APRESENTAÇÃO
Falam sobre a língua e suas políticas. De diferentes maneiras
mas cruzando em aspectos que tocam a história das línguas
e do conhecimento lingüístico, esses trabalhos falam sobre a
noção de língua urbana, a ligação entre
a Ética e a Política e a relação da língua,
via retórica, com o sujeito escolarizado.
No texto de Carolina Rodriguez Alcalá, “O Sentido Público
no Espaço Urbano: a Questão da Língua”, seguimos um
percurso reflexivo em que se procura compreender o “caráter público”
do guarani e a maneira pela qual, através dele, os habitantes da
cidade são interpelados em sua inscrição nas diferentes
práticas urbanas. Pela análise de diferentes materiais concernentes
ao discurso jurídico, político, do espaço público,
da administração pública, da mídia e da literatura,
a autora conclui que sua compreensão dos sentidos que são
produzidos na língua, e do modo como os sujeitos se constituem e
se inscrevem através dela nas diferentes práticas da cidade,
levam-na a afirmar que se ser um sujeito urbano, como mencionado, significa
inscrever-se na vida pública, essa possibilidade continua, no Paraguai,
a ser reservada ao espanhol.
De seu lado, Eduardo Guimarães, partindo do litígio entre
Córax e Tísias, mostra que, se ele lê nesse litígio
a questão da Ética como incontornável, no entanto,
pensada em um certo discurso da história da retórica, essa
narrativa é contada como significando a vacuidade e a falta de princípios
éticos da retórica. Por outro lado, essa mesma história
vai inscrever no pensamento ocidental a indissociabilidade do ético
e do político. Partindo assim dessa reflexão, o autor vai
estendê-la para o pensamento lingüístico, propondo que,
do ponto de vista do conhecimento, é preciso que se pense a questão
política no seu próprio objeto para não se limitar a
uma produção massiva de artefatos de ação normativa.
Refletindo então sobre questões da atualidade face à
relação língua/nação (país), desloca
o pensamento marcado por uma geografia hierarquizada tal como vem-se manifestando
através da ideologia da globalização e pensa um novo
espaço de produção lingüística em que se
repõem o tempo, a memória e a história. Toma então
o Mercosul como este espaço de diferentes línguas em funcionamento
e mostra o que significa desenvolver essa reflexão política
sobre línguas para a América Latina e também do conhecimento
sobre elas de modo a levar a uma instrumentação capaz de trabalhar
a ampliação de seus espaços de enunciação,
estabelecendo um cotejo de forças que trabalharia a pluralidade das
línguas e não a extensão de uma língua franca
para o mundo.
Por sua vez, Claudia Castellanos Pfeiffer, em seu “Bem-Dizer e Retórica:
um Lugar para o Sujeito”, elege a retórica como espaço mobilizador
da reflexão sobre a língua e os sujeitos nacionais. Fala então
do espaço da autoria como este espaço que se levamos em conta
os sentidos do processo de individualização do sujeito moderno,
cujo efeito, diz ela, entre outros, é sofrer uma cobrança
de responsabilidade individual daquilo que é da ordem do comum, daquilo
que é social. Movimentando-se com destreza na contradição
que liga o comum, o social, o individual, a autora vai refletir sobre a
“tirania da igualdade” e suas artimanhas. Sem abandonar o campo em que se
fala da retórica ela vai tratar do clichê: espaço onde
há um efeito de desobrigação inicial da responsabilidade
(“não sou eu quem diz: é o lugar comum”) pela referencialidade
unívoca dos sentidos, causando um alívio imediato no sujeito
que fica mais à vontade para colocar-se na posição da
autoria. Analisa então um enunciado característico da sala
de aula: “escrevam seu texto, dando sua opinião sobre o assunto, justificando-a
através de uma argumentação coesa e coerente” onde vai
refletir acuradamente sobre o par opinião/argumentação
para compreender o deslizamento de sentidos que vai constituir um efeito
para a retórica. Efeito que torna a inclinação pejorativa,
oscilando entre o discurso de todos ou o político reduzido à
política. Esses são os sentidos que se apresentam quando a
crítica genérica classifica os textos escolares como retóricos,
identificando a língua brasileira, ou melhor, o sujeito brasileiro
que “usa” a língua à falta de ter o que dizer, de saber dizer,
em oposição à presença da verdade científica.
Claudia C. Pfeiffer reconhece aí a desautorização histórica
que coloca o sujeito escolarizado como inapto a ocupar o lugar de quem está
autorizado a dizer as verdades (não importa quais), da falta de discernimento,
de consciência, da falta de memória, da ingenuidade. Incapacidade
de ser cidadão. E, como diz a autora: o cidadão falta na retórica.
São estes textos, atuais, que resultam desse percurso que toda uma
equipe percorre com suas reflexões, que vemos representando, nesse
Boletim, o projeto História das Idéias Lingüísticas.
Desta vez falando da Ética e da Política das Línguas.
Campinas, 22 de maio de 2001
Eni P. Orlandi
POLÍTICA DE LÍNGUAS NA
AMÉRICA LATINA
EDUARDO GUIMARÃES
DL-IEL/Labeurb - Unicamp
Num momento como o atual, em que as relações
internacionais vêm mudando rapidamente e que se caracteriza, entre
outras coisas, pelo fato político e econômico da globalização,
pode parecer sem pertinência falar de política lingüística.
Como se uma política desta ordem não tivesse interesse algum,
já que ela derivaria “naturalmente” das determinações
econômicas das relações internacionais.
Se é
verdade que estas determinações são decisivas para
qualquer plano das atividades sociais, a questão da linguagem não
deixa de ter interesse, até porque podemos considerar, inclusive
na linha do modo como faz E. Orlandi em Terra à Vista (1990) ou Rancière
em La mésentente (1995), que o político diz respeito ao modo
de poder tomar a palavra. Mas para entrar no assunto vou começar por
um aparente desvio.
1. O Litígio entre Córax e Tísias
Faz parte
da história da retórica a narrativa sobre o litígio
entre Córax e Tísias. Segundo este relato Tísias se
recusa a pagar Córax sob o argumento de que se Córax foi um
bom professor ele (Tísias) seria capaz de apresentar argumentos que
convencessem Córax a não cobrar por suas aulas. Caso contrário,
ele não seria capaz disso, mas neste caso Córax não
deveria ser pago por ser mau professor.
Do ponto de vista da enunciação, esta narrativa pode ser descrita
como segue:
a) Há uma divisão social entre professor e aluno. Assim
Córax e Tísias estão em posições sociais
diferentes e hierarquizadas.
b) A narrativa conta que Tísias produz um
conflito. Para isso ele enuncia da posição da ética:
coloca a questão de considerar o valor, bom ou mau, da ação
do professor.
c) Ao falar da posição da ética, Tísias
faz a diferença de posições entre ele e Córax
significar.
d) Nesta medida Tísias pode atribuir à posição
do professor a necessidade de atender ao princípio ético,
desobrigando o aluno de atendê-lo (ou a um princípio correspondente).
e) Ao operar esta diferença, Tísias enuncia
da posição de um igual a Córax.
O relato, que acima descrevemos, ligado ao momento em que a retórica
se reconhece como fundando-se, coloca como incontornável a questão
da Ética. De um lado porque só a partir de um princípio
ético, sobre a responsabilidade dos alunos, Córax poderia
se defender. Por outro lado porque, como vimos, Tísias coloca como
fundamento de sua argumentação um princípio ético:
o bom como apreciável e o mau como condenável.
Mas esta narrativa, pensada num certo discurso da história da retórica,
pode ter outros efeitos. Numa história da retórica que simplesmente
faz um relato dos fatos, ele é colocado como forma exemplar para
mostrar que para a retórica, a argumentação, não
há nada de substantivo no seu interior. Em verdade a narrativa é
contada como significando a vacuidade e falta de princípios éticos
da retórica. A Tísias é atribuída a atitude de
se eximir de qualquer princípio ético. Tísias é
assim o personagem sem ética numa história e nela, no entanto,
inscreve a pergunta sobre a Ética. Esta posição de uma
certa história da retórica, ao desqualificar eticamente Tísias,
desqualifica-o politicamente, transforma seu argumento em fala sem sentido.
Por outro lado, Tísias é o personagem que inscreve no interior
da retórica, e assim do pensamento ocidental, o político.
Em que sentido? Na medida em que ele instala como questão a considerar
a diferença social: ser professor é diferente de ser aluno.
Ser professor estabelece uma posição no corpo social diferente
de ser aluno. É preciso avaliar se o professor é bom. E, mais
que isso, esta diferença instala um conflito no seio das relações
sociais. E que conflito é esse? Tísias se coloca na posição
de quem pode julgar o professor, julgar o que lhe é dado como hierarquicamente
superior, e que portanto não lhe caberia julgar. Tísias assume
a palavra como um igual ao professor, sustentando contraditoriamente a diferença
para caracterizar a necessidade de avaliação do professor
e não do aluno.
E esta diferença, este conflito, este pôr-se para dizer do
mesmo lugar, a materialidade do político, portanto, é o argumento
fundamental de Tísias.
