cadeira era de Glotologia Clássica, depois virou
Lingüística Indo-Européia, que era o que ele
dava. E as aulas que ele dava, eu digo isso nu artigo que eu escrevi,
eram, na verdade aulas que respiravam a Estruturalismo. Ele já
fazia a Lingüística Comparativa numa perspectiva estrutural.
De modo que eu acho que não foi estranho a ele ter um semestre
de Lingüística. Era um pouco da Lingüística
Americana, a visão que ele tinha. E o próprio Salum
era muito sensível a essas idéias estruturalistas.
DIANA
– A minha impressão do Salum era de que ele
achava que era importante o que se fazia na Lingüística,
eu não acho que ele não achasse, mas por outro lado
eu acho que ele se sentia atingido por ver, de alguma forma, desqualificadas
as coisas que ele fazia, e pelas quais ele se interessava. Eu acho
que foi essa a questão, a questão primeira...
IZIDORO
– É!
DIANA
– Ele se sentiu um pouco desqualificado nessa história.
IZIDORO
– Mesmo porque...
ENI –
Não sei a sua posição, por que não dar
a importância que a Filologia podia ter? É por causa
da idéia do modismo?
DIANA
– Exatamente.
ENI –
Eu acho que ele ficou tocado por isso, não?
DIANA
– Ficou.
ENI –
Olha! Estou vendo grupos que fazem Filologia, como,
por exemplo, o de Lille. Estão com um trabalho maravilhoso.
Alias, um dos trabalhos mais bonitos que eu li atualmente foi o
Elogio da variante do Cherquiglini. É lindíssimo esse
texto. A Filologia também tinha um caminho a fazer. Você precisa
ver que trabalho bonito. O Salum não teve essa premonição
de que a Filologia tina...
DIANA
– Um papel.
ENI –
Uma coisa para fazer que não era antiga.
DIANA
– Mas os outros da época também não tiveram
e desqualificaram enormemente a Filologia.
ENI –
Não tiveram, tem razão.
DIANA
– Eu acho que se houve esse outro lado que a gente precisava
reconhecer também. E que o Maurer se aposentou antes disso.
IZIDORO
– É exatamente isso. E o Salum ficou no bojo disso. Eu
quero comentar a participação do Salum na tradução
do Dicionário de Dubois. Isso depois eu comento porque eu
acho que ele de redime um pouco quanto a essa barreira com a Lingüística
e com os lingüistas. Essas coisas aconteceram, eu estava dizendo,
esta avaliação da revista Hífen, aconteceu no
bojo da preparação da vinda do Jakobson. Tudo isso tinha a
ver com a própria personalidade do Jakobson. Ele tinha uma
visão aberta para a Antropologia, para a Poética, para
a Lingüística, para tudo. Isso veio com o Jakobson e
ele dá provas disso durante a estada no Brasil.
EDUARDO
– E a estada dele aqui como foi? Que programa ele fez? Quanto
tempo ele ficou?
IZIDORO
– Eu precisava verificar nos meus alfarrábios
o tempo exato que ele ficou. Na verdade é o seguinte: oficialmente
ra a USP quem estava pagando a viagem. Alias, não era só
para ele, mas para a mulher também, a Cristina Jakobson. A
mulher também veio fazer palestras aqui. Na verdade, o Jakobson
sentiu-se um pouco numa terra de ninguém quando ele chegou.
Só para citar um fato curioso, na chagada dele e Congonhas, se
discutia como é que a gente deveria recebê-lo. Ninguém
sabia nada. Se deveríamos dar um buquê de flores logo
na chegada para eles...
FIORIN
– Quem estava lá recebendo o Jakobson?
IZIDORO
– Os irmãos Campos estavam.
EDUARDO
– Você estava?
IZIDORO
– Eu estava. Alias, na época eu levei meu fusca para
o Hotel Excelsior aqui na Avenida Ipiranga. Mas havia uma briga
para saber quem entregava o buquê para a mulher, mas enfim
isso acabou sendo resolvido. E houve um problema com a documentação.
Eu o via pelo vidro falando com os fiscais aduaneiros. Quando começou
aquela burocracia de alfândega, ele disse que ia embora daqui.
Que voltaria naquele momento mesmo se implicassem com ele.
ENI –
Era um custo já.
IZIDORO
– Então eu o levei para o hotel. Primeiro ele fez palestras
na USP. Depois na Aliança Francesa, na FAU. Fez também
no auditório do SESC na Dr. Vila Nova. E quando ele chegou
os irmãos Campos ficaram muito próximos dele.
FIORIN
– E quem organizou a agenda dele?
IZIDORO
– Foram os Campos.
FIORIN
– E ele falava em que língua?
IZIDORO
– Isso é interessante. Ele se expressou em Francês.
As palestras foram todas em Francês. E foi muito curioso,
porque ele revelou ser uma pessoa de uma capacidade de adaptação
ao local, de envolvimento com o país. Vou contar um episodio
para ilustrar isso. Houve um dia em que se organizou...
DIANA
– Ele já tinha setenta e poucos anos.
IZIDORO
– Setenta e poucos anos, mas com muito vigor. Então nós
organizamos um almoço para ele. Nesse almoço estavam
presentes os irmãos Campos, o Jacó Guinsbur, o Boris
Schnaiderman e eu. O Boris Schnaiderman esteve muito presente junto
ao Jakobson. E nesse almoço as pessoas comentavam sobre caipirinha,
e ele não conhecia a caipirinha. Falavam das belezas do Brasil,
das “Mulâtresses”. Então ele pegou um copo de caipirinha e
dizia “alors à mulâtresses et à la caipirinha”
e bebia. Era uma figura realmente...
FIORIN
– Esse almoço foi onde?
IZIDORO
– Foi num restaurante aqui na Alameda Santos. Não sei
se existe mais, quase em frente ao Jardim Trianon.
ENI –
Nessa programação ele falou também
de Fonologia ou manteve-se só na outra parte?
IZIDORO
– Se eu me lembro bem, as palestras que mais entusiasmaram foram
essas em relação à interdisciplinaridade da
Lingüística, Lingüística e Poética,
Antropologia. Ele não entrou muito na parte fonológica. Lembro-me
agora de um fato interessante. Quase no final do meu período
na França houve o “I Seminário de Lingüística
Aplicada” da Associação Internacional de Lingüística
Aplicada, AILA, em Besançon. Nesse seminário assisti às
palestras do Coseriu, do Martinet.
ENI –
Foi quando?
IZIDORO
– 1965.
ENI –
Porque isso foi muito importante...
IZIDORO
– Muito importante.
ENI –
Eu quero mostrar, por exemplo, que esses acontecimentos não
se limitam ao lugar em que se realizam. Havia brasileiros lá.
Isso aconteceu lá, mas repercute depois aqui.
IZIDORO
– Quem estava lá também e que depois vai aparecer
é o Culioli, que deu uma palestra também.
ENI –
O Quemada estava?
IZIDORO
– Também.
ENI –
O Peytard?
IZIDORO
– O Companis.
ENI –
O Companis e o Peytard?
IZIDORO
– O Peytard eu não me lembro.
ENI –
Porque o Peytard...
IZIDORO
– Ele é de Besançon.
ENI –
Ele é de Besançon e trabalhava muito na questão
da Literatura. O Luiz Orlandi, da UNICAMP, nos anos 70, fez tese
com ele lá.
IZIDORO
– Esse seminário foi muito importante para mim. Assim
cheguei ai Brasil...
ENI –
Você falou em 60 e...?
DIANA
– 65.
IZIDORO
– Assim que cheguei, fiz uma pequena palestra na Associação
de Estudos Clássicos que era dirigida pelo Cavalcante. Apresentei
um pouco das idéias do Coseriu sobre Tipologia Lingüística.
Essas idéias do Coseriu me seduziram muito. E algumas coisas
muito apoiadas no Jakobson.
ENI –
Você via essa relação?
IZIDORO
– De lá eu já vim com essa relação.
De modo que o Jakobson, o que ele representou? Que desdobramentos
sua vinda produziu? Foi essa abertura para Antropologia, que foi
impedida depois. Côo é que é um professor de
Filologia Românica querer estar dando aula de Antropologia, não
é possível, não é? Eu acho que isso
ilustra muito bem a barreira que se estabeleceu entre a área
da Filologia e esse campo interdisciplinar.
ENI –
Quer dizer, você me diria que havia mais de uma chance nesse
momento para a Lingüística Formal?
IZIDORO
– Ah!... Sim.
DIANA
– E é uma coisa que é engraçada,
porque...
ENI –
Gozado, não?
DIANA
– Para ligar com a Filologia, é muito mais próxima
uma Lingüística do Discurso, uma Lingüística
de outra ordem.
ENI –
Mas eu estou vendo justamente o contrario do que você está
vendo.
DIANA
– Ela tinha dificuldade porque ela rivalizava...
ENI –
Por isso...
DIANA
– A Lingüística formal não rivalizava.
IZIDORO
– Ela não podia competir.
ENI –
Não ameaçava. E tem outra coisa, a sua maneira de trabalhar,
Izidoro, ameaçava porque pegava...
