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Sistemas humano-máquina: organismos vivos segundo Nobert Wiener

O corpo humano apresenta respostas programadas para diversos tipos de situações. Eleve a temperatura do corpo e você poderá sentir o suor em sua pele tentando resfriar o ambiente. Tenha uma infecção e espere pela elevação da temperatura do seu corpo. Embora “efeitos” parecidos aconteçam, eles são determinados por uma troca de informação entre os sistemas do corpo, assim como entre estes e o ambiente.

Tanto esses processos quanto outros que nossos corpos performam diariamente podem, ao ser observados por alguém como Nobert Wiener, colaborar na classificação do organismo vivo que chamamos de corpo como um sistema. Em Cibernética e sociedade [1], a relação que o autor faz com a vida, seja ela humana ou não, não é uma questão só de entendê-la como um sistema; ele a compara com uma máquina. Apesar dessa continuidade máquina/organismo vivo, Wiener tenta mostrar não apenas semelhanças entre eles, mas também especificar em que pontos o ser humano se torna algo “especial”, seja em comparação com a máquina ou com outros elementos da natureza.

A máquina funciona, segundo Wiener, ora como um sinônimo, ora como uma analogia para o organismo vivo. Ambos têm a capacidade de se modificar para alcançar “fins anti-entrópicos”. As modificações são determinadas de acordo com o funcionamento cibernético do sistema do organismo humano. Quando o organismo se encontra em uma situação, um feedback é dado a um aparato regulador central (o sistema nervoso), o que especifica uma nova ordem ao organismo. Uma vez nesse looping, todo o sistema irá buscar se reorganizar para impedir a desordem dele mesmo. Para Wiener, seria essa a dinâmica que fundamenta não só o organismo e a máquina automatizada, mas também a sociedade.

É interessante mencionar o fato de que Wiener apresenta, já de início, um argumento para fugir das complicações de tratar de um tema tão complexo como a vida. Com o objetivo de evitar os possíveis críticos de sua obra que poderiam tentar minar o seu raciocínio questionando pontos como a sacralidade ou o mistério da vida, e seu propósito vinculado à existência de uma alma, Wiener advoga se tratar de questões “toscas e inadequadas para o pensamento científico preciso” (p. 31). Ele considera  que vida não é um bom parâmetro para caracterizar uma classe de seres.

A aproximação entre máquina e organismo vivo, além da recusa de qualquer especificidade humana de ordem metafísica, faz, ao meu ver, com que haja um descentralização do ser humano. Embora sua iniciativa não estivesse seguindo a agenda do anti-humanismo, podemos pensar que Wiener contemplava, implicitamente, o mesmo objeto. Provavelmente, anti-humanismo e cibernética, naquele momento,tinham como objetivo fundamentar desdobramentos desse descentramento, como os que vemos hoje. O pós-humano crítico e o transumano carregam, atualmente, resquícios desses discursos, seus antecessores, já que o primeiro defende a possibilidade de uma existência mais inclusiva, englobando outros seres como pares dos humanos, e o segundo procura maquinizar o indivíduo para aprimorá-lo.

Agora, é válido também mencionar que, embora a visão de Wiener pareça muito análoga ao que se encontra hoje no discurso trans-humanista de futuristas adeptos ao programa de pesquisa do “upload de mentes”, como Ray Kurzweil [2] , eles não defendem a mesma coisa. Ao contrário do trans-humanismo, movimento que nitidamente herdou certos fundamentos das propostas cibernéticas sobre o humano, a visão de Wiener ainda conservava uma certa superioridade do ser humano sobre a máquina. O primeiro detém capacidades muito além da segunda, para o autor. Como Wiener mesmo diz, se conseguíssemos construir uma máquina que tivesse os mesmos processos ocorridos num humano, o máximo alcançado seria uma máquina que simula o humano. Além disso, o humano tem a vantagem do intelecto, ou seja da reflexividade, até mesmo sobre o restante da natureza, o que supostamente concede a ele a capacidade maior de se adaptar.

Entender que uma pessoa tão importante na história da cibernética como Wiener  já demonstrava uma visão muito forte do que hoje é defendido pelo transumanismo, é importante para qualquer um que, como eu, estuda a subjetividade na prática do biohacking [3], ou seja, movimentos que atuam sobre o organismo por meio das tecnologias.

[1] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.
[2] KURZWEIL, R. Singularity is near: when humans transcend biology. Penguin Books, 2005.
[3] KAWANISHI, P.; LOURENÇÃO, G. Humanos que queremos sere. Humanismo, ciborguimos e pós-humanismo como tecnologias de si. Trabalhos em Linguística Aplicada, n. 58, v. 2, 2019.

DUAS IDEIAS PARA ESTICAR A LÍNGUA DO ANTROPOCENO

Apresentação do Prof. Marcelo Buzato no II Colóquio Internacional Antropocénico, Biopolítica e Pós-Humano, organizado por Davide Scarso, José Luís Câmara Leme, e Atilio Butturi Junior. Realizado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa e Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Lisboa, 26 e 27 de setembro de 2019. Para mais informações, você pode visitar o site ou a página do Facebook


Resumo: Uma implicação importante do Antropoceno (e do pós-humanismo) para os estudos da linguagem é que a perda da excepcionalidade do Humano em relação aos demais seres da “natureza” implica o enfraquecimento da posição da língua(gem) como elemento distintivo e hierarquizante entre nós e nossos outros não humanos. Derivada disso, nos é colocada a pergunta sobre como renegociar o conceito de língua(gem) de tal modo a abarcar o modo como os seres humanos e não humanos negociam sentidos no que agora vemos como uma mesma história. Trago para este evento duas ideias que considero promissoras. A primeira, do filósofo e ecologista David Abraham, é a de que nossa língua é a mesma língua dos bichos e das coisas quando nos atemos à sua força expressiva, e não à camada de significados abstratos fixados por convenção na língua saussuriana. A segunda, trazida do materialismo relacional de Bruno Latour, é a de que precisamos de uma língua que nos permita estabelecer um diálogo ético com Gaia. Tal língua seria composta por representações artísticas e sistemas de sensoriamento cibernético capazes de nos afetar emocionalmente e racionalmente. Ilustro com exemplos de pesquisas e textos/imagens compatíveis como essas duas direções.