Assim a narrativa do litígio de Tísias contra Córax
inscreve na história ocidental, ao mesmo tempo, o ético e o
político. Esta narrativa, aceita marginalmente como um episódio
curioso, instala a indissociabilidade do ético e do político.
E não se trata de conteúdos ou intenções, trata-se
de relações que constituem a materialidade histórica
do corpo social.
O que espero poder dizer a partir da análise desta pequena narrativa
é que se o ético é atravessado pelo político,
então podemos pensar os princípios éticos como não
absolutos, e não podemos pensar o político sem inscrever no
seu interior a reflexão sobre seus princípios éticos.
2. As Posições Sociais e suas Éticas
A narrativa do litígio que enuncia a
fundação da retórica nos coloca de pronto uma relação
entre as posições sociais e os lugares enunciativos dos princípios
éticos. Sobre isso poderia lembrar aqui o que diz Eni Orlandi2
ao distinguir três posições que configuram diferentemente
as políticas lingüísticas. Estas apresentam-se:
a. como razões de Estado, das Instituições:
o que coloca o princípio da unidade como valor;
b. como razões que regem as relações entre povos,
entre nações, entre Estados: o que coloca o princípio
da dominação como valor;
c. como razões relativas aos que falam as
línguas: o que coloca o princípio da diversidade como valor.
Considerar esta diversidade de posições é colocar de
início o espaço do litígio, do conflito como parte
do objeto que nos cabe ao se falar de política de línguas.
E não se trata de discutir sobre o modo de unificar estes princípios
como forma de superar o conflito. Ao contrário, trata-se de refletir
sobre o modo de funcionamento do litígio no qual as posições
procuram sustentar a igualdade de direito à enunciação,
à significação.
3. As Línguas Não-Só-Nacionais
da América Latina
Os países da América Latina (Brasil e países de língua
espanhola) se definem por terem como línguas oficiais línguas
que não são somente línguas de uma nação.
De um lado porque o Espanhol é língua oficial de um grande
número de países e é falado em regiões do Brasil;
e de outro porque o Português é também língua
de muitos outros países, mesmo que não da América Latina.
Mas o principal é que o Português é língua de
muitas comunidades de países da América Latina que não
o Brasil.
Esta noção de línguas não-só-nacionais
coloca em projeção um conjunto de línguas de intercâmbio
supra-regional (francês, alemão, inglês, espanhol, português,etc.).
Mas, diante do fato da globalização, em que medida isto é
colocado em pauta? Como pensar esta questão relativamente ao Mercosul,
por exemplo?
A questão é que a Ética se constitui na história
ocidental como universalista. E assim se separa do político. Deste
modo ela é incapaz de produzir princípios que levem em conta
as divisões sociais, suas diferenças e oposições.
E ao mesmo tempo considerem a ação homogeneizadora do Estado.
Ou seja, na medida em que se toma a ética como homogênea e
universal, ela funciona ao lado dos princípios de unidade da normatividade
do Estado, e não sobra espaço para pensar a heterogeneidade
lingüística no plano das ações de governo e das
relações internacionais, a não ser como procedimento
de hegemonias entre culturas.
Do ponto de vista da produção de conhecimento, é preciso
que se pense a questão política a partir de posições
teóricas que incluam a consideração do político
no seu próprio objeto para não se limitar a uma producão
massiva de artefatos de ação normativa. Pois, se isto se faz
assim, se estará sujeito a uma mera reprodução de instrumentos
marcados pela evidência ideológica e, assim, incapazes de atravessar
seus efeitos imaginários. Nesta medida estaremos, somente, construindo
instrumentos incapazes de produzir uma prática efetivamente política,
pois o político fica, neste caso, reduzido à normatividade
ou diretividade das posições de poder.
4. A Abertura das Fronteiras entre as Nações.
Os Mercados Comuns, a Globalização
O que é a globalização enquanto espaço de produção
lingüística? É a ampliação do espaço
enunciativo3 de línguas não-só-nacionais. Ou
seja, é a ampliação do espaço enunciativo de
línguas como o Francês, o Alemão e principalmente o
Inglês. E não se trata do inglês simplesmente. É
o inglês enquanto língua, primeiramente, dos Estados Unidos.
A Língua está marcada por uma geografia hierarquizada.
Este
processo nos dá de um lado a quebra da relação língua/nação
[país] e de outro o espaço substitui, neste movimento, o tempo,
a memória, a história.
É preciso repor o tempo, a memória, a história ao refletir
sobre isso. E não simplesmente dar continuidade à escansão
da história que o movimento de globalização faz, como
forma atual de estabelecimento de relações de dominação.
Se tomamos
o Mercosul, o que poderia ser visto como um novo espaço de produção
lingüística? Não se trata simplesmente de dizer que este
espaço é o Brasil e os países de língua espanhola.
Esta resposta não considera que o espaço aqui é o espaço
enquanto configurado por sua relação com as línguas
que nele se falam e pelos falantes que as falam. Portanto, estes espaços
são os espaços da Língua Portuguesa do Brasil e da
Língua Espanhola dos países limítrofes do Brasil ao
Sul. Mas este espaço de línguas é um espaço configurado
pela presença de outras línguas em funcionamento, de um lado
as línguas indígenas e o espanhol, além de seu contato
com a Língua Portuguesa, e de outro as línguas indígenas,
as línguas africanas e o Português, além de seu contato
com o espanhol. Neste sentido estamos configurando este espaço por
uma memória que lhe é própria, sem a qual ele não
é este espaço. E nesta medida cabe pensar, inclusive, a história
de constituição do espanhol e do português como línguas
nacionais4 .
Como colocar, então, a questão de uma política de línguas
neste quadro? É preciso não deixar de lado a questão
que se põe das línguas não-só-nacionais que
coloquei em 3. Neste sentido é preciso trabalhar a ampliação
dos espaços de enunciação destas línguas (no
caso o Português e o Espanhol). Não no sentido de que cada uma
deve envolver mais falantes. No sentido, isso sim, de que se deve trabalhar
para que os espaços de cada língua sejam também os espaços
da outra. Isto corresponde a projetar minimamente um bilingüismo como
modo de ocupação de um espaço de poder que decline
a globalização em territorialidades marcadas por uma afirmação
do direito de não falar a mesma língua de todos. Um todos
que sequer é real, mas que opera com a força aparentemente
irresistível do imaginário, do ideológico.
5. Política e Instrumentação
das Línguas
Trata-se, então, de desenvolver não só uma reflexão
política sobre Línguas para a América Latina, mas também
o conhecimento sobre elas que possa levar a uma instrumentação
capaz de trabalhar a representação imaginária destas
línguas no espaço da América Latina e capaz de estabelecer,
pela ampliação de seus espaços de enunciação,
um cotejo de forças que trabalhe a pluralidade das línguas
e não a extensão de uma língua como língua franca
para o mundo.
Toda
a América Latina é, como sabemos, multilíngüe.
O multilinguismo nunca foi uma exceção na vida dos povos. Ao
contrário, faz parte da história de quase todos eles desde
tempos os mais remotos. Toda vez que há um trabalho na direção
da unificação lingüística nas relações
entre povos se está vivendo uma relação em que algum
tipo de processo de dominação está em curso. Está
envolvido o princípio da dissimetria entre as posições
sociais envolvidas.
Como pensar, do ponto de vista da produção do conhecimento
e suas tecnologias, estes aspectos?
Antes de tudo é preciso que, do ponto de vista da comunidade científica,
ela se dedique a formular perguntas específicas sobre estes aspectos
de modo a encontrar procedimentos e formulações capazes de
constituir um discurso que signifique no confronto com as posições
tomadas a partir do princípio da dominação, embutido
na noção de globalização. É preciso que
a ciência seja capaz de produzir um lugar de enunciação
anti-hegemônico que faça sentido no conjunto das relações
internacionais.
Para
isto seria fundamental tratar a questão lingüística no
Mercosul como distinta de outros lugares. Seria preciso produzir um trabalho
que efetivamente incorporasse a posição que a história
destas línguas produziu nestes novos espaços políticos.
Como consequência direta desta ação, torna-se necessário
produzir materiais nesta direção. Ou seja, é preciso
produzir uma instrumentação linguística específica
que acabe por colocar estas línguas como línguas não-só-nacionais
para todos os países concernidos. Desta forma esta questão
lingüística deixará de ser uma questão regional
para ser uma questão das relações internacionais globalmente.
Ou seja, é preciso reescrever a globalização a partir
das posições que a globalização coloca, sem enunciar
das posições periféricas. É preciso fazer com
que o que é posto como espaço agregado ao centro, pela globalização
como nova forma de dominação, seja ele próprio parte
que enuncia e significa.