DIANA
– Por que ameaçava a Filologia.
ENI –
E uma porção de áreas...
DIANA
– Porque ameaçava tudo. É uma situação
que continua existindo até hoje.
EDUARDO
– Voltando ao programa do Jakobson, ele participou de algum
debate?
DIANA
– Como é que foi o público?
IZIDORO
– Enorme. Em todas as palestras. Havia estudantes, professores.
ENI –
E as conseqüências? Você está falando de
um momento em que você tinha um interesse numa certa área,
a Antropologia, etc. Aí vem o Jakobson, faz esse trabalho,
e depois?
IZIDORO
– A vinda dele aliou-se a um outro tipo de trabalho que eu já
estava desenvolvendo, era a tradução de textos dele.
EDUARDO
– E isso motivado por um trabalho que você já
vinha fazendo antes?
IZIDORO
– Que eu tinha feito antes.
DIANA
– Não foi feito por cauda da vinda dele?
IZIDORO
– Não.
DIANA
– Já estava começado?
IZIDORO
– Já estava começado, mas coincidiu. Logo que
eu cheguei, fazendo um pouco essa barulheira toda, alguém
se interessou um pouco pelo meu trabalho, foi o Rolando Morel Pinto.
FIORIN
– Mas ele era da Literatura?
IZIDORO
– É, exatamente. Ele era responsável pela cadeira
de Língua Portuguesa na ECA, e quem trabalhava com ele era
o Dino Preti. Ele assistiu a uma palestra minha e disse que não
era bem Língua Portuguesa que era preciso dar na ECA, o que
precisava ser dado lá era outra coisa. Era preciso dar Semiologia.
ENI –
O que estava certo, não?
IZIDORO
– Então ele me levou para a ECA.
ENI –
Mas você foi para lá trabalhar ou foi só para
dar uma conferência?
IZIDORO
– Primeiro e fiz uma palestra; depois, ele pediu a minha contratação
como instrutor. Então eu acumulava dois contratos, um de instrutor
em tempo parcial na Filosofia e um de instrutor em tempo parcial
na ECA.
ENI –
Isso correspondia a quê?
FIORIN
– Auxiliar de ensino.
ENI –
Eu era instrutora também. Fui contratada como instrutora de
Filologia. Não havia Lingüística anda. Embora
eu desse programa de Lingüística, a disciplina não
existia no currículo.
IZIDORO
– Não!
DIANA
– Não!... Lingüística separada de Filologia
só começou a existir quando começou uma graduação
em Lingüística.
ENI –
Bem mais tarde.
IZIDORO
– E a própria Filologia Românica ficou como eletiva
ou optativa.
ENI –
Izidoro, e com a ida para a ECA você conseguiu expandir mais
o seu campo de atuação? Você ficou com mais aceitação
na ECA do que na Lingüística?
IZIDORO
– Eu comecei esse trabalho lá na ECA e o Rolando começou
a se aproximar muito de mim. Quando começaram os trabalhos
de Língua Portuguesa para as primeiras turmas da ECA, acho
que, na segunda ou terceira turma, eram os alunos o Nuno Leal Mais,
o Arco e Flecha.
FIORIN
– Jairo.
IZIDORO
– Jairo Arco e Flecha, Ney Latorraca. Todos foram alunos. Passaram
por nós. Vejam o tipo de turma. Quando eu fui para lá
das aulas de Língua Portuguesa, era um tal de gente pular
pelas janelas, até a classe se esvaziar. Ninguém agüentava.
O Rolando me disse que queria que eu fosse com ele até a Cultrix
porque o José Paulo Paes estava interessado em inaugurar uma
série de lingüística. Fui lá com o Rolando
e tomei contato com o José Paulo Paes pela primeira vez.
ENI –
E aí você tinha esse projeto de traduzir Jakobson?
IZIDORO
– Então ele me disse que queria que eu fizesse um projeto
para Lingüística. Pensamos, então, no Jakobson,
Saussure, Buyssens, Barthes, etc. Começamos a trabalhar em
conjunto. Então o José Paulo, revelando uma fina percepção
retocou várias vezes o prefácio do livro do Jakobson.
Ele me dizia que eu estava falando da indissolubilidade do signo
lingüístico e que o Jakobson não pensava assim não.
Tivemos confrontos muito polêmicos. Assim começou essa
série de traduções e publicações.
DIANA
– Na Cultrix você publicou outros além desses?
Você conseguia ainda traduzir Saussure...
IZIDORO
– O Buyssens, o Elemento de Semiologia, do Barthes. Depois,
o Dicionário de Lingüística do Jean Dubois. Este
foi feito por um grupo.
DIANA
– A Cultrix continuou ainda interessada nisso, nós traduzimos
o Dicionário do Greimas.
IZIDORO
– Greimas.
ENI –
Criou uma linha mesmo.
IZIDORO
– Publicou Edward Lopes.
ENI –
Isso não está diretamente ligado à vinda do
Jakobson? Você está dizendo que ele veio e sustentou
o que você estava fazendo.
EDUARDO
– A Semântica Estrutural não foi pela Cultrix também?
FIORIN
– Ah!... Mas a Semântica Estrutural...
IZIDORO
– Houve um cruzamento pelo seguinte, quando eu lembre
ao José Paulo que o Jakobson estava por vir, ele acelerou
a publicação do livro para que ele tomasse conhecimento.
FIORIN
– Qual foi o critério para selecionar os ensaios?
EDUARDO
– Ou quais não foram incluídos, se tomarmos o
Éssais de linguistique générale?
IZIDORO
– Aconteceu o seguinte...
ENI –
Entrou um que vem do...
IZIDORO
– Exatamente, “À Procura da Essência da Linguagem”,
que foi publicado na Diogène. Nós pegamos o Éssais
de linguistique e o José Paulo disse que seria bom algo direcionado.
Nós queríamos mostrar a interdisciplinaridade da Lingüística,
como é que ela foi entrando mos diversos campos. Pensamos
então em “A Linguagem Comum dos Lingüistas e dos Antropólogos”.
Em “Dois Aspectos da Linguagem e Dois Tipos de Afasia”, porque é
aí que o Jakobson coloca a questão da metáfora
e metonímia, do sintagma e paradigma, e este era u texto que
eu utilizava muito.
ENI –
Nas suas análises?
IZIDORO
– Nas análises. No Vidas Secas eu analiso como Sinhá
Vitória tem uma percepção sintagmática
da realidade que Fabiano não tem. É dela a frase “as
arribações matam o gado”, lembram? O Fabiano começa
a dizer “a falta de água, o gado tem sede, a arribação
bebe água, a água falta pro gado e o gado morre”. Então
metonimicamente Sinhá Vitória ia muito mais depressa
aos fatos. Então eu discutia isso com os alunos. E também
“Aspectos Lingüísticos da Tradução”. A
questão da Teoria da Comunicação, a questão
antropológica, “A Concepção da Significação
Gramatical segundo Boas”. “Lingüística e Poética”,
evidentemente. E esse “À Procura da Essência da Linguagem”
nós acrescentamos pela natureza do artigo mesmo.
EDUARDO
– Um artigo da época, de 65 parece?
IZIDORO
– Era mais recente.
ENI –
E o que te chamava a atenção nele?
IZIDORO
– Ele tomava como ponto de partida as idéias do Peirce
e de Saussure e fazia um confronto. Mas só que ele começa
por comentar o Crátilo de Platão. E isso me interessava
muito pelo problema da arbitrariedade e motivação no
signo lingüístico. O Saussure atenuou o seu princípio
universal da arbitrariedade.
DIANA
– Que era um grande assunto na época.
IZIDORO
– E aí o “Rumeur de la Rue Réaumur”... o problema
da arquitetura fônica, da sonoridade...
FIORIN
– Também da arquitetura mórfica. Há aquele
exemplo do altus, altior, altissimus.
IZIDORO
– É!... e a gente completava com “Lingüística
e Poética”. Eu acho que o “Lingüística e Poética”
foi o ponto alto dessa publicação porque a gente foi
percebendo...
ENI –
Fui eu que o traduzi.
IZIDORO
– Foi você que o traduziu.
ENI –
Não... não fui eu sozinha, foi com o Rodolfo Ilari.
IZIDORO
– O que fomos percebendo foi que as funções da
Linguagem começaram a entrar no currículo da escola
secundária.
ENI –
Houve todo esse aspecto do esquema da comunicação passando
didaticamente... Você acha que esse momento foi importante?
IZIDORO
– Foi.
ENI –
E você acha que é menos a vinda do Jakobson e mais a
tradução do artigo ou o fato de estar existindo já
institucionalmente alguma coisa na própria universidade.
IZIDORO
– Acho que isso caminha mais ou menos junto. A presença
do Jakobson foi um elemento mais desencadeador. E o livro é
publicado. Começamos a discutir Lingüística de
modo praticamente obrigatório em todos os anos do curso.
E a Teoria Literária ficou muito sensível a esta questão
das funções da Linguagem. Então eu comecei
a ter algumas surpresas. Por exemplo, no primeiro ano de Lingüística
quando falei que ia tratar do problema das funções
de Linguagem, todo mundo já sabia, já tinha visto.
