Literatura Infantil (1880-1910)

 
Um anúncio                
O moribundo

 

 

XLV. NUM VALO

 

O dia, seguinte ao da leitura dos jornais, passou-se sem novidade. À tarde, apareceu na oficina o aprendiz que tinha enfermado; vinha bom, e pronto para recomeçar a trabalhar no outro dia. Carlos chegou a estimar a ocorrência, porque todo o seu desejo, agora, era partir o mais depressa possível para a Baía. O ferreiro, que era bom homem, deu a Juvêncio dois mil réis, com que este, antes de se deitar, comprou alguns víveres, carne e pão, para a viagem. Dormiram e ao romper da manhã, puseram-se a caminho. Os meninos carregavam a matalotagem, e Juvêncio uma cabaça cheia de água.

Enquanto marchavam, iam conversando sobre a grande novidade que os preocupava. Quem seria aquele negociante da Baía? ¾ que interesse teria ele em conhecer o paradeiro dos dois? Qual seria o intuito do anúncio?

¾ Só pode ser bom! ¾ disse Juvêncio. ¾ Os senhores não têm parentes na Baía?

¾ Não. É verdade que meu pai devia ter por lá alguns conhecidos... ¾ disse Carlos. ¾ Os únicos parentes que temos estão no Rio Grande do Sul.

¾ Bom. Mas esses parentes já devem Ter recebido a notícia da morte de seu pai; talvez o negociante da Baía seja amigo deles.

¾ Talvez. Em todo o caso, tiraremos a cousa a limpo, quando lá chegarmos.

Alfredo que ia um pouco adiante, parou de súbito, e inclinou a cabeça, como prestando atenção a um ruído.

¾ Que é? ¾ perguntou-lhe o irmão.

¾ Psiu! ¾ recomendou o menino.

E continuou a prestar atenção, voltando-se ora para um, ora para outro lado.

Os outros aproximaram-se.

¾ O que é? ¾ repetiu Carlos.

¾ Estou ouvindo qualquer cousa como um gemido... Ouçam...

Carlos e Juvêncio afiaram o ouvido. Havia, de fato, alguma cousa. Era um como lamento longínquo...

¾ É voz humana! ¾ murmurou Carlos.

¾ E vem dali, de dentro do mato, à esquerda... ¾ acrescentou Juvêncio.

Seguiram, nessa direção. Os gemidos acentuavam-se. Chegaram a um valo, cavado no mato, perto do caminho; reconheceram que era efetivamente dali que partia a voz. Debruçaram-se, e viram lá em baixo um vulto estirado sobre os galhos secos. Era um velho.

¾ Está morto, coitado! ¾ exclamou Alfredo.

¾ Qual morto! ¾ disse Juvêncio ¾ vosmecê já ouviu um morto gemer? Está vivo, e devemos socorrê-lo!

¾ Está claro! ¾ afirmaram ao mesmo tempo os dois irmãos.

¾ O que eu não sei é como havemos de tirá-lo dali! Vejamos se ele é capaz de nos ouvir.

E falou alto:

¾ Que é isso, camarada? Que tem?

¾ Socorro! Acudam-me! ¾ gemeu a voz lá em baixo.

Era uma voz tão fraca, tão abafada, que parecia a de um moribundo.

¾ Vamos tratar de ajudá-lo! Espere um pouco!

Os três rapazes, debruçados sobre o valo, viram então mover-se vagarosamente, entre gemidos, a face do velho. As suas longas barbas brancas estavam ensangüentadas...

Não longe do lugar, ouviu-se logo um relincho prolongado. Entre as árvores, viram os rapazes um cavalo, que pastava tranqüilamente.

¾ Que mistério será este? ¾ disse Juvêncio.

¾ Água... tenho... sede... ¾ sussurrou a voz do velho...

¾ Vou descer! ¾ resolveu o sertanejo.

Apertou bem a corda que lhe atava às costas a cabaça, e deixou cair, com cautela, pelo declive, agarrando-se às plantas, apoiando os pés nos troncos secos. Em poucos segundos estava perto do homem e reconheceu que ele estava gravemente ferido. Levantou-lhe a cabeça, encostou-lhe à boca o gargalo da cabaça, e quando o viu saciado, refrescou-lhe a cabeça e a face com um pouco de água. O velho, reanimado, pôde então, em frases entrecortadas, explicar mais ou menos o que lhe acontecera.

Caíra do cavalo, rolara ali, e sentia bem que ia morrer...

¾ Quem é o senhor? ¾ perguntou Juvêncio.

¾ Chamo-me Ricardo. Moro aqui perto, na vila de Jaguarí... Tenho lá a minha família...

¾ O cavalo que está lá em cima é seu?

¾ Deve... ser...

¾ Bem! Tenha paciência, que vou num instante à vila buscar socorros...

e gritou para cima:

¾ Seu Carlos!

¾ Hem!

¾ Veja se pode descer! Desça com cuidado! Preciso do senhor aqui...

¾ De mim também? ¾ perguntou Alfredo.

¾ Não! Espere por mim...

Carlos desceu, sem grande dificuldade. Quando o viu ao seu lado, o rapaz avisou-o do que ia fazer: montaria o cavalo, e iria num momento à vila, enquanto ele, Carlos, ficaria ali, tomando conta do enfermo.

¾ E Alfredo?

¾ Vai comigo. Levo-o na garupa.

¾ Pois sim! ¾ aprovou Carlos ¾ mas não se demore!

¾ É um pulo!

E agarrando-se de novo às plantas e às pedras o sertanejo galgou a borda do valo.

 

 

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