CONCLUSÃO
Estas são questões que devem presidir nosso modo de pensar
uma política científica relativamente a uma política
das línguas, hoje, na América Latina. Uma posição
como essa envolve um tipo de posição teórica que ao
ser tomada desloca o imaginário que vem dirigindo até aqui
as distâncias entre os países latino-americanos. Refiro-me,
notadamente, às relações entre o Brasil e os demais
países latino-americanos. Há nestas relações
efeitos de imaginário que nenhum instrumento não-refletido
pode romper e mudar. Só para dar uma exemplo, lembremos o efeito ideológico
que leva a certas comunidades de fala espanhola a não compreenderem
a língua dos brasileiros. É preciso construir, nesta época
de novos instrumentos tecnológicos, instrumentações
das línguas nacionais da América Latina capazes de reconstituir
as hiperlínguas (Auroux, 1994,1998) envolvidas, de reconfigurar o
espaço de enunciação latino-americano.
________________________________________________________________________________________
1Texto
apresentado no Congresso sobre Política Lingüística na
América Latina, Universidade de Buenos Aires, em 1997.
2
Ela formulou esta questão em participação
neste mesmo Congresso. Esta formulação aparece também
em Orlandi (1998).
3
Para minha concepção de enunciação,
ver Os Limites do Sentido (Guimarães, 1995).
4
Sobre a Constituição do Português como Língua
Nacional ver, por exemplo, Orlandi e Guimarães (1998).
BIBLIOGRAFIA
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“A Hiperlíngua e a Externalidade da Referência”. Gestos de
Leitura. Campinas, Editora da Unicamp,1994.
AUROUX, S.
“Língua e Hiperlíngua”. Línguas e Instrumentos Linguísticos,
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GUIMARÃES,
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ORLANDI, E.P.
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ORLANDI, E.P.
e GUIMARÃES, E. “La Formation d’un Espace de Production Linguistique.
La Grammaire au Brésil”. Langages, 130. Paris, Larousse, 1998.
RANCIÈRE,
J. La Mésentente. Paris. Galillé, 1995.
BEM-DIZER E RETÓRICA: UM LUGAR PARA
O SUJEITO
CLAUDIA CASTELLANOS PFEIFFER
Labeurb/Nudecri
-Unicamp
O presente artigo tem o objetivo de apresentar
em linhas gerais o trabalho teórico-analítico desenvolvido
em minha tese de doutoramento.
Tratei, em meu percurso de análise, da questão do lugar do
bem-dizer pensado em sua relação constitutiva com a retórica.
Isto é, que sentidos conformam o sujeito designado como aquele que
sabe dizer (que tem o que dizer e o diz bem dito) ou como aquele que mal
diz.
A partir da perspectiva teórica sob a que trabalho, podemos afirmar
que o lugar do “saber dizer” constitui-se de diferentes relações
de sentidos que se dão, por sua vez, em diferentes materialidades
discursivas. Entre estas diversas materialidades discursivas encontram-se,
por exemplo, os instrumentos lingüísticos como as gramáticas,
os dicionários, os tratados de retórica, de poética
e, mais contemporaneamente, os livros didáticos, os livros paradidáticos,
os manuais de redação e a mídia em geral. Nestas materialidades
encontram-se também as narratividades sobre o sujeito que fala (bem
ou mal) sua língua, como aquelas encontradas na história sobre
a educação brasileira, ou nas polêmicas em torno da língua
que se fala. As discursividades presentes nestas diversas materialidades
constroem, entre outros efeitos de sentidos, modelo(s) que aponta(m) para
os sentidos sobre o sujeito e para o sujeito que fala a sua língua.
Foi esta, enfim, a questão que mobilizou desde o início meu
trabalho de reflexão: que sentidos conformam o lugar para o bem-dizer
e para o mal-dizer. Recortando como lugar de análise, em minha trajetória
de pesquisa, a relação do bem-dizer com a retórica
e com as narratividades da história sobre a educação
no Brasil e da discussão em torno da língua que se fala no
Brasil. Por sua vez, a compreensão destas relações se
deu no interior da relação entre a construção
de uma língua nacional e a construção de um lugar para
o sujeito nacional dizer, um sujeito brasileiro, um sujeito escolarizado.
Não
poderia deixar de mencionar aqui que este trabalho de reflexão se
deu no interior de um projeto amplo e produtivo, o Projeto Interinstitucional
História das Idéias Lingüísticas. Este projeto
teve uma primeira fase, coordenada pelos professores Eni Puccinelli Orlandi
(IEL/Unicamp) e Sylvain Auroux (ENS/Paris VII), cujo tema foi História
das Idéias Lingüísticas: a construção de
um saber metalingüístico e a constituição da língua
nacional. E desde 1998 desenvolve sua segunda fase, coordenada pelos professores
Eni Puccinelli Orlandi (IEL/Unicamp), Diana Luz (FFLCH/USP) e Sylvain Auroux
(ENS/Paris VII), cujo tema é História das Idéias Lingüísticas:
política e ética das línguas.
Eleger a retórica como espaço mobilizador da reflexão
sobre língua e sujeitos nacionais se faz produtivo na medida em que
compreendo a retórica como a instância (aceita ou repudiada)
do bem-dizer que está associada à competência da fala,
do dizer: apresentar originalidade e eficiência, com estilo – ser
autor. A legitimação da autoria implica, entre outras condições
de produção, na falta ou na presença da retórica
(conforme os sentidos que a constituem em cada época). É o
espaço por excelência para a “liberdade” do sujeito, para
sua idiossincrasia, para a sua marca individualizante, para sair do comum
e entrar no específico. Porém, isto que é dado naturalmente
como a marca do sujeito – o lugar em que ele pode se fazer visível
– é o lugar comum, entendido como o lugar do comum, do social, daquilo
que faz sentido porque é compartilhado2 . Este espaço “dedicado”
à liberdade do sujeito na língua é sua grande armadilha
se levamos em conta os sentidos dominantes do processo de individualização
que marca o sujeito moderno, cujo efeito, entre outros, é sofrer uma
cobrança de responsabilidade individual daquilo que é da ordem
do comum, daquilo que é social.
Refletindo mais especificamente sobre a relação da retórica
com a resistência compreendi o que venho chamando de tirania da igualdade.
Tirania que se dá a partir do processo de individualização
do sujeito que, ao mesmo tempo em que cobra do sujeito o lugar do um individualizado,
determinado, remete-o para o lugar indeterminado da massa uniforme, objeto
das políticas públicas.
Igualdade imposta que apaga a diferença, que produz o efeito de incapacidade:
já que todos são iguais, os que podem mais podem porque são
mais capazes. Sentidos que circulam pelo sujeito escolarizado, pelo lugar
do bem-dizer, da língua normalizada, que apontam para a incapacidade
do lugar do mal-dizer.
Pêcheux
(1990:10/11), analisando a revolução burguesa, coloca que
sua particularidade consistiu na tendência de “absorver as diferenças
rompendo as barreiras”. Há uma dupla universalização:
“das relações jurídicas e da circulação
dodinheiro, das mercadorias e dos trabalhadores livres”. Esta universalização
que instaura todos e cada um como cidadãos chama pela responsabilidade
individual. É o sujeito de direito que Haroche (1975) define como
conformado por “uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas”.
Com a revolução burguesa, completa Pêcheux (op.cit.),
apaga-se o “choque de dois mundos” para resignificar-se em um “confronto estratégico
em um só mundo”. É neste sentido que digo que a igualdade é
tirânica, pois ela tende a impossibilitar o movimento do sujeito já
que seus sentidos, no imaginário, o dizem igual aos outros.
Compreender estes efeitos permitiu-me alcançar um processo de significação
nodal no processo de escolarização. Seus sentidos apontam
para um sujeito “em vias de ter condição de poder saber” (sujeito
embrionário sempre): um vir a ser aprendiz, negando ao sujeito, pois,
sentidos que lhe coloquem na “posição de”. Posição
de quem sempre sabe para poder saber. O caráter facilitador com que
a escola tem sido recoberta (a didatização banalizadora) coloca
o sujeito escolar como aquele que tem problemas, tem dificuldades, para
quem é muito difícil aprender.
Meu trabalho fundamenta-se na compreensão de que para que a função-autor
se dê legitimamente, na filiação de sentidos que constitui
a autoria no espaço brasileiro, é preciso que se dê
a negação da multiplicidade do sujeito e da pluralidade dos
sentidos. Ela exige que o sujeito se submeta a esta dupla ilusão
de modo a apresentar um texto bem dito.
Dentro desta filiação de sentidos, uma das críticas
mais reincidentes em relação a um texto escolar consiste em
denominá-lo de retórico. Em outras palavras, dizer que o texto
é oco, cheio de clichês. De meu ponto de vista, o clichê
é um lugar discursivo onde a resistência do sujeito pode se
dar. Eu diria que no clichê o sujeito encontra a referencialidade segura
que ele percebe ausente na relação com sua língua dada
a posição de simulacro em que normalmente ele se conforma.