EDUARDO
– Ainda sobre a organização do livro, tenho uma
curiosidade. Por que alguns textos não fora incluídos?
O que mais me causa curiosidade é o caso do “Os Shifters,
as Categorias Verbais e o Verbo Russo”.
DIANA
– A mim também.
IZIDORO
– Se eu me lembro bem, esse capítulo compunha até
uma apostila na época. O pessoal já conhecia, já
tinha traduzido, já usava.
EDUARDO
– Você usava?
IZIDORO
– Usava.
EDUARDO
– Usava nos seus cursos também. Foi o editor que sugeriu
a retirada?
IZIDORO
– A editora queria um livro curto.
ENI –
Popular, digamos.
IZIDORO
– Popular, chamando a atenção para os aspectos
já mencionados.
EDUARDO
– Foram os aspectos técnicos de descrição
do artigo que pesaram para que ele fosse retirado, acho?
IZIDORO
– Principalmente porque ele era conhecido.
ENI –
Ele já era conhecido, o livro deveria conter novidades.
FIORIN
– Eu ia perguntar se não era o contrário. Será
que já havia uma sensibilidade para a questão da Teoria
da Enunciação? Ela já tinha o peso que tem hoje
ou não?
IZIDORO
– Eu acho que isso era muito novo ainda. Noções
como signo, arbitrariedade, motivação ainda causavam
um certo medo. Mais difícil ainda era partir para o aspecto
discursivo, a Teoria da Enunciação.
ENI –
Em 74, na minha tese, eu utilizei um pouco de Benveniste.
DIANA
– Uma coisa assim interdisciplinar.
EDUARDO
– Quer dizer... há uma razão positiva para a retirada
desse artigo: eles queriam um livro com um certo perfil interdisciplinar
e então os artigos mais técnicos não foram publicados.
IZIDORO
– É.
EDUARDO
– O editor entrou fortemente, ou foi uma coisa mais sua?
IZIDORO
– O orientador do José Paulo Paes pesou muito. Pesou
muito porque a Cultrix era o primo pobre da Editora Pensamento,
cujo forte eram os livros esotéricos. Pouco a pouco, o José
Paulo começou a ter uma grande dificuldade com a Cultrix.
Aliás, a saída dele se deveu um pouco a isso. Havia
esse peso do editor. Acho importante também falar de alguns
sinais do livro, a participação de várias pessoas,
que eu menciono no prefácio. O Wanderley Rodrigues, vocês
se lembram dele ou não?
ENI –
Lembro, ele foi leitor em Montepelier.
IZIDORO
– Rodolfo Ilari, Haquira Osakabe, Regina de Oliveira Rocha,
que é da cadeira de Francês, Sônia Ribeiro Leite,
Eni Orlandi, Ana Maria Balogh, e depois um agradecimento para a Ester
também, porque ela me ajudou a datilografar, neste caso foi
uma razão mais pessoal. Essas pessoas, não sei se
você chegou a participar, Eni, já faziam parte do grupo da
sexta-feira.
ENI –
Não, não cheguei a participar do grupo. Isso era em...
IZIDORO
– 67, 68. Então esse grupo de sexta-feira foi resultado
já das aplicações, um pouco das idéias
do Saussure, mas principalmente das de Jakobson. O que fazíamos?
Tomávamos textos, filmes, poemas, cr6onicas... Era uma reunião
livre em que aplicávamos os princípios do Jakobson nas análises
dos objetos de significação.
ENI –
Nessa época eu também li o Benveniste, você se
lembra de um artigo dele que eu acho que é de 40 e pouco,
que eu achei numa biblioteca, uma biblioteca que fica ali embaixo,
na Maria Antônia? Eu lembro que eu li também e achei
interessante. Eu fazia uma relação com Benveniste, mais facilmente
do que com Jakobson.
IZIDORO
– Exatamente. Quando terminamos o livro, o Jakobson ainda estava
no Brasil. Ele ficou aproximadamente um mês aqui. Eu não
me lembro se ele chegou a ir para outros estados. Eu posso até
verificar porque a gente tem alguns registros da programação
dele. Mas aí eu pedi uma hora com ele lá no Hotel Excelsior,
ali na Ipiranga. Eu me lembro até hoje, ele veio à
recepção e eu lhe disse que estávamos terminando o
livro e que eu gostaria que ele dissesse algumas palavras para essa
edição. Então ele ditou o final da apresentação.
O parágrafo final foi ditado por ele. São palavras
dele que eu anotei e traduzi: “A tendência cardinal dos Ensaios
apresentados nesse volume aos leitores do Brasil e de Portugal é
a contribuir para os esforços lingüísticos de nossa época
no sentido de superpor uma ciência da língua à
ciência das línguas diversas. As questões de
estrutura e funções, próprias a todas as línguas
do mundo, não são somente um corolário necessário
do estudo aprofundado de línguas variadas no curso do desenvolvimento
da Lingüística moderna, como, ao mesmo tempo, um complexo
de noções indispensáveis para uma interpretação
adequada de fenômenos lingüísticos particulares. Os
conceitos de invariância e de variações múltiplas
implicam-se mutuamente e sua complementaridade permite antecipar
uma verdadeira topologia lingüística do futuro”.**
ENI –
Izidoro, para sua posição na USP, o que ficou da vinda
dele? Isso reforçou o seu trabalho ou deu mais medo nas pessoas?
DIANA
– O lado institucional.
ENI –
Ficou pior? Porque as pessoas viram o tamanho do projeto.
DIANA
– Ficou pior ou melhor?
IZIDORO
– Eu acho que é um pouco ambíguo. A passagem dele
foi como um furacão. Deixou rastros para todo o lado. Começou
então um trabalho em Teoria Literária, em Lingüística.
Os alunos queriam fazer pesquisas. Leram o livro, faziam seminários.
De modo que houve um desdobramento...
DIANA
– Esse livro deve ter vendido muito?
FIORIN
– Continua vendendo!
IZIDORO
– Muito... continua vendendo. Numa de suas edições,
O Estado de S. Paulo fazia uma avaliação dos livros
mais vendidos da época. Eu diria que houve um desdobramento...
ENI –
E do desdobramento, você não quer falar sobre isso?
IZIDORO
– De um lado, como é que eu poderia dizer, de um lado
um trabalho de pesquisa...
ENI –
Na Teoria Literária, na Lingüística.
IZIDORO
– Na Teoria Literária, na Lingüística,
na Teoria da Comunicação. Eu acho que houve uma irradiação
das idéias do Jakobson em Letras, na Lingüística, na
Teoria Literária, na ECA, e a partir daí de um modo geral,
em Língua Portuguesa, Ensino de Língua Portuguesa. A
partir de então os livros didáticos passaram a incluir
o esquema das funções da linguagem do Jakobson.
ENI –
O ensino da linguagem como comunicação.
IZIDORO
– Linguagem como Comunicação.
ENI –No
fim você acha que essa inda e o seu trabalho configuraram um
certo campo de interesse?
IZIDORO
– É.
FIORIN
– Que era o novo.
IZIDORO
– É. Que era o novo. Há um trabalho
daquela moça que é de Araraquara, a Ude, Maria de
Lourdes Baldan...
FIORIN
– Isso!... ela fez uma tese sobre Jakobson, você estava
na banca.
IZIDORO
– Eu estava na banca.
DIANA
– Ela foi orientanda do João Alexandre, e Teoria Literária.
Ela trabalha com Semiótica greimasiana.
IZIDORO
– A baça eram o João Alexandre, Haroldo Campos,
Boris Schnaiderman, Alceu Dias Lima e eu... por falar nessa banca,
ocorreu algo muito curioso na ocasião. O Haroldo começa
a argüição dele falando sobre a importância do
Jakobson no Brasil, as idéias novas, a questão da
função poética... Então ele diz, num
dado momento, que algumas pessoas um tanto quanto míopes nunca
chegaram a entender direito Jakobson e transformaram isso numa espécie
de guerra ideológica, como alguns historiadores da Literatura.
ENI –
Eu acho que havia resistência à Lingüística.
Eu acho que também a Literatura reagia um pouco a isso, que
de fato nós, vamos dizer, tiramos o conteudismo que era trabalhado
de certa maneira na Literatura, e mostrar que a língua tinha
estrutura. No “I like Ike” está o aspecto da estrutura de
modo forte, e que ao mesmo tempo desemboca em coisas que eles, na
Literatura, tratavam de outra maneira.
IZIDORO
– O “Lingüística e Poética” foi até
certo ponto um tanto quanto demolidor.
ENI –
É, ele foi uma provocação na história...
IZIDORO
– Inclusive o pessoal da Teoria Literária sentiu
muito isso, porque era uma outra percepção do fato
poético.
ENI –
É a coisa do significante mesmo, não?
Pega pelo significante.
FIORIN
– A materialidade...
EDUARDO
– Há uma coisa que eu queria perguntar...
FIORIN
– Espera um pouquinho, Eduardo, antes disso... Izidoro você
tinha começado dizendo que ia falar dos aspectos positivos
e negativos. Você falou dos desdobramentos, e os aspectos negativos
o que foram? Foi essa resistência?
IZIDORO
– O negativo foi essa resistência manifestada de diversas
maneiras. Ou pelo silêncio, As Formas de Silêncio, não
Eni, como alguns diziam que não entendiam e que não
queriam tomar conhecimento. Ou pela oposição frontal
manifestada, por exemplo, em defesas de teses, tiradas irônicas,
etc.
ENI –
Queriam que se desse aula de Lingüística num sentido
restrito.
IZIDORO
– Isso, exatamente. Nada de Antropologia. Eu acho que disso
resultou uma cisão não resolvida até hoje entre
as áreas de Língua Portuguesa, de Ensino de Literatura,
etc. Mas é importante lembrar que o Salum nos ajudou muito...
por exemplo...
ENI –
Na tradução do Dicionário.
IZIDORO
– O José Paulo nos confiou a tradução do
Dubois. Tomei essa tradução como um trabalho de grupo
e pedi ao Salum que coordenasse o trabalho.
DIANA
– Ele matou todos os tradutores, não?
IZIDORO
– Exatamente, e não só isso. Eu posso dizer que
o Salum deu de dez a zero no Dubois. Se fosse possível ele
reformularia o Dicionário inteiro. Ele apontou centenas e
centenas de erros de concepção, e aí ele era certeiro
mesmo.
ENI –
Eu não sei porque não apostou nele.
IZIDORO
– Exatamente. Eu chegava à casa dele, às oito
da noite, e saía às cinco da manhã. Ele pedia
à empregada mineira dele para preparar bolinhos... Um dia a gente
parou num verbete, o aspecto verbal. A gente não saía
dele. Ele tinha todo um ideário sobre a questão do
aspecto verbal e mostrava por a + b que o Dubois estava errado. Ele
dizia que era uma vergonha esse Dicionário, a começar
pela bibliografia, que continha erros até no nome de grandes
lingüistas franceses. Quando a gente estava mais ou menos na
metade o José Paulo me telefona e me dá um ultimato, eu deveria
entregar o Dicionário. Então eu disse ao Salum que
infelizmente não dava para reformula-lo inteirinho. Teria
sido melhor escrever um dicionário.
DIANA
– Teria sido mais rápido.
IZIDORO
– A tradução do Dubois é um trabalho
híbrido. Eu não fiquei contente com a tradução.
Até a metade ele tem o dedo do Salum, depois foi como está
traduzido.
ENI –
Voltando a questão do seu trabalho, você
acha que o grande deslocamento mesmo era com a Literatura e não
com a Antropologia? Onde você acha que a coisa passava melhor?
IZIDORO
– É! Eu acho que pela via da Antropologia houve de fato
uma ruptura.
FIORIN
– Eu queria comentar uma coisa. Se se observar a sua tese de
doutoramento e a sua tese de livre-docência, vai-se verificar
que, embora ela tenha uma perspectiva histórica, há
uma diferença muito grande em relação ao que
se fazia em Lingüística Histórica aqui.
DIANA
– E lhe valeu muitos problemas.
FIORIN
– Aqui e fora daqui, porque, veja, você trata especificamente
das questões de cara e cabeça, mas fundamentalmente
pelo lado semântico, o que não era o forte nesse caso,
porque nós não tínhamos uma semântica diacrônica.
A única semântica diacrônica que tínhamos
na época era a de Benveniste com O Vocábulo das Instituições
Indo-européias.O Benveniste trabalhava isso. Por outro lado
de observarmos o Instituições Indo-européias, vamos
verificar que ele as estudava no Latim, no Grego, etc., mas nunca
chegou ao Francês. Você pegou e fez isso assim: Graciliano,
Plínio Marcos e outros. De onde vem essa influência
no seu trabalho?
IZIDORO
– Como é que houve esse desvio? Vocês falaram em
Benveniste. Eu acho que seria importante lembrar que há um
livro de Benveniste que teve uma repercussão muito grande
para mim, o Origem da Formação dos Nomes em Indo-europeu,
que vai plantar praticamente tudo o que ele vai fazer depois em
relação à semântica aos signos, etc.
EDUARDO
– Roland Barthes considera estes trabalhos como o lugar em que
o Benveniste faz uma obra que é de uma disciplina que ainda
não tem nome. Como uma disciplina que não é
uma Lingüística e nem uma Antropologia.
IZIDORO
– Exatamente. É uma Lingüística, uma Antropóloga,
é uma...
EDUARDO
– História.
IZIDORO
– É História, é Semântica, é
Semiótica. Na verdade esse livro do Benveniste nasce um pouco
da tradição de Maillet. Maillet faz...
EDUARDO
– De quem Benveniste foi aluno.
IZIDORO
– De quem ele foi aluno. Meillet faz o Introdução
a Estudo Comparativo das Línguas Indo-européias, que
eu acho um livro fundamental para o nascimento de um estruturalismo
histórico, se a gente puder dizer assim. De um cruzamento
de sincronia e diacronia. Aliás, essa foi a primeira orientação
do meu orientador. Assim que eu cheguei à França, ele me
perguntou se eu já tinha lido o Introdução a Estudo
Comparativo e o Origem da Formação dos Nomes em Indo-europeu.
Li o Meillet inteirinho. Eu acho realmente um monumento. Ele é
fabuloso, porque já abre espaço para a indagação
semântica, para a história dos signos. Benveniste é
o desdobramento do Meillet. No prefácio Benveniste introduz
um pouco da noção de família de palavras. É
um trabalho extremamente engenhoso, o problema da raiz trilítera.
Como é que ela aparece com as suas muitas variações,
para depois analisar a idéia do todo. Então ele diz que
Hegel dizia que “a verdade é o todo”. Isso me impressionou muito.
Na verdade, o fato de que, para compreender o fato lingüístico,
eu tenho que ter uma visão integral, tenho que integrar as
dimensões histórica e antropológica.
FIORIN
– Mas quando você fez a sua tese, o Coseriu já tinha
publicado a “Sémantique diachronique structurale” na TraLiLi?
IZIDORO
– Ah!... sim. O artigo da TraLiLi eu conhecia.
FIORIN
– Mas o que eu queria saber é o seguinte, como é
que você chegou ao Plínio Marcos, Vidas Secas...
EDUARDO
– Isso tem a ver com o Estruturalismo do Jakobson?
IZIDORO
– Tem... tem. Isso está muito ligado. Foi havendo um
amadurecimento, para tentar compreender o evento lingüístico.
Então eu tinha uma tarefa, uma lição de casa
para fazer, que era analisar a constituição da família
de cara, a partir de uma raiz, etc. eu ia ver a ocorrência
do signo no contexto e via que a interpretação semântica
era diferente do que nos Dara uma visão puramente diacrônica.
Eu até cito na tese uma observação do Machado
de Assis, em que lê faz uma descrição de uma cena de Capitu
e Bentinho dizendo: “dou esses pormenores porque sem eles os signos
ficam calados e incolores”. Então, o que significa “Maria
come farinha”, “João toma café”, etc. e tal?
FIORIN
– Sobre esta questão você até publicou depois
um artigo dizendo que para estudar iss não precisava estudar
linguagem.
IZIDORO
– Não precisava estudar linguagem. Então eu comecei
a ser puxão por isso, a parir dessa visão integral
de que fala Benveniste. Que dizer, se eu fizer o estudo simplesmente
histórico, mostrando a evolução, estou contando
apenas uma parte da história, não estou contando tudo. Então,
preciso fazer uma análise do comportamento do signo no discurso.
Assim vou poder explicar muita coisa da história do próprio
signo. Tendo tal e tal significado, como é que evolui? Até
pensando no próprio Benveniste. Num de seus capítulos
dedicado à questão da motivação, ele
considera como caput foi substituído por cara, no discurso, ou por
capitia, que deu cabeça. Ou como é que cara foi substituído
por testa que deu tetê, testa, etc. Ou seja, eu entrei num
emaranhado tentando explicar o campo semântico de cabeça.
Mas na tentativa da explicação eu não podia abdicar
da visão do signo no discurso. Benveniste mostra bem que caput
começou a sofrer um esvaziamento semântico, e, em termos de
necessidade de comunicação, pouco a pouco o falante
foi encontrando um outro termo mais expressivo, que, no início,
era uma metáfora jocosa e que depois se esvaziou semanticamente
e passou a indicar testa. Lendo alguma coisa de Plínio Marcos
eu pensei que no seu texto aparecia muita coisa em relação
a cara, cabeça, testa. Na verdade, vendo como é que o
signo se comporta no discurso eu posso explicar a constituição
desse campo léxico. Assim comecei a pensar recorrendo a algumas
leituras. Fui ver como é que cara e cabeça aparecem
no texto de Dom Casmurro. E fui anotando, apontando, etc.
ENI –
Você pegou um fio de meada.
FIORIN
– Foi aí que você teve muito mais influência
de Benveniste do que de Coriseu, que construiu uma Semântica
Estrutural que era só um jogo de traços.