Não se trata de uma percepção consciente. Esta consciência
do sujeito não me interessa. Na Análise de Discurso não
trabalhamos com a subjetividade do sujeito. O sujeito sabe (é pego)
da falta de referencialidade única, verdadeira, objetiva e real da
língua em relação às coisas do mundo, porém,
este saber não tem espaço para ser dito, tendo que ser conformado
nas vestes da literalidade. Este efeito de conformidade encontra-se, poderíamos
dizer, em escala maior e grau mais forte no clichê, exatamente porque
ele se apresenta como uma fórmula fechada, imutável: repetição
oca. Nesta fixidez imaginária, o sujeito encontra um ponto de partida
a partir do qual ele possa deslocar sentidos; o clichê é um
espaço onde há um efeito de desobrigação inicial
da responsabilidade (“não sou eu quem digo: é o lugar-comum”)
pela referencialidade unívoca dos sentidos, causando um alívio
imediato no sujeito que o deixa à vontade, inclusive, para secolocar
na posição de autoria. Este sentido de fixidez, como coloca
Ferreira3 , produzido pelo uso recorrente dos clichês, pode provocar
um efeito contrário ao esperado: o deslizamento dos sentidos. No
clichê há autoria, porque há a possibilidade sempre
de deslizes de sentidos e porque nele há muitas vezes a resistência
do sujeito na direção da construção de um poder
dizer4 .
Disse que no clichê pode haver autoria e pode haver resistência.
E só posso afirmar isto pensando no funcionamento do jogo metafórico
tal como Pêcheux (1990) desenvolve. A metáfora é a própria
condição da realização da resistência.
E a resistência, podendo tomar a forma do sem-sentido, é a possibilidade
do não-sentido, do irrealizável se dar. Assim usar clichês,
falar sua língua como se fosse uma língua estrangeira mal
dominada, podem ser compreendidos como práticas discursivas que permitem
dar visibilidade ao funcionamento da resistência que busca lugar para
o irrealizável, e eu diria também para o interpretável.
A metáfora está na base da significação, ela
é o efeito de uma relação significante: uma palavra
por outra (Pêcheux, 1975). Isto é, não há literalidade
do sentido, ele pode ser sempre outro. O lugar da metáfora é
“o lugar do sentido (que é por sua vez ) função da interpretação,
espaço da ideologia” (Orlandi, 1996: 21). Este movimento é
marcado por um duplo trabalho: “no mesmo lugar em que há o equívoco,
o outro, há também o trabalho ideológico da estabilização
do sentido, trabalho de contenção do movimento de sentidos
e de sujeitos” (Orlandi, 1997). É neste jogo tenso que as práticas
pedagógicas se dão. Dar visibilidade a este jogo permite novos
gestos de interpretação.
A questão da norma nos coloca diante da reflexão do modo de
funcionamento da língua, instrumentalizada, domesticada, administrada
pela sua gramatização. A língua normatizada não
é da ordem do “ser”, mas do “dever ser”. Este dever ser vai ganhando
sentidos, a partir do século das luzes, filiados a uma idéia
de igualdade não só nacional, que permite construir a idéia
de nação, mas também de igualdade cidadã. Com
a prática da escolarização ultrapassando limites antes
muito claros vinculados oficialmente a uma elite, em outras palavras, com
a prática da dita democratização do ensino, a normatização
da língua ganha sentidos ligados à idéia de igualdade
lingüística: todos devem poder adquirir a língua culta
(aquela que está normatizada). Dever poder passa a funcionar como
dever, dívida, falta. As pessoas têm acesso, mas não
aprendem. Retomo: a igualdade é tirânica. Pois ela apaga a diversidade,
cobrando o aceite e adaptação a uma igualdade imposta. Ao
produzir este efeito de igualdade ela também produz o efeito de incapacidade.
Mais do que isso, elareproduz o sistema de mera substituição
nas relações de poder: ser capaz de adquirir eficazmente esta
língua exterior ao sujeito permitirá ao mesmo ocupar o lugar
de autorização sobre o dizer dos “outros”, os incapazes.
Estes sentidos se fizeram fortemente presentes nas análises sobre
as narratividades do século XIX brasileiro sobre a história
da educação no país. A discursividade dominante, que
compreendi nestas narratividades, aponta para diversos funcionamentos que
ecoam sentidos no processo de escolarização hoje:
a) um jogo temporal entre
passado e presente que não se dá em uma coincidência cronológica;
b) deslizes de sentido na instauração
de um sempre novo ‘público’ para o ensino;
c) sentidos que conformam o ser brasileiro em uma relação
constitutiva com a escolarização, ao mesmo tempo que com a
urbanização: poder ir à escola é ser civilizado
(em última análise);
d) o que leva um “não-poder ir à escola”, ou
“passar mal por ela”, para um espaço de significação
conformado pela imoralidade e ignorância;
f) um lugar para o professor como missionário
(pai moral e intelectual do aluno);
g) a responsabilidade pelo analfabetismo deslizando
para o analfabeto;
h) a presença atemporal de uma falta constitutiva para
o ensino brasileiro: faltam professores bem formados, faltam alunos capazes;
i) uma relação necessária entre a presentificação
de uma sempre falta para o ensino brasileiro e a instalação
do sentido público para a instrução – a instrução
pública; sentidos em confronto para o lugar do público (o
público autorizado, o público não-autorizado) que conformam
um lugar para o morador brasileiro e outro para o habitante brasileiro.
O primeiro está no lugar do bem dizer, o segundo não;
j) sentidos postos pela própria legitimação
dada pela urbanização: o morador é urbano (é
organizado, alcançável, discernível), o habitante não
é urbano (é disperso, não é tangível,
não é civilizado).
Sentidos que se trombam, se confrontam no lugar do bem-dizer, conformando
a meu ver um sujeito toca(n)do (por) um lugar-sujeito que tenho chamado
de sujeito urbano escolarizado. Sujeito que (se) faz sentidos em um só
tempo em/com sentidos do letramento e da urbanização: produzindo
o que podemos designar de uma urbanidade da língua. Nesta língua
se efetuam sentidos na discursividade que joga parafrasticamente com civilidade/urbanização/escolarização
no confronto direto com a idéia de barbárie. Discursividade
que constrói um lugar de enunciação para a língua
nacional em que língua, urbanização, escolarização,
nação, se fazem contrapartes da idéia de civilidade.
Língua nacional que constrói o lugar para se dizer no bem-dizer.
Sentidos que dão referência para um sujeito urbano escolarizado
autorizado, ou não autorizado, a ocupar este lugar do bem-dizer. Lugar
constituído por um vai-e-vem de sentidos que percebo hoje tocarem
o lugar do sujeito escolarizado: sentidos do lugar da mídia como
saneadora da educação, o lugar dos instrumentos lingüísticos
voltados para o ensino da língua, os sentidos que conformam o movimento
de democratizaçãoda educação, do lugar do sujeito
escolar responsável (ou irresponsável) pelo seu conhecimento
adequado, do lugar do conhecimento institucionalizado. Lugares densos de
sentidos para os sujeitos urbanos escolarizados. Movimento (vai-e-vem) que
produz a visibilidade da incapacidade do indivíduo e sua decorrente
responsabilidade pelo “fracasso” da escolarização.
Para compreender outros processos de significação constitutivos
do lugar do sujeito urbano escolarizado, percorri algumas polêmicas,
situadas entre o final do século XIX e começo do XX, que se
fizeram fortes em torno da defesa por um “falar a língua corretamente”,
e que colocavam em questão a referência da língua correta.
Estas análises permitem compreender o modo pelo qual as práticas
discursivas, que se dão nas polêmicas, constroem sentidos para
a língua nacional brasileira e para o sujeito que nela diz. Práticas
discursivas que se dão no interior do processo de gramatização5
da língua nacional do Brasil6 e implicam, entre outros efeitos,
no apagamento de outras línguas no gesto mesmo de estabilizar e construir
uma unidade para a língua nacional.
Nestas polêmicas compreendi o funcionamento de quatro eixos enunciativos
que se dão em relações de sentido em tensão,
estabilizadas e desestabilizadas, na direção da construção
de uma unidade lingüística brasileira: de um lugar para o poder
dizer da posição legítima do brasileiro (unidade de
língua, unidade de povo).
Trato deste “poder dizer da posição legítima do brasileiro”,
apontando para minha compreensão de que produzir condições
para que o sujeito se inscreva historicamente nos sentidos não significa
ser dito pelos sentidos legitimados. Inscrever-se na história significa
legitimar seus sentidos (mesmos/outros), legitimar seu processo de identificação.
Compreensão que não pressupõe o anarquismo lingüístico
do tudo pode, tudo faz sentido, porque não faz. O sentido é
histórico. Alguns sentidos são dizíveis, outros não.
É no processo de resistência do sujeito que sentidos não
possíveis se fazem dizíveis, dentro sempre das possibilidades
produzidas no interdiscurso (na memória do dizer, na ideologia).