IZIDORO
– É!... Coriseu, indiretamente. Mas tive muita influência
de Guiraud.
DIANA
– Ah!... A semântica do Guiraud.
ENI –
Fazia parte também da nossa formação, não?
IZIDORO
– Então pensei, como é que eu poderia justificar
o corpus, pois peguei um texto clássico: um texto de Literatura
regional, analisei Fogo Morto; um texto de Literatura dita moderna,
Plínio Marcos. Para cada um havia uma razão. Por exemplo,
no Plínio Marcos, em Quero, ele diz: “eu queimei a minha
mufa”. Eu liguei para ele, que era da Folha de S. Paulo, e perguntei-lhe
que história era essa de “mufa”. Ele deu uma explicação
que era um pouco o sentido do interruptor de luz. Então eu
pesei no seguinte, um campo léxico é um campo de movimentação
centrífuga e centrípeta. Ele atrai termos e os distribui
a partir do uso que nos fazemos desses termos. Então a visão
sincrônica, isto é, o funcionamento desse campo léxico,
me parece muito mais esclarecedor do que a visão puramente
histórica.
FIORIN
– Izidoro, deixe-me perguntar mais uma coisa...
ENI –
Só uma coisa... só para complementar isso. Então
para você a questão da comunicação está
posta desde o início?
IZIDORO
– É!... Exatamente.
ENI –
Quando você diz que algo é mais expressivo como é
que esse uso atravessa o discurso para você?
IZIDORO
– Estive sempre muito preocupado com os defeitos do uso dos
sinos no discurso.
FIORIN
– Izidoro, só mais uma coisa...
IZIDORO
– Só para dar mais um exemplo. Fui falar com o Éder
Jofre, que disse numa entrevista: alguém mexeu com a Cidinha
e eu dei uns sopapos no camarada, mas honestamente não dei
na cara. Vi então que não podia deixar escapar isso
e comecei a ver o pano de fundo semântico que gera o sentido. Ou
seja, está na cara? A frontalidade, certamente, e uma frontalidade
que é identificadora do indivíduo. Na cabeça,
a dureza, a esfericidade. Assim fui fazendo uma série de
oposições com outras partes do corpo. Na defesa da
tese...
FIORIN
– De livre-docência?
IZIDORO
– De livre-docência. A banca teve reações
muito curiosas. Perguntaram-me como eu saltei sobre o mundo romântico,
uma vez que já havia uma tese sobre as designações
de cara e cabeça, “La denomination de visage”. Eu explicava
isso na introdução, mas o professor Salum disse que eu tinha
dado uma bofetada na Filologia Românica, porque eu acabei
fazendo só uma análise sincrônica.
ENI –
É a nova noção de História também
que estava aí funcionando.
IZIDORO
– Hoje, com a distância no tempo, eu gostaria de fazer
um trabalho histórico sobre o desenvolvimento de cara no mundo
românico. Na época eu achava o que fiz muito importante.
FIORIN
– Izidoro, mais uma questão sobre um outro trabalho...
Um outro trabalho que você fez e que despertou seu interesse
pelo prefácio dos indo-europeístas, quando você
mostra que o germe do nazismo estava lá, e você usa a frase
de Ionescu: “la philologie, Monsieur, la philologie mène au
crime”.
DIANA
– Onde está publicado isso?
IZIDORO
– Na revista da USP.
FIORIN
– Eu me permitiria claramente colocar uma questão. O seu
trabalho a partir desses prefácios dos indo-europeístas
tema ver com toda a sua formação. Mas a questão
judaica se coloca nesse momento. E depois vai para um desdobramento
sobre os campos de concentração, do espaço concentracionário,
todo esse trabalho que você fez depois.
IZIDORO
– Bom!... Deixe-me contar um pouco a história dessa vertente.
Isto começou um pouco num Seminário de Semiótica
em Viena.
DIANA
– Era um Congresso da Associação Internacional
de Semiótica.
IZIDORO
– Foi em 1979.
ENI –
Quando eu saí da USP, para a Unicamp.
IZIDORO
– Era um Congresso da Associação Internacional
de Semiótica. Havia um grupo de Barcelona, aliás, um
casal de semioticistas espanhóis que me disseram que eu devia
aproveitar a minha estada em Viena e dar um pulo até Dachau,
para conhecer um pouco os campos. Eu fui pela primeira vez e então
lá é que eu encontrei, num museu, as famosas tabelas de
classificação de prisioneiros com estrelas. Eu pense que
aquilo era um prato cheio para a Semiótica. Os nazistas já
praticavam uma semiótica de controle totalitário.
Eu até podia depois passar para vocês o texto que saiu
da Revista da Fundação Auschitz, “Os Signos dos Prisioneiros
nos Campos de Concentração”. Então, comecei
a analisar esse material. Da parte ilustrativa eu fui para os textos.
E comecei a entrar no problema da análise do discurso totalitário.
Pensei que era o próprio campo da semiótica. É
claro que depois eu juntei razões pessoais. O fato de ter
tido parentes que desapareceram nos campos de concentração...
tenho um tio que se despediu da família e nunca mais voltou.
Estou em contato permanente com os filhos dele, que são primos
nossos, um mora em Israel e o outro mora na Bélgica. E eles começaram
a comentar esse período, o que aconteceu com eles, de que
forma, e tudo isso foi naturalmente mexendo comigo. Pensei que eu
gostaria de trabalhar um pouco essas questões, poderia contribuir
de alguma forma no entendimento dos regimes totalitários.
Mesmo porque eu notei que em termos de Semiótica havia muito
pouca coisa nesse campo. Pegando coisas daqui e dali e aí
foi que eu bati os olhos nos prefácios. Na verdade, a coisa
começou porque a Folha de S. Paulo me pediu um artigo sobre o
Indo-europeu. Acho que até por sugestão do Antonio Medina.
Eu comecei a escrever o artigo, e vi o prefácio do Bopp, da
Gramática Comparada das Línguas Indo-Européias.
O prefácio do Bopp diz que as línguas semíticas
são de natureza degenerada.
ENI –
Deixe-me perguntar-lhe outra coisa. O que você acha que a universidade
perdeu ao deixar de lado a Lingüística Indo-européia?
Eu vejo você falar e vejo que há toda uma espessura
que não ocorreria se você não tivesse essa formação.
O que se perdeu ao perder isso? Como é que fica isso na nossa
história? Até o Maurer, você tem uma Lingüística
Indo-européia, isso permite justamente uma ligação
Filologia-Linguistica, ou seja, preocupações que estavam
juntas. Você procurou juntar essas questões de um outro
lado, mas eu diria que, quando o Maurer insistia comigo e me perguntava
onde estava o homem atrás dessas idéias estruturalistas, me
dizia que o estruturalismo era muito árido, ele não
estava muito longe da sua procura, numa outra perspectiva. Enfim,
o que a gente perdeu perdendo isso? Porque, de certa maneira, há
hoje, vamos dizer a verdade uma lingüística que só
cresce para frente, sem memória. Faz com que se adere à
Lingüística ou não há mais nada. O que é
um engano, porque havia isto, eu insisto e insistia com o Salum,
em Filologia, que ele devia desenvolver mais profundamente, porque
isso tinha futuro. O que nós perdemos e como nós perdemos?
IZIDORO
– na minha opinião, acho que nós perdemos um lastro
de muito peso, que conferiria à área de Letras, e
especificamente à área de Lingüística uma
profundidade que permitiria até, numa luta política na
universidade, dize que aquela era uma área fundame4ntal de
conhecimento. Porque o que acontece é que, com tudo isso
é um ponto de interrogação para as áreas
de Exatas, na hora de discutir contratações, na hora
de discutir dotações de verbas, as pessoas não
sabem direito o que é tudo isso. Este lastro de cultura se
perdeu. Por que se perdeu? Um pouco por causa das malfadadas lutas
intestinas. Mas eu acho que até há um dado fundamental
que encontramos até em românicas. O que acontecia quando
nós começamos a dar Românicas optativa, para uma
meia dúzia de gatos pingados? O que acontecia é que
eram raros aqueles que podiam participar. Porque não tinham
conhecimento de Grego, não tinham nem parcos conhecimentos
de Latim. Eu não sei como é que está a situação
do Latim agora na faculdade.
ENI –
A minha pergunta no fundo mostra que houve uma perda forte lá
atrás que você, Izidoro, falando, recupera na sua própria
formação.
IZIDORO
– Eu acho que sim.
ENI –
Em resumo, o que você esperava mais diretamente da vinda do
Jakobson? Você achava que isso poderia afetar as pessoas?
IZIDORO
– Para mim a presença dele legitimou muito do que a gente
estava tentando fazer.
FIORIN
– E você esperava essa justificação?
IZIDORO
– Esperava, eu esperava ouvir de Jakobson formulações
que mostrassem que aquilo não era brincadeira.
DIANA
– Esperava que os outros também ouvissem.
IZIDORO
– Principalmente, esperava que os outros ouvissem.
EDUARDO
– Você esperava isso. Você teve um trabalho especifico
que fez parte da instalação da Lingüística
no Brasil. Quer dizer, a conversa que tivemos mostra isso. Então,
eu perguntaria, como isso aparece no desdobramento da Lingüística
brasileira? Você acha que a Lingüística caminhou para
essa abertura que você procurou instalar, ou há linhas
que caminham e linhas que não caminham?
IZIDORO
– É!... Vou me louvar no Coriseu quando ele começa
a comentar sobre a Lingüística e diz que a Lingüística
tem uma história cheia de ocos, e eu acho que siso ocorreu
um pouco entre nós. Ocos e hiatos, não é? Eu acho que
houve espasmos de abertura, e também momentos de fechamento.
Em diferentes momentos nas várias instituições.
Eu exemplifico com o próprio caso da USP. O Jakobson déia
essa marca, essa agitação, mas era 1968, então uma
questão externa vem interferir nesses movimentos de libertação
e de abertura. A aposentadoria d Jean-Claude Bernardet, por exemplo,
quebrou um trabalho, a gente ia fazer um trabalho sobre chanchada
carnavalesca. Quer dizer, a própria crise política
acaba determinando um fechamento, eu diria assim brutal. Veio o fim
da ditadura e da repressão militar, um vento de democracia
começou a soprar no Brasil, na política, no trabalho,
nas escolas e universidades, mas... os problemas continuam: a pobreza,
a desigualdade, as injustiças, a corrupção, o oportunismo
(dentro da universidade também, é claro!). Os espasmos
de abertura e fechamento continuam... apesar dessa instabilidade,
entretanto, acredito que a lição de Jakobson continua
sendo a garantia de nossa liberdade intelectual, na medida em que
nossa consciência semiótica eu semiológica nos
faz sempre perceber como podemos ser manipulados e envolvidos pelos
signos totalitários nem cenário aparentemente democrático.
Notas:
* Entrevistadores:
Diana Luz Pessoa de Barros, Eduardo Guimarães, Eni P. Orlandi
e José Luiz Fiorin.
**
Transcrição do ultimo parágrafo de apresentação
de Izidoro Blikstein de Lingüística e Comunicação,
de Roman Jakobson (Cultrix, 1969, p.13).
JAKOBSON SOB O PAVILHÃO SAUSSARIANO
FRANÇOISE GADET
Ao contrário
dos outros lingüistas “estruturalistas”, Roman Jakobson não
se declara herdeiro de Saussure e ainda menos como o único
ou o verdadeiro herdeiro de Saussure. Para ele Saussure é
uma fonte de inspiração entre outras, que são:
a Escola de Kazan, em torno de Baudoin de Courtenay e Kruszewski;
os Formalistas, os Futuristas e a Vanguarda russa; Bretano, Anton
Marty, Husserl, a Gestalt, Bühler; e, a partir, dos anos 50,
Peice ou a teoria da informação... Mas as referências
de Saussure são particularmente numerosas (1), ao longo de
sua carreira, mesmo se elas parecem, muitas vezes, críticas.
Centraremos nosso estudo em um período que vai da chegada
de Jakobson a Praga (1920) até sua chegada a Nova York e o
ensino de um curso na Escola Livre de Altos Estudos (1942), parando
no episódio crucial da elaboração das Teses de
Praga (1929); período decisivo de sua maturidade científica
(entre 25 e 45 anos), ao final do qual ele encontra Claude Lévi-Strauss
(1942), a quem ele faz conhecer Saussure que tornar-se-á para
ele também uma referência essencial, ao ponto de, de
volta à França, fazê-lo conhecido de Jacques Lacan, no
início dos anos 50.
Troubetzkoy
Para o
período entre as duas guerras, não podemos falar de
Jakobson sem evocar o Príncipe Nicolas Troubetzkoy, pois o
fim dos anos 20 e o início dos anos 30 assistem uma colaboração
estreita entre os dois homens, materializada para nós por
sua correspondência, da qual só as cartas de Troubetzkoy
são conservadas.
Há, no entanto, ao menos nesse ponto, uma clara diferença
entre eles. Troubetzkoy irritava-se quando o consideravam como discípulo
de Saussure. Ele conheceu Saussure através de Jakobson, tardiamente
em sua carreira ao mesmo tempo precoce e breve, e a primeira menção
que ele faz, em 1923, concerne seu Mémoire; quanto ao CLG,
ele o leu pouco (2). Falta de interesse que, em sua necrologia de
Troubetzkoy (1939, in 1971b, p. 502), Jakobson explica pelos fatos
de que era um erudito “durch und durch historich eingestellt”, que
os problemas de sincronia deixavam “kühl und passiv”. O conjunto
da obra pública não comporta não mais que uma
dezena de menções, a maior parte críticas.
A primeira referência crítica ao CLG (e mais desenvolvida)
aparece em 1933, por ocasião de uma tentativa para apresentar
a “fonologia atual” diferenciando-a da orientação dos
predecessores. A crítica a Saussure incide sobre o problema
da mudança, cuja explicação só pela lógica
interna da língua não permite, segundo Troubetzkoy,
explicar a causa primeira. Ele reprova à concepção
saussuriana a “concessão ao atomismo dos neogramáticos”,
por levar a conceber que a mudança intervém em fatos
isolados e introduz a desordem no sistema. Porque “se, a cada momento
dado, a língua é um sistema em que tudo se mantém,
a passagem de um estado de língua a outro não se pode
ser efetuada por mudanças isoladas desprovidas de qualquer
sentido”. Se quisermos poder compreender a evolução,
é preciso admitir que as mudanças têm uma razão
de ser, uma teleologia, é preciso admitir que a “evolução
do sistema fonológico é, a cada momento dado, dirigida
pela tendência em direção a um fim”.
A única outra menção pública, no início
dos Grundzüge der Phonologie (aparecidos em 1939), concerne
à língua/ fala e significante/ significado; esse texto,
o mais conhecido de Troubetzkoy, deixa uma imagem amplificada da
importância que Saussure pode ter para ele.
Jakobson até
1939
É
diferente com Jakobson que foi um dos primeiros a citar Saussure
em outra língua que não em francês. Ele o conhece
desde a época de Moscou, pela interpretação
oral de Serge Karcevski (3), que circula entre Genebra e Moscou. Séchehaye
lhe enviou em 1920 um exemplar do CLG, mas não se sabe se
ele o leu logo. De todo modo entre 1921 e 1939 pode-se contar três
vezes mais de menções à Saussure nas publicações
de Jakobson do que nas de Troubetzkoy (Viel, 1984, p. 57) e, se muitas
delas são críticas no detalhe dos conceitos, não
faltam homenagens à concepção global.
Aqui só evocaremos alguns pontos de referência, a partir
da primeira menção na Nouvelle poésie russe,
texto de 1921 escrito em 1919 em Moscou, no qual é a Saussure
que Jakobson empresta seu aparelho conceptual (4), língua/fala
e, sobretudo sincronia/diacronia. Mesmo se desde esse momento ele se
propõe “superar” (5) esta última antinomia, a tonalidade
de conjunto é antes de adesão ao modelo saussuriano.
Sincronia/diacronia é, pois ao mesmo tempo o primeiro par
conceptual saussuriano utilizado, e o primeiro submetido à
crítica: desde o fim de 1926, Jakobson fala em uma carta a
Troubetzkoy em “preencher o fosso anti-natural entre a análise
sincrônica e a fonética histórica considerando cada mudança
fonética do ponto de vista do sistema global”.
A evolução para uma atitude mais crítica intervém
no período que segue a criação, em 1926, do
Círculo de Praga, quando então são redigidos ao mesmo
tempo “O hlaskoslovném zakonu a teleogickém hlaskoslovi”
(1928, retomando em tradução inglesa em 1971a, “The
concept of the sound law and the teleological criterion”) e da “Proposition”
apresentada em 1927 para o Congresso de Haya (1928, em 1971a), em
resposta à questão submetida “Quais são os métodos
melhor apropriados para uma exposição completa e prática
da gramática de uma língua qualquer?”; a proposta, que responde
só pela fonologia, é redigida só por Jakobson
e acompanhada pelas assinaturas de Troubetzkoy e Karcevski (6).
Como as argumentações dos dois textos são muito
próximas, nós só falaremos da Proposta, um pouco
mais desenvolvida. Entre os pontos que ela apresenta, é sobretudo
o segundo que concerne Saussure, mesmo se, outra vez, o texto abre
sobre a evocação de seu nome (7).
Descrever a fonologia de uma língua impõe antes de
tudo que se leve em conta o papel dos sons no sistema fonológico,
não somente estabelecendo o seu repertório (como propunha
o CLG), mas evitando caracterizá-lo apenas do ponto de vista
da produção, sem especificar seu papel no sistema. É
preciso também “especificar os tipos de diferenças
fonológicas significativas”.
Se admitimos para este primeiro ponto, em sincronia, que se teve
que avançar uma perspectiva funcional, é preciso fazer
o mesmo em diacronia e, suprimindo a “antinomia da fonologia sincrônica
e da fonética diacrônica”, abandonar o trilho dos Junggrammatiker”.