Trazendo, finalmente, a retórica mais próxima da reflexão
sobre o lugar do dizer no bem-dizer, seus sentidos, deslizes, apagamentos,
enfim, funcionamentos discursivos, minha análise, que buscou compreender
as filiações de sentidos que produzem uma certa forma de se
pensar a retórica e a língua nos interstícios dos séculos
XVIII, XIX e XX, permitiu-me compreender que seus sentidos fundantes, que
a tocam na moral, no ético, no político7 , deslocaram-se para
uma tomada tecno-cognitivista. Esta análise se deu enfocando as narratividades
que constroem uma história “consensual” para a retórica. Entender
o funcionamento da retórica em termos de seu estatuto8 e dos
sentidos por ela construídos para as diferentes maneiras de dizer
na e da língua nacional, é entender um pouco mais sobre os
sentidos que vão sendo construídos para a língua nacional,
o que inevitavelmente nos faz pensar sobre o sujeito que nela se fala, ou
não. Sujeitos brasileiros na construção de espaços
possíveis para dizer.
Há já
para os sentidos de retórica uma identificação, poderíamos
dizer mesmo um efeito de coincidência, que se estabeleceu entre retórica
e política. Sendo a política tomada como luta de interesses
que não se baseia na verdade, mas na opinião. Neste sentido
é que, para este trabalho, é importante compreender o processo
discursivo que vai construindo o lugar da retórica no campo discursivo
da opinião em oposição à verdade (científica/racional).
Arendt mostra que os sentidos que constituem a relação
fechada entre política e retórica são fundados no conceito
de verdade na história da filosofia que distingue, na época
moderna (desde Leibniz), a verdade racional da verdade factual, já
dentro da crença de que a verdade é produzida pelo espírito
humano e não revelada. Às verdades racionais correspondem
as verdades científicas e filosóficas, às verdades
factuais os enunciados factuais. Na construção dos sentidos
que foram sendo postos, o contrário de uma verdade racional constitui
o erro e/ou a ignorância nas ciências e a opinião e/ou
ilusão na filosofia. Só há espaço para a mentira
deliberada no campo da verdade factual. Posso compreender a partir daí
que o estatuto da verdade racional é o da objetividade passível
do deslize da subjetividade que deriva no erro ou na opinião/ilusão,
enquanto que o da verdade factual é o da constatação
do real, o que quebra de antemão, a meu ver, com o pressuposto de
que as verdades são produzidas pelo espírito humano, ou melhor,
define dois níveis de realidade, a científico-filosófica
e a do cotidiano (fruto da somatória de encadeamentos dos fatos )10
.
Segundo ainda Arendt, no século XVIII o conceito de verdade passa
a ser questionado e a dicotomia entre verdade e opinião perde seu
caráter estrito, passando a ser fortemente defendida a equivalência
entre os dois conceitos. Sobretudo em Kant, principal representante desta
defesa, em sua Crítica da Razão Pura, Arendt percebe neste
movimento a passagem do Homem singular (espírito humano singular que,
através de um raciocínio sólido, dá visibilidade
à verdade) para Homens plural, emque a força de uma opinião
é determinada pela relação de confiança entre
indivíduos que se vêem integrados pela sustentação
de um conjunto de supostas mesmas opiniões. Verdade racional e opinião
se equivalem. Neste sentido o cidadão passaria a englobar o filósofo,
apagando-se de vez, segundo a autora, os últimos traços do
antagonismo entre a verdade racional e a opinião na nossa época
moderna11 . Para Arendt interessa discutir modernamente o que ela chama de
conflito entre a verdade factual e a política, considerando ser inquietante
o fato de que se tolera uma diversidade religiosa e filosófica, mas,
para tanto, toma-se toda verdade factual tolerada (mesmo que mal recebida)
como opinião, o que põe em jogo a “realidade comum e efetiva”
(op.cit.: 301-302). Ela faz ainda um paralelo entre aquele que diz a verdade
dos fatos e o filósofo da caverna de Platão, que vêem
suas verdades rebaixadas ao nível da opinião. Vemos então
que Arendt, ao mesmo tempo que afirma não haver mais o antagonismo
entre verdade (racional) e opinião, enreda-se nos sentidos de um
antagonismo entre uma verdade real (constatativa) e opinião. É
a própria autora que dirá mais adiante que este conflito entre
a verdade factual e a opinião acaba reabrindo a oposição
que parecia acabada entre verdade filosófica e opinião, concluindo
que “a verdade (em seu sentido largo) tem uma força própria
que a persuasão e a violência podem substituir, mas não
tomar seu lugar” (op.cit.: 330).
Interessa-me chamar a atenção para dois pontos: a) a força
e efetividade do sentido opositivo entre uma almejada verdade (seja ela
definida como factual, científica ou filosófica) e aquilo
que é denominado de opinativo e que remete à retórica
seu lugar fundante. Estas dicotomias filiam-se, por sua vez, a uma discursividade
que hoje pode ser pensada como fundada em uma epistemologia positivista
que crê na possibilidade de se estar fora da história, da ideologia,
para se olhar e compreender a “realidade”; e b) o sempre deslize a que é
submetido o sentido de retórica, ora no lugar da opinião,
desqualificada pela não-objetividade (a retórica ocupa o lugar
oposto à verdade racional) – o lugar do cidadão; ora como
persuasão demagógica sustentada por interesses pessoais (a
retórica ocupa o lugar oposto às opiniões, isto é,
verdades subjetivas, mas de boa fé) – o lugar da política12
. De outro modo: ora como pertencente ao discurso de todos, ora característica
do político reduzido à política. Sempre desqualificada,
desautorizada: seja pela falta da objetividade científica, seja pela
falta da moral, da ética. A retórica é falta.
Remeto agora a uma enunciação característica de sala
de aula: “escrevam seu texto, dando a sua opinião sobre o assunto,
justificando-a através de uma argumentação coesa e
coerente”. Opinião/argumentação. De que lugar vem esta
demanda? Que deslize foi se construindo para o lugar da retórica?
Que lugar é o da opinião? Esta opinião só é
válida caso seja fundamentada em uma dita boa argumentação
(que não caia no senso comum, na retórica). A crítica
genérica e efusiva que classifica os textos escolares como retóricos,
participa do processo discursivo em que se identifica a língua brasileira,
ou melhor o sujeito brasileiro que “usa” a língua à falta
(de ter o que dizer, de saber dizer), em oposição à
presença da verdade científica. É uma desautorização
histórica que coloca o sujeito escolarizado como inapto a ocupar
o lugar de quem está autorizado a dizer das verdades (não
importa quais sejam elas), é o lugar da incapacidade de discernimento,
é a posição da falta de consciência do povo brasileiro,
da falta de memória, da ingenuidade. É a incapacidade de ser
cidadão. O cidadão falta na retórica.
Os sentidos postos por estas narratividades nos apontaram, pois, para um
não-lugar em que a retórica foi se constituindo a partir do
final do século XVIII. O não-lugar instaura-se na medida em
que a retórica não atende à demanda da objetividade
nem tampouco à da subjetividade, instaurando-se neste não-lugar
da retórica sentidos para o letrado não-autorizado que conformam
uma imoralidade fundante para sua posição sujeito. Vemos aí
que a conformação dos sentidos de um texto qualificado como
mero clichê é muito mais densa do que dizer que o problema é
de uma ausência de técnica de escrita, ou problemas escolares
históricos do aluno ou do ensino.
Refletindo sobre lugares de resistência que vão construindo
um poder dizer brasileiro sobre o bem-dizer (isto é, construindo um
lugar para um saber brasileiro legitimado), trouxe no trabalho análises
de parte da obra de Frei Caneca (autor do início do século
XIX), que escreveu poesias, textos jornalísticos, dissertações,
uma gramática e um tratado de eloqüência. Uma das razões
que me levaram a Frei Caneca foi o sintomático apagamento pelos historiadores,
literatos e gramáticos de sua obra, classificada como didática
(a gramática e o tratado) ao realizarem compêndios. Este fato
indicou-me que o dizer produzido na discursividade de Frei Caneca não
produziu sentido nas condições de produção de
sua época, sobretudo se considerarmos o fato de que sua obra (na
maior parte manuscrita) tenha sido impressa seis décadas mais tarde,
exatamente no período da gramatização brasileira, em
que as condições de produção demandavam a “recuperação”
destes sentidos postos pela discursividade da obra de Frei Caneca. Sentidos
que apontavam para a legitimação de um saber brasileiro sobre
a sua língua. Nesta discursividade comparece, pois, um dizer brasileiro
no bem-dizer inserido em uma grande tensão entre uma memória
do dizer portuguesa e uma memória do dizer brasileira. Percurso com
filiações que, no final do século XIX, constroem um
lugar possível para a inscrição de um dizer legitimado
brasileiro, através da escrituralização de um saber
brasileiro.
Neste breve relato de meu percurso de análise ficam alguns sentidos
postos pelo lugar da retórica na sua relação com o
bem-dizer hoje para a escolarização. Sentidos que comparecem
nos sentidos do acontecimento da democratização do ensino;
na construção de um não-lugar para o sujeito urbano
escolarizado não-autorizado; na construção de um lugar
para a língua culpada, constituída por um religiosismo que
aponta para o sujeito a responsabilidade (culpa) pelo seu mal-dizer, seu
dizer retórico. Nesta trama discursiva, proponho que restituir à
língua sua falta de sentido seja talvez um caminho para se evitar
o esvaziamento dos sentidos do que seja a autoria, possibilitando pois a
escuta de outros sentidos, outras inscrições históricas
do dizer.
Enfim, este foi meu percurso neste trabalho, percurso que me aproximou um
pouco mais de minha questão sobre o lugar do autor na escolarização.
Trabalho que, nele mesmo, sendo linguagem, abre-se a outros percursos sempre.
Notas:
1
Tese apresentada no Curso de Lingüística do Instituto de Estudos
de Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação
da Profa. Dra. Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi, em 30 de junho de 2000.
2
Conferir Orlandi (1999, no prelo), que desenvolve este tema desde sua pesquisa
no interior do projeto O Sentido Público no Espaço Urbano.
3 Ferreira,
M. C. L. A Resistência da Língua nos Limites da Sintaxe e do
Discurso: da Ambigüidade ao Equívoco. Tese de Doutorado, Unicamp,
1994.
4 Cf.
Lagazzi-Rodrigues, 1988.
5 Cf.
Auroux, 1992.
6 Cf.
Orlandi, 1997 e Guimarães, 1994.
7 A
distinção que faço entre moral, ética e política
é uma distinção de necessidade analítica, sabendo
que não há limites entre estas três ordens, ao contrário,
ela se autodeterminam.
8 Isto
é, em termos de ser colocada como apêndice da gramática,
ser ou não ser citada, restringir-se a ser citada somente em casos
de vícios de linguagem, fazer parte da estilística, ser reduzida
à estilística.
9 ARENDT,
H. “Vérité et Politique”, em La Crise de la Culture.
Gallimard, Paris, 1972, apud Lagazzi-Rodrigues (1998).
10 Fato
aqui tomado como dado.
11 Não
discutirei aqui diretamente as afirmações de Arendt, mas acredito
que as análises que aqui serão apresentadas deixarão
claro que minha compreensão sobre os sentidos de verdade racional,
opinião, e suas paráfrases, não vai na mesma direção
da compreensão da autora.
12 Lembro
aqui que Lagazzi-Rodrigues (1998) mostra que reduzir a ordem do político
à política é já efeito da relação
constitutiva de seus sentidos com a retórica (e seus deslizes). Por
isso marco ‘política’ e não ‘político’.
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topo
O SENTIDO PÚBLICO NO ESPAÇO
URBANO: A QUESTÃO DA LÍNGUA
CAROLINA RODRÍGUEZ ACALÁ
Centro de Ensino de Línguas - UNICAMP
1. Apresentação
Apresentamos neste texto o relato de alguns aspectos da pesquisa realizada
no âmbito do projeto temático intitulado O Sentido Público
no Espaço Urbano, desenvolvido no Laboratório de Estudos Urbanos
da Unicamp1 . O projeto teve como finalidade estabelecer uma reflexão
sobre a questão urbana a partir da linguagem, compreendendo a cidade
enquanto objeto discursivo. A cidade contituiu-se em nossa pesquisa,
desse modo, como um objeto diferenciado daquele de outras áreas do
conhecimento também voltadas para a questão urbana, tais como
o próprio urbanismo ou a historiografia.
Partimos de uma concepção de cidade enquanto espaço
simbólico diferenciado que tem sua materialidade e suas formas específicas
de significar (Orlandi 1999a e b). Uma questão fundamental que aí
se coloca para compreendê-la, portanto, é a questão da
língua: quais seriam as formas características de uma
língua da cidade em/pela qual a esta significa? Isto é,
o que seria uma “língua urbana”? É importante notar que
responder a essa pergunta envolve uma reflexão tanto sobre a língua
como sobre a própria concepção do que seria “urbano”,
por oposição a “rural”, distinção essa mais
ampla e que está longe de ser evidente.
Para discutir essas questões tomamos como objeto de análise
a situação do guarani no Paraguai, língua falada, junto
com o espanhol, por 90% da população e que na última
Constituição de 1992 foi declarada língua oficial do
Estado. A pergunta que nos fizemos foi: o guarani, dada sua
origem de língua indígena e do campo, passou a desempenhar
o papel de língua “urbana” e a sustentar os discursos oficiais do
Estado?
Para determinar esse caráter “urbano” ou “rural” da língua,
levamos em conta alguns dos critérios possíveis de definição
dessa distinção, a saber, sua definição em termos
geográficos (língua falada predominantemente no campo ou na
cidade), de“conteúdo” (língua vinculada a temas do campo,
do folclore, da memória rural, etc.) e, principalmente, em termos
da distinção público/privado (que mobiliza de modo central
a questão da escrita). Pois se “ser habitante da cidade significa
participar de alguma forma de vida pública” (Rolnik 1998), nosso objetivo
em última instância foi compreender o “caráter público”
do guarani e o modo específico pelo qual, através dele, os
habitantes da cidade são interpelados em sua inscrição
nas diferentes práticas urbanas. Será este último
o sentido a ser focalizado no presente texto.
2. Cidade e Tradição Indígena
na América Latina
A realidade do guarani constitui uma situação particular quando
pensamos nas relações estabelecidas entre as noções
de civilização e cultura nos discursos sobre a história
latino-americana. A civilização na América Latina
– no sentido de constituição de cidades (civitas) atuais a
partir de modelos urbanos europeus–, coincide com o apagamento das culturas
locais, indígenas, consideradas não civilizadas – no sentido
de não-evoluídas (inferiores). Essa polissemia do termo
civilização, tal como mobilizado nos discursos da (sobre a)
colonização, produz uma confluência característica
na compreensão dessa realidade cultural e urbana. Civilizado
é ao mesmo tempo evoluído (superior) e urbano, estando as culturas
indígenas excluídas de ambos os sentidos do termo. Isto
é, as culturas (línguas) indígenas, por serem consideradas
não-civilizadas (primitivas, inferiores), são excluídas
da civilização (constituição de cidades).
Esse
não parece ter sido o caso no Paraguai, onde o guarani permanece
até hoje não apenas como língua do campo (onde seu
predomínio sobre o espanhol é absoluto em todas as regiões
do país), mas também como língua das cidades e da capital,
sendo sua presença muito evidente tanto nas conversas de rua como
nos meios de comunicação, tendo sido inclusive incluído,
como mencionado, no âmbito mais formal do discurso jurídico
– administrativo, ao ter sido instituído como língua de Estado.
Esse fato coloca algumas questões quando pensamos na situação
histórica da língua. De acordo com os documentos históricos,
constatamos que se o guarani foi mantido não apenas como língua
do campo mas também como língua da cidade, seu uso esteve historicamente
excluído das práticas que conformam mais caracteristicamente
o imaginário urbano. Isto é, já desde o início
o guarani sobreviveu como língua oral:
[...] nunca
escriben cosa alguna en la lengua del indio, aun los que saben escribir. (Cardiel
1900 apud Melià 1992: 60)
e do âmbito
privado:
El idioma guaraní se emplea corrientemente entre los españoles
de la ciudad de Corrientes, lo mismo que en las colonias de Villa Rica y
Curuguaty. Es más, en la misma ciudad de Asunción (sede
del gobernador y capital de la provincia) el P. Roque de Rivas (muerto en
Faenza el 1790) explicaba en guaraní, desde un sitio elevado, los
misterios de la Religión y los deberes morales, con gran aplauso y
provecho de sus oyentes, los cuales, aunque hablan el español, prefieren
se les hable en guaraní, al que están acostumbrados desde niños
y en el que conversan entre sí, en el campo y en sus casas. (Peramás
/1793/ 1946: 74). (grifos nossos)
Língua oral, “do campo e das casas”, do domínio privado, associada
a “usos vulgares e triviais”, informais:
La lengua guaraní
tiene ciertamente sus secretos (patavinitates), aunque cuando se trata de
asuntos vulgares y triviales, es entendida suficientemente para ser usada
recíprocamente por ambos grupos de gente (paraguayos e indios). (Charlevoix
1779: 556)
Essa restrição foi reforçada pelas sucessivas políticas
lingüísticas, que historicamente tentaram (sem muito sucesso)
erradicar o guarani mesmo desse uso oral e privado. Essa postura foi
mantida até a política lingüística adotada há
algumas décadas, cujo resultado mais significativo foi, além
da oficialização do guarani, a criação do Programa
Nacional de Educação Bilíngüe, em 1994, que prevê
a alfabetização em guarani, além do espanhol, não
apenas para a maioria falante de guarani como língua materna, mas
também para a minoria monolíngüe em espanhol.
Essa situação mais recente coloca, tendo em vista o histórico
acima apresentado, uma questão fundamental a ser respondida, a saber:
como é possível pensar que uma língua de tradição
indígena e rural, que por mais de quatro séculos de história
desempenhou na cidade o papel de uma língua oral, do âmbito
familiar/ informal, que nunca tinha sido ensinada nas escolas e que foi sempre
excluída das instituições, tenha passado no curto intervalo
de algumas décadas a ser integrado nas mesmas e a ser instituído
como língua de Estado?
Em poucas palavras, o guarani tornou-se de fato uma língua urbana,
do domínio público (formal/escrito)?
3. O Guarani no Espaço Público
da Cidade
Para responder a essa questão, devemos definir primeiro o que entendemos
por “público”.