A mudança constitui, pois o ponto crucial da oposição
a Saussure: “A concepção segundo a qual as mudanças
fonéticas são fortuitas e involuntárias e que a língua
não premedita nada fazia-nos representar (sic) a fonética
histórica de uma língua como uma seqüência
de perturbações e destruições cegas causadas
por fatores extrínsecos do ponto de vista do sistema fonológico”.
Essa concepção não deixa aos locutores senão
a possibilidade de “encontrar um sentido no estado de desordem”,
mas seu papel é de fato mais ativo, como mostram as reflexões
que levantam o re-exame da metáfora do jogo de xadrez, para
a qual Saussure via um limite (“Só há um ponto em
que a comparação falha: o jogador de xadrez tem a
intenção de operar o deslocamento” CLG p. 127). Jakobson,
quanto a ele, não via isto: “A analogia saussuriana entre
a língua e o jogo de xadrez pode ser levado até o fim.
Há mudanças lingüísticas que (...) têm
a intenção de exercer uma ação sobre o sistema”.
A conclusão é programática: em conseqüência
dessa elevação a primeiro plano do “problema das tendências
e finalidades dos fatos fonéticos” é preciso dar prioridade
ao ponto de vista acústico. Jakobson encontra aqui Saussure
proclamando esta prioridade que, neste momento, ele não explora
mais do que o faz Saussure; é, entretanto um tema sobre o qual
ele voltará com a formulação dos traços em
termos acústicos, sobretudo a partir de 1938 (8).
Este texto de Jakobson reflete temas que são os seus ao longo
de vinte anos, e que afloram também nas Teses de 1929, onde
eles se exprimem, entretanto sob outra forma menos polêmica,
talvez por um efeito da redação múltipla (9).
O nome de Saussure não aparece aí (não figura alias
nenhum nome próprio), mas os conceitos discutidos, sobretudo
sincronia/diacronia, são em grande parte os da “Escola de Genebra”
e é também aí em nome do funcionalismo e da
tecnologia que eles são postos em causa.
Durante os anos trinta, as menções a Saussure são
menos numerosas, e Linda Waugh (1984), que apresenta uma amostragem
dos principais artigos discutindo as teses saussurianas, não
assinala – após o rico período da concepção
das Teses (quatro artigos em 1928 e 1929, sem contar as próprias
Teses) – senão cinco entre 1930 e 1939 (todos retomados em
1971b; além de tudo, a discussão dos conceitos saussurianos
aí nem é central).
É pois para este primeiro período sobretudo sobre a
língua/fala e sincronia/diacronia que está voltada
a crítica, ainda que em torno de 1939 apareçam as primeiras
discussões sobre o arbitrário do signo (Comunicação
ao V Congresso dos Lingüistas de Bruxelas, 1939), sobre a linearidade
do significante (“Zur Struktur dês Phonems”, 1939, em 1971b).
Mas enquanto a crítica da língua/fala se faz em um sentido
da reflexão e de análise, a de sincronia/diacronia é
menos respeitosa da letra do texto saussuriano, fixando uma dicotomia
que não é exclusiva no CLG (cf. Fontaine, 1974).
Jakobson em 1942
Jakobson
nunca publicou esse texto de um curso dado em 1942 na Escola Livre
de Altos Estudos em Nova York. Ensinando pela primeira vez em francês,
ele redige tudo, ao menos no começo. Mas quando ele publica
em 1976 Six leçons sur lê non et le sens, ensino
dado em paralelo ao curso sobre Sausurre, ele não vai publicar
essas notas, que Waugh encontrou nos papéis agora depositados
na MIT Library. A única passagem detalhada concerne língua/fala,
e representa o raciocínio mais argumentado de que dispomos
de sua parte sobre esta dicotomia.
Em uma introdução histórica bem longa, ele começa
por uma das homenagens das mais apoiadas que ele fez até
então a Saussure: o CLG que procede não segundo “dogmas
definitivos” mas por “hipóteses de trabalho e esboços
lúcidos”, não está isento de contradições
(“uma obra genial de que mesmo os erros e as contradições
são evocadoras”), mas constitui um ponto de partida que permite
ver “in statu nascendi [...] quase todos os problemas essenciais do
pensamento lingüístico moderno”. Ele o acha entretanto
exageradamente atomista e redutor.
Ele segue os procedimentos do CLG partindo da caracterização
da linguagem que Saussure define como “amontoado confuso de coisas
heteróclitas sem ligação entre elas” (p. 24).
Jakobson recusa este ponto de partida: não se pode dizer isso
senão adotando um procedimento atomista que não leva
em conta a função (“o que importa antes de tudo em qualquer
instrumento [...] é a sua função”). Não
se pode isolar nem som nem idéia e é bem “o observador
digamos superficial da linguagem que tem razão” considerando
que a palavra é a expressão de uma idéia.
É preciso rejeitar a concepção que trabalha
ao longo do século XIX, segundo a qual é a linguagem
individual que representa a única realidade lingüística.
A noção saussuriana de língua definida como “conjunto
de convenções necessárias, adotadas pelo corpo
social para permitir o exercício da faculdade da linguagem
nos indivíduos” permite reequilibrar o ponto de vista. A dicotomia
língua/fala lhe parece pois justificada, mas é preciso
revisá-la pois dela exalam varias oposições que
não se recobrem.
Língua/fala contém ao mesmo tempo uma oposição
entre virtualidade e atualização, e entre coletivo
e pessoal. Mas estes dois pares se recobrem? Absolutamente. A língua
e a fala têm ao mesmo tempo um lado social e um lado individual,
e assimilando fala a individual, afirmando que não há
“nada de coletivo na fala”, Saussure negligencia o papel do ouvinte e
desdenha sua própria elaboração de circuito da
fala. De fato, a fala é um fenômeno intersubjectivo:
“O destinador e o destinatário se supõem necessariamente
e a fala traz em sua estrutura a impressão de todos os dois”.
A evocação do diálogo, da fala interna, da linguagem
infantil e de sua função expressiva o conduz a concluir:
“A língua tem ao lado do aspecto social um aspecto individual
e a fala tem ao lado do aspecto individual um aspecto social”.
A introdução de um ponto de vista funcional reforça
a interrogação sobre as diferentes oposições,
porque a função emotiva não pode se identificar com
a camada individual da linguagem. Uma outra oposição
saussuriana deve aí intervir, a que existe entre “espírito
particularista” e “conformismo”, que lhe parece se aplicar ao mesmo
tempo à língua e à fala, em seus aspectos subjetivos
e intersubjetivos, com a condição de estendê-la do
domínio espacial onde a fez intervir Saussure ao domínio
temporal.
Expondo a solidariedade da antonímia continuidade/alteração,
Saussure engana-se em procurar ligá-la à língua/fala
com a idéia de que tudo que é móvel o é
só pela fala (“É a fala que faz evoluir a língua”, CLG,
p. 37). Mas se toda criação é precedida de
uma comparação inconsciente dos materiais que a língua
oferece, e se os elementos da criação já estão
presentes em potencial (o que diz o CLG), então é
preciso procurar o germe das inovações na língua,
não na fala, e Saussure se contradiz. O argumento contra a
mutabilidade do sistema segundo o qual trata-se de um mecanismo complexo,
cujos locutores são em grande medida inconscientes não
poderia ser mantido, porque os sujeitos não ignoram o sistema
de que fazem uso todo dia: “podem-se modificar certas leis tão
inconscientemente quanto as empregamos e as mantemos”. Saussure,
colocando a incompetência dos locutores diante da transformação
da língua, segue a tradição dos neo-gramáticos
que reduz a língua a sua função puramente intelectual,
enquanto a história atesta que a ingerência é
possível.
Há pois para Jakobson quatro dualidades sucessivas que subdividem
a linguagem, cada uma abrindo uma nova subdivisão: “Toda linguagem
se apresenta simultaneamente sob dois aspectos, língua e
fala. Toda fala assim como toda língua compreende simultaneamente
um aspecto subjetivo ou intersubjetivo, e toda fala assim que toda
língua, em seu aspecto subjetivo assim como intersubjetivo
deriva simultaneamente de cada uma das duas forças em presença,
conformismo e não-conformismo em seu aspecto temporal assim
como espacial”.
Esse texto revela, da parte de Jakobson, uma leitura muito atenta
do texto do CLG, até a intuição daquilo que,
na época, ele não podia saber com precisão,
o papel dos editores (10). Para ele, o CLG, com suas iluminações
geniais e suas contradições, constitui uma etapa
entre a reflexão dos Neogramáticos e a do Círculo
de Praga... e sua própria; uma etapa inacabada, à qual
faltaria a idéia de função. Só podemos lastimar
que a parte sobre o signo que se seguia não existe senão
como esboço.
Jakobson posteriormente
O ponto
de vista de Jakobson será modificado quando tomará
conhecimento do trabalho de Godel e de Engler, e caracterizará
Saussure “como o grande incrédulo que via, sempre, os dois
aspectos de cada problema” (citado por Engler, 1990, que remete a
uma proposição de 1972) (11). Ao mesmo tempo, seu interesse
se alarga, para além das fontes, aos Anagramas (12).