Segundo Sennett,
que faz uma análise da constituição e das transformações
históricas dos termos “público” e “privado”2 , a palavra “público”
na época em que havia adquirido seu significado moderno
[...] significava não apenas uma região da vida social localizada
em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos,
mas também que esse domínio público dos conhecidos
e dos estranhos incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas.
(Sennett 1989: 31)
Sempre de acordo com esse autor, dentre os diferentes sentidos possíveis
de “público”, enquanto região da vida social separada do âmbito
familiar e dos amigos íntimos, temos sua definição
como algo “sujeito à observação pública”, sentido
esse que, de alguma forma, também poderíamos chamar de “geográfico”,
pensando neste caso na geografia interna da cidade, do espaço urbano.
Outro sentido assinalado por esse autor diz respeito a “público” enquanto
relativo ao “bem comum da sociedade”; nesse respeito, portanto, “público”
estaria relacionado ao aparelho jurídico-administrativo do Estado
– enquanto gestor do “bem público”–, a “sentidos públicos”,
formais (o que coloca em jogo a questão da escrita).
Uma “língua pública” seria, portanto, se levarmos em conta
esses sentidos3 , uma língua ao mesmo tempo sujeita à observação
pública e uma língua de Estado (escrita).
Sobre esse problema, na análise do modo específico de existência
do guarani na cidade, formulamos uma hipótese inicial, a saber:
O guarani está presente no espaço público da cidade
(“sujeito à observação pública” no interior da
geografia urbana) e na escrita, mas não necessariamente vinculado
à produção de sentidos públicos (relativos ao
“bem público”, ao aparelho do Estado), mas sim como produção
ou citação de sentidos privados (coloquiais, informais, familiares)
e/ou do campo (“conteúdos” ligados à realidade camponesa, ao
folclore do campo, etc.).
Para discutir essa hipótese, fizemos um levantamento preliminar das
ocorrências do guarani no espaço público da cidade,
delimitando alguns campos: a -discurso jurídico, b - administração
pública, c - discurso político, d - espaço público
(material) da cidade, e - mídia (imprensa escrita, rádio, televisão,
Internet) e f - literatura. Esbocemos rapidamente os resultados no
seguinte quadro para em seguida comentá-los.
a. DISCURSO JURÍDICO
Uso exclusivo
de espanhol, oral e escrito, nas comunicações oficiais nos
sistemas legislativo e judiciário; o guarani aparece nas comunicações
orais/informais. Existe uma exceção do uso do guarani escrito/formal:
a Constituição Nacional (de 1992), que foi traduzida do espanhol.
b. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Uso exclusivo
do espanhol na comunicação oficial, oral ou escrita (nacional,
departamental, local, municipal e regional).
c. DISCURSO POLÍTICO
Uso (extensivo)
do guarani nas campanhas eleitorais, de proselitismo político, mas
excluído dos discursos políticos formais.
d. ESPAÇO PÚBLICO (MATERIAL) DA CIDADE
O guarani aparece
na denominação de ruas, instituições municipais,
lojas, empresas e produtos comerciais4. Mas está ausente do
do terreno da organização e administração urbana
propriamente ditas, como placas de trânsito, avisos, etc.
e. MÍDIA
1 - IMPRENSA ESCRITA. Existem alguns jornais que
têm seções que dedicam um espaço ao guarani:
Ultima Hora (no suplemento Correo Semanal), ABC, Noticias (no Suplemento
Escolar e Revista Infantil). O guarani aparece também na coluna
de comentários políticos (“fofocas”).
2 - RÁDIO. Existem programas em guarani sobre folclore,
problemas do campo, reportagens, além de programas cômicos
e infantis; o guarani aparece também nos comentários
políticos e nas entrevistas.
3
- TELEVISÃO. Existe um noticiário em guarani na primeira
edição do dia de um dos canais de televisão, além
de um programa chamado “Magazine”, aos sábados, e um seriado televisivo
chamado “Sombras en la noche”.
4 - MÍDIA ELETRÔNICA (Internet). Existem oito
links principais sobre o Paraguai apresentados no site da Universidade Nacional
de Assunção (principal página produzida nacionalmente):
Home Page sobre el idioma Guaraní, Presidencia de la República,
Congreso Nacional, Mercosur, Paraguay para todos, Páginas sobre el
Paraguay por Wolf Lustig, Dirección de Censos y Estadísticas
Agropecuarias del MAG (Ministerio de Agricultura y Ganadería) e Economía
paraguaya. Existem outros dois sites onde o guarani aparece:
Yagua, escrito em espanhol e com alguns termos e frases em guarani, e Guarani
Raity, escrito na maior parte em guarani, espanhol e inglês.
f.
LITERATURA
Existe literatura em guarani de dois tipos: produzida em guarani,
principalmente poesia e teatro; traduzida ao guarani (como o clássico
espanhol Platero y yo [Platero ha che] de Juan Ramón Jiménez).
Para comentar
as ocorrências da língua nesses campos, distinguimos entre as
produções existentes em guarani e sobre o guarani.
3.1. Produções em Guarani
A partir da análise dos materiais pesquisados, o que constatamos
é que o guarani, salvo algumas exceções que serão
apresentadas, não aparece na produção de discursos
públicos, formais, o que explica sua exclusão do âmbito
jurídico-administrativo, relativo à organização
urbana e do Estado: as comunicações oficiais nos sistemas
legislativo e judiciário e na administração pública
(a, b), os discursos políticos formais (c) e a organização
urbana propriamente dita (placas de trânsito, avisos públicos,
etc.) (d). Nesses campos não é impossível a ocorrência
do guarani, mas quando isso acontece é enquanto citação
de discursos “externos” a esse âmbito – o que pode ocorrer, por exemplo,
em um discurso político formal em sessões do Congresso Nacional
– ou em processos de designação do espaço urbano:
nomes próprios de ruas, instituições, lojas, empresas,
etc. (d) (que podem ser em guarani assim como em outras línguas,
como inglês, português, etc.). A única exceção
de produção em guarani no âmbito jurídico é
o texto da Constituição Nacional de 1992 que, por outro lado,
não foi exatamente produzida em guarani e sim traduzida a partir
do texto em espanhol.
O guarani continua a ser produzido, portanto, essa é nossa hipótese
central, nos terrenos onde é possível a produção
de sentidos do campo (folclore, etc.) e/ou do âmbito privado (discurso
informal, coloquial, da intimidade). Isso permite explicar o fato de
que, dos campos focalizados, ele apareça na mídia, na literatura
e no discurso político proselitista. Comentemos alguns exemplos.
3.1.1 O Guarani, na Cidade, como Língua
do Campo
Uma grande parte das produções em guarani está relacionada
ao campo, visto através da ótica do folclore, da ‘memória’
rural5 e indígena, das tradições populares camponesas
(mitos, lendas, canções, poemas e ditados populares, tradições
culinárias), etc. Esse é o caso, por exemplo, dos programas
de rádio (e-2), que em sua maioria são debates e reportagens
sobre folclore e sobre problemas do campo, e, também, dos espaços
dedicados pela imprensa escrita (e-1) ao guarani. O mesmo acontece
nos sites eletrônicos onde o guarani aparece (e-4): * Paraguay
para todos. Home page del Sr. Carlos Escobar, quien mantiene interesantes
datos y enlaces sobre el Paraguay e * Páginas sobre el Paraguay, por
Wolf Lustig. Datos desde Alemania sobre la cultura paraguaya y sobre el idioma
guarani. se explicam apenas em termos de uma questão temática,
de ‘conteúdos’: sempre intervém nelas o problema do
caráter privado (coloquial, informal) dos discursos nessa língua
e/ou a visão ‘folclorizante’ do campo. Quando se trata de discursos
públicos, formais sobre esses mesmos assuntos, a produção
em guarani deixa de ser possível (a não ser enquanto citação,
tal como foi visto acima). Esse é o caso, por exemplo, de dois
links do site eletrônico da Universidade Nacional de Assunção
(e-4): * Dirección Nacional de Censos y Estadísticas
Agropecuarias del MAG [Ministerio de Agricultura y Ganadería].
Interesantes datos estadísticos de los principales rubros de la producción
agrícola y ganadera e * Economía paraguaya. Datos y
enlaces sobre la economía paraguaya. Nesses sites, os ‘temas’
podem ser – e freqüentemente são – relacionados ao campo, mas
trata-se neles de um discurso científico, administrativo, logo, formal
e público – portanto, exclusivo do espanhol.