No entanto, a partir de sua chegada aos USA, suas referências
não são mais sempre as mesmas, e a distância
frente ao Saussure do CLG vai acentuar-se até a conclusão
trazida ao tomo II dos Selected Writtings (“Retrospect”, in
1971b, p. 71ss), cuja diferença de tom com a conferência do Cellège
de France, entretanto quase contemporânea, continua surpreendente.
Este Retrospecto só pode ser lido como, no outono da vida,
um balanço definitivo sobre o tema. Ora, ele aí se
mostra muito crítico face a Saussure e, sobre a maior parte
dos pontos, bem menos nuançado que no que acabamos de ver.
Cerca de metade do Retrospecto discute teses saussurianas de que
ele começa a colocar em causa a originalidade: “a maior parte
das noções cardinais e dos princípios introduzidos
por Saussure podem ser atribuídos a seus predecessores Baudoin
de Courtenay e Kruszewski”; Saussure só terá a vantagem
de uma “maneira mais explícita e engenhosa” de apresentar os
fatos. As antinômias são interessantes, mas porquanto elas
permanecem “sem solução”, a “integridade e a unidade
da lingüística estava ameaçada”; “os progressos
para uma síntese das “dualidades internas” marcam verdadeiramente
a etapa pós-saussurianas da lingüística”. E não
há sequer um conceito, afinal de contas, do CLG que será
aprovado sem reservas mais ou menos decisivas: língua/fala
é reformulada em código/mensagem e a “separação
absoluta desses dois aspectos se transformou na tomada em consideração
de duas hierarquias”, o arbitrário do signo é colocado
em causa pela iconicidade, a linearidade do significante é
segundo ele recolocada em questão pela análise dos
fonemas em traços distintivos, a não-pertinência das substâncias
é interrogada, uma hierarquia é introduzida entre os
termos do paradigma, o signo é interpretado nos termos da
concepção estóica, o sistema é corrigido
pela função (“o sistema funcional” da primeira Tese), e a
sincronia é reformulada em sincronia dinâmica (13).
Mas, então, por que Jakobson permanece ligado a Saussure?
Ele se liga à idéia semiológica de “língua
como sistema em que tudo se mantém” (jamais “sistema de signos”).
Mas o aspecto conceptual desta semiologia não é reconhecido,
a estrutura se torna postulado de referência, e não
como em Saussure algo a construir. Do mesmo modo, não há necessidade
daquilo que, como em Saussure, permite esta construção,
a definição do objeto por meio das dicotomias. Podemos
então descontruir os conceitos um a um, e a própria
idéia de “síntese das dualidades” coloca em causa a
necessidade de construir um objeto.
Jakobson, no entanto, encontrou em Saussure algo que lhe é
essencial, o princípio da diferença como acesso ao
sistema, de que ele fez, tanto quanto sentiu necessidade, uma máquina
de guerra contra o historicismo dos Neo-Gramáticos. Saussure
é utilizado sem que sua originalidade seja reconhecida de
forma global, e sem que a letra do texto seja sempre trabalhada; o
que Cornélius van Schooneveld (14) resume na fórmula:
“Afinal, era preciso um pavilhão para cobrir o navio”.
(tradução: Eni
P. Orlandi)
Notas:
1 Sem dar às cifras uma importância
maior que a indicativa (sobretudo porque só levam em conta
a menção do nome), esclareçamos que o primeiro tomo
dos Selected Writtings (“Phonological Studies”) comporta segundo
o index dos nomes, 45 menções a Saussure, sendo Troubetzkoy
o único autor mais citado, com 79 menções;
quanto ao segundo tomo (“Word and language”), comporta 65 menções,
muito longe diante do segundo autor citado que é Sapir, com
37 menções. É preciso, entretanto esclarecer que Jakobson
freqüentemente modificou levemente seus próprios artigos
no momento de fazê-los figurar nos Selected Writtings e um
dos pontos de modificação é justamente a referência
a Saussure, que ele amplifica (cf. Viel, 1984).
2 Em
uma carta de maio de 1932, ele escreve que acaba de lê-lo pela
segunda vez.
3 Na
notícia necrológica que ele lhe consagra, Jakobson
escreve: “Ele foi o único que em 1917-1919, durante sua passagem
rápida por Moscou, animou a jovem geração de
lingüistas de Moscou com o Curso de Lingüística Geral
e aplicou seus preceitos ao estudo contemporâneo Russo” (“Sergej
Karcevskij, 28 de Agosto de 1884 – 7 de Novembro de 1955” in 1971b,
p. 517 e ss.). Isto não é suficiente entretanto para esclarecer
qual foi a recepção em Moscou.
4 O
texto abre com uma referência a Saussure. Mas a tradução
em francês (reproduzida em 1973) não comporta essa passagem,
que só se encontra no original russo (Selected Writtings
V, p.299 e ss) e na tradução alemã, a única
completa. Em 1919 Jakobson não pode ter lido o CLG e faz uso
de termos transmitidos por Karcevky, que não são conservados
no CLG, como “poeira lingüística” (Viel, 1984 p.58).
Para o período do Círculo de Praga, ver também
Fontaine 1974.
5 Viel
(1984 p. 63) sugere uma pista interpretativa deste termo freqüente
em Jakobson, observando que “superar” e “superação”
alternam com os termos alemães “aufheben” e “Aufhebung”. Mas
isto seria suficiente para ler aqui um efeito da herança hegeliana,
aliás incontestável em Jakobson?
6
Não há nenhuma dúvida sobre este ponto. A formulação
das assinaturas indica onde está o problema: “Roman Jakobson,
Prague; S. Karcevsky, Professor adjunto na Universidade de Genebra;
Príncipe Troubetzkoy, professor na Universidade de Viena”.
Em 1927, Jakobson não tem ainda um posto na Tchecoslováquia.
Ver Fontaine, 1974.
7
“A tese de F. de Saussure definindo a língua como um sistema
de valores relativos é quase geralmente admitida na lingüística
contemporânea”: esta é a primeira frase da Proposta
que é redigida em francês, como aliás a própria
questão.
8 Ano
ao mesmo tempo da morte de Troubetzkoy e do Congresso de fonética
de Gand, onde Jakobson apresenta a primeira exposição
desenvolvida de sua teoria dos traços.
9
Duas cartas de Jakobson publicadas no volume de Change intitulado
“O Círculo de Praga” assinalam as partes tomadas, além
dele, por Mukarovsky, Troubetzkoy, Mathesius, Havranek e Durnovo,
antes mesmo dos efeitos de uma discussão geral do Círculo.
10
“Os editores do Curso desconheceram esta idéia puramente dialética
na doutrina de seu mestre e por temor de que se acuse Saussure de
“ter sido ilógico ou paradoxal atribuindo à língua
duas qualidades contraditórias”, erradamente tentaram apresentar
a oposição dos conceitos antinômicos como uma
simples forma de expressão”. Van Schooneveld (1992) afirma que
“Jakobson dizia mesmo antes do aparecimento do livro de Godel que
o Curso consistia de anotações de aula feita por estudantes
e que um grande número de contradições do texto
se deviam a sua falta de compreensão”.
11
Nesta época, as marcas de interesse de Jakobson por Saussure
são numerosas. Em seu discurso de fechamento do Nono Congresso
Internacional dos Lingüistas (1962, em 1971b), ele evoca Saussure
e a importância do trabalho de Godel (p. 601); à parte
Humboldt, todos os outros lingüistas mencionados estão
vivos e fizeram comunicações no Congresso. Por outro
lado, Rudolf Engler passou-me amavelmente as cópias das cartas que
Jakobson lhe escreveu (de 1964 a 1975) a propósito da publicação
de sua Edição Crítica,que mostram um interesse
imediato e sustentado. A citação reproduzida por Engler
(1990) provém da resenha que Franck Marchand apresentou no
Education onde ele cita extratos das quatro conferencias que Jakobson
fez em Paris no Collège de France, em particular a sobre sincronia/diacronia.
12
Jakobson contribuiu para o conhecimento que temos da gênese
desse trabalho, com o artigo “A primeira carta de Ferdinand de Saussure
a Antoine Meillet sobre os anagramas” (1971, reproduzida em 1973).
13
O estudo de cada um desses pontos merece ser efetuado em detalhes
porque não manifestam todos o mesmo grau de pertinência
ou de fineza na leitura do CLG. Ficaria também por estabelecer
se a “síntese das dualidades” deriva ainda de uma inspiração
hegeliana.
14 Van
Schooneveld (1992) relatava assim proposições do próprio
Jakobson, a quem ele havia dirigido precedentemente uma questão
semelhante à minha.
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JAKOBSON, R..
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TROUBETZKOY, N. S.
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número excepcional de janeiro republicado em Essais sur lê
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VAN SCHOONEVELD,
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Gadet, 11 de agosto.
VIEL, M. (1984). La Notion
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WAUGH, L. (1984).
“Introduction à Ron]man Jakobson: la théorie saussuriennne”,
Linguitics 22.
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