3.1.2. O Guarani, no Espaço
Público, como Língua do Âmbito Privado
A presença do guarani na cidade explica-se, também, em grande
medida, em referência à produção, no espaço
público, de sentidos do âmbito privado (discursos coloquiais,
informais, íntimos, do cotidiano). É nesse sentido que
devem ser entendidas as ocorrências orais do guarani no sistema judiciário
(a), onde aparece, por exemplo, nas conversas entre os advogados no fórum
em situações informais ou com pessoas monolíngües
em guarani (ou com precário domínio do espanhol) vindas do
campo. Isso explica, também, que o guarani esteja excluído
dos discursos políticos formais (c), mas que apareça – de modo
quase indispensável – nas campanhas eleitorais e de proselitismo político:
nesse caso trata-se da mobilização de um discurso da ‘intimidade’
com o eleitor/correligionário político. No que diz respeito
à mídia (e-4) essa distinção também parece
produtiva: na imprensa escrita, além dos discursos de/sobre
campo, o guarani aparece como produção de discursos informais/íntimos,
como no caso da coluna de comentários políticos (p.e. Ñe’êmengüépe
[“Em voz baixa”], coluna de ‘fofocas’ políticas do jornal ABC), escrita
em espanhol, mas freqüentemente com frases e expressões em guarani,
ou aparece como citação, indireta ou sob a forma de transcrição,
que pode aparecer ao longo das notícias apresentadas nos jornais,
de discursos informais, coloquiais, ‘populares’. Temos uma situação
similar na mídia eletrônica: o site chamado Yagua.com
(e-4), um provedor paraguaio escrito em espanhol, mas com diversas expressões
em guarani (como o próprio nome do site), todas elas vinculadas à
produção de um discurso extremamente informal. Como
exemplo desse tipo de ocorrências do guarani temos o link chamado
Chera’a. El buscador de la perrada paraguaya, que é um link
de busca de pessoas. Nessa frase, chera’a significa‘amigo’ em guarani
e perrada (de perro, ‘cachorro’) é um modo muito informal e íntimo,
específico de uma certa variedade do espanhol do Paraguai, de referir-se
a um grupo de amigos e/ou de pessoas com alguma afinidade/intimidade (aproximadamente
como um dos sentidos possíveis, também coloquial, de ‘galera’
em português, como em ‘vou tomar uns chopes com a galera’);
daí o próprio nome do site, yaguá (‘cachorro’ em guarani).
Outro exemplo, no mesmo site, da produção de um discurso (muito)
informal/íntimo em guarani é um dos jogos oferecidos, que
é muito difundido entre os jogos eletrônicos, chamado “pacman”:
dentre as mensagens que aparecem quando o usuário perde o jogo, estão:
Ndé! Game over! No te hagas el ñembo tarová [‘não
se faça de tonto’] e Ndé! Game over: Calificación:
Hasta mi abuela juega mejor! [‘até minha avó joga melhor’].
(Todas essas expressões em guarani são muito comuns no espanhol
do Paraguai.)
Existem duas exceções a essa situação, de usos
do guarani que podem ser considerados produções de discursos
do âmbito público/formal: * a página da RAU (Red
Académica Uruguaya), na qual o índice é feito em espanhol,
com versões em português, inglês e guarani (é
significativo, porém, que o guarani se limite somente a esse índice:
ao clicar nos links oferecidos, a língua passa a ser o espanhol);
* o site Guarani Raity, feito (em grande parte) em guarani, com tradução
para o espanhol e o inglês. Existe ainda uma outra exceção,
que é um breve noticiário em guarani em um dos canais de televisão
(e-3).
3.2. Produções
sobre o Guarani
Outra presença importante do guarani é constatada nas produções
sobre a língua: estudos lingüísticos e sociolingüísticos,
materiais didáticos para o ensino da língua, gramáticas
e dicionários. Esse é o caso em alguns dos espaços
reservados ao guarani na impresa escrita, como o Suplemento Escolar e a Revista
Infantil, dos jornais ABC e Noticias (e-1), dirigidos a professores e alunos
de guarani. Existe também um volume considerável de estudos
lingüísticos e sociolingüísticos e, mais recentemente,
de livros didáticos, cuja referência ocupa grande parte dos
links dos sites eletrônicos sobre o guarani (p.e. o de Wolf Lustig)
(e-4). Temos, também, gramáticas e dicionários
do guarani, que são também referidos nesses links.
É importante observar que todas essas produções sobre
o guarani são feitas em espanhol (ou outras línguas, como
o inglês, como nos trabalhos sociolingüísticos mais conhecidos),
incluídas aí as gramáticas do guarani, e que não
existem dicionários monolíngües em guarani.
4. Conclusão
Para finalizar essa discussão sobre o caráter ‘público’
do guarani, gostaríamos de retomar as principais conclusões
que formulamos até aqui a partir dessa primeira análise – muito
preliminar e provisória6 – dos materiais apresentados.
Até pelo menos o século XIX, como vimos, o guarani é
descrito nos documentos históricos como língua na qual os
paraguaios “conversam entre si (no campo e) nas casas” e vinculado a “usos
vulgares e triviais”, isto é, como língua oral e do âmbito
privado (familiar, íntimo, informal). Ao analisarmos sua situação
atual e as possíveis mudanças operadas nesse sentido, sobretudo
a partir das modificações na política oficial em relação
à língua, o que constatamos é que essa situação,
em grande medida, se mantém. Ainda que o guarani esteja presente
no espaço público da cidade, ele continua excluído da
produção de sentidos públicos, tal como definidos preliminarmente
acima, e que o fato de que apareça na escrita não modifica
necessariamente essa situação. Uma vez excluído
da produção de sentidos públicos, sua presença
no espaço público parece responder aos dois fatores acima propostos:
- o guarani
aparece em discursos onde a produção de sentidos do âmbito
privado (discursos coloquiais, informais, íntimos, do cotidiano)
e/ou do campo (folclore, etc.) é possível: mídia,
proselitismo político e literatura.
- ou
aparece em discursos de caráter público (formal), mas, neste
caso, enquanto citação de discursos do âmbito privado
e/ou do campo, ou em processos de denominação do espaço
público (nomes próprios de ruas, cidades, instituições,
etc.).
Existem algumas (poucas) exceções
a essa regra, mas elas são – sem exceção – resultado
do trabalho de especialistas na tentativa expressa de tornar o guarani uma
língua pública. Temos, assim, a Constituição
Nacional, o noticiário em guarani na televisão e as referidas
páginas da Internet (o índice da RAU e o site Guarani Raity).
Mas essas tentativas apresentam-se como experiências muito localizadas
e onde, como vimos, se colocam muito claramente essas restrições
históricas da língua, uma vez que o espaço que o guarani
ocupa é muito limitado e que a passagem para o espanhol se torna
rapidamente indispensável. No que diz respeito às produções
sobre a língua, o sintoma mais claro dessa restrição
é o fato mencionado da inexistência de gramáticas de
guarani em guarani e de dicionários monolíngües, bem como
o fato de os textos didáticos serem (salvo alguma eventual exceção)
escritos em espanhol.
Notas:
1 O projeto foi coordenado
pela Profa. Dra. Eni L. P. Orlandi (Departamento de Lingüística-IEL,
Labeurb-Nudecri/Unicamp) e teve o auxílio da Fapesp (Processo no.
96/4136-7).
2 De acordo com o autor,
compreender as modificações históricas desses termos
constitui uma chave para compreender as transformações operadas
na cultura ocidental.
3 Esses são apenas
dois dos diferentes sentidos apontados pelo autor em seu trabalho, que mobilizamos
aqui por considerá-los pertinentes para nosso objeto de reflexão.
4 De acordo com um levantamento
apresentado por Corvalán (1997), o guarani aparece no nome de 107
ruas, 4 centros municipais, 74 lojas, 8 agências de turismo, 10 empresas
de transporte e vários produtos de consumo doméstico.
5 Para uma análise
sobre a memória do campo e sua presença na cidade, confrontar
os trabalhos de Onice Payer (1999).
6 Uma vez que a compreensão
da presença da língua no universo da cidade é um campo
muito vasto e que já cada um dos terrenos recortados e dos materiais
apresentados mereceriam uma análise detalhada.
BIBLIOGRAFIA
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NACIONAL DE BILINGÜISMO (1997), Ñane ñe’ê. Paraguái
Bilingüe. Políticas lingüísticas y educación
bilingüe. Assunção, Fundación en Alianza/MEC.
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NACIONAL. 1992.
CORVALÁN,
Grazziella. “Los dilemas del bilingüismo en el Paraguay” em Acción,
168. Outubro, 1996.
MELIÀ,
Barthomeu . “Hacia una ‘tercera lengua’ en el Paraguay” em CORVALÁN,
Grazziella e Germán de GRANDA (org.). Sociedad y lengua: bilingüismo
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________. La
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________. Elogio
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________ “Bilingüismo
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ORLANDI, Eni
(1999a) “N/O Limiar da Cidade”, Rua, Número Especial. Campinas, Nudecri/Unicamp,1999.
ORLANDI, Eni
(1999b) “...” (texto inédito apresentado no Encontro Internacional
Saber Urbano e Linguagem – Cidade Atravessada realizado na Unicamp, Campinas,
em novembro de 1999).
PAYER, Onice.
Memória da Língua. Imigração e Nacionalidade.
Tese de Doutorado. DL/IEL-Unicamp, 1999.
ROLNIK, Raquel.
O que é Cidade? São Paulo, Brasiliense, 1994.
SENNETT, Richard.
O Declínio do Homem Público. São Paulo, Companhia
das Letras, 1989.
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