Não se fala nunca de tradução numa linguagem universal, fora de uma língua natural (intraduzível - a traduzir)

On ne parle jamais de la traduction dans un langage universel, hors d’une langue naturelle (intraduisible - à traduire)

Jacques Derrida – 1998

 

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A voz e o fenômeno, 1967

Tradução de Lucy Magalhães, 1994

 

 

Por essência, não pode haver signo sem significação, significante sem significado. É por isso que a tradução tradicional de Bedeutung como significação, embora seja consagrada e quase inevitável, ameaça confundir todo o texto de Husserl e torná-lo ininteligível em sua intenção axial; e, conseqüentemente, tornar ininteligível tudo o que depender dessas primeiras “distinções essenciais”. […] Em alemão, pode-se falar da expressão (Ausdruck) como bedeutsame Zeichen, como faz Husserl; não se pode, sem redundância, traduzir bedeutsame Zeichen por signo significante, o que permite pensar, contra a evidência e contra a intenção de Husserl, que poderia haver signos não significantes. […] Tentaremos, entretanto, propor soluções que ficarão a meio caminho entre o comentário e a tradução. […] Poderíamos, talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, senão traduzir, bedeuten por querer-dizer,* a um só tempo, no sentido em que um sujeito falante, “exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre alguma coisa”, quer dizer, e no sentido em que uma expressão quer dizer;1 e assegurarmo-nos de que a Bedeutung é sempre aquilo que alguém ou um discurso querem dizer: sempre um sentido de discurso, um conteúdo discursivo. (p. 25 - 6)

 

 

*  Em francês vouloir-dire. (N.T.)

1 To mean, meaning, são, para bedeuten, Bedeutung, felizes equivalentes de que não dispomos em francês.

 

 

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Estados-da-alma da psicanálise - O impossível para além da soberana crueldade, 2000

Tradução de Antonio Romane e Isabel Kahn Marin, 2001

 

 

Estar mal [avoir mal], fazer mal [faire mal], querer o mal [vouloir du mal], desejá-lo a alguém [en vouloir à quelqu’un]: eu já imagino o sofrimento do tradutor ou da tradutora que queira respeitar cada um desses três termos, de avoir [ter, haver] até  faire mal [fazer mal], sem falar de vouloir du mal [desejar o mal] para alguém. Tradução aparentemente impossível. A língua francesa me parece ser a única a dar um destino, ou uma tal acolhida à configuração inaudita e absolutamente singular a essas palavras, essas três grandes palavras: avoir [ter, haver], faire [fazer], vouloir [querer, desejar] e mal [mal].

- E eu lá tenho culpa, nessa suposta impossibilidade de traduzi-lo? Nessa impossibilidade de traduzir ao pé da letra?

- Não, claro, faz parte da língua. Tu herdas isso.

- Sim, ao contrário, veja o que eu faço dessa herança. Eu traio sua verdade.*

- O álibi ainda é inevitável? Não será muito tarde?

 

16 de julho de 2000

 

 

* Herdeiros da língua portuguesa, os tradutores acreditam ter traduzido Derrida. Sem álibi. [N. da T.] (p. 92 - 3)

 

 

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Carta a um amigo japonês, 1987

Tradução de Érica Lima, 1998

 

 

Caro Professor Izutsu,

 

(…) Na ocasião de nosso encontro, eu lhe havia prometido algumas reflexões – esquemáticas e preliminares – sobre a palavra “desconstrução”. Tratava-se, em resumo, de prolegômenos a uma possível tradução dessa palavra para o japonês [...]. Pois, se podemos antecipar as dificuldades de tradução (e a questão da desconstrução é também do começo ao fim a questão da tradução e da língua dos conceitos, do corpus conceitual da metafísica dita “ocidental”), não se deveria começar por acreditar, o que seria ingênuo, que a palavra “desconstrução” é adequada, em francês, a alguma significação clara e unívoca. Já existe, em “minha” língua, um problema sombrio de tradução entre o que se pode ter em vista, aqui ou ali, sob essa palavra, e o próprio uso, o recurso dessa palavra. Já está claro, de antemão, que as coisas mudam de um contexto a outro, mesmo em francês. [...]

Percebo, caro amigo, que, ao tentar esclarecer uma palavra em vista de ajudar a tradução, não faço mais que multiplicar, com isso mesmo, as dificuldades: a impossível “tarefa do tradutor” (Benjamin) - eis o que quer dizer também “desconstrução”. (p. 19 e 23)

 

 

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Mal de Arquivo - Uma Impressão Freudiana, 1995

Tradução de Cláudia de Moraes Rego, 2001

 

 

47. No final desta conferência, não sem ironia, imagino, com tanta profundeza quanto espanto, mas, como sempre, com uma intratável lucidez, Geoffrey Bennington observou que, ao sublinhar e portanto pôr em prática uma tal intraduzibilidade, eu me arriscava a repetir o gesto que parecia estar pondo em questão no outro, isto é, a afirmação do único ou do idioma. 

Para resumir aqui a resposta que dei, direi rapidamente três coisas:

1. Não falei de intraduzibilidade ou de idiomaticidade absolutas, mas de uma maior economia (tratava-se para mim de dizer em poucas palavras francesas, neste caso, nessa ocorrência, o que se pode traduzir, de todo jeito, em toda língua, com menos gasto); o que basta para mudar o sentido político deste gesto.

2. Acredito que a afirmação irredutível e necessária de uma certa idiomaticidade, e de uma certa unicidade, como de uma certa unidade diferante, isto é, impura - e eu queria demonstrá-lo na prática. O que fazemos em seguida, com esta afirmação e com esta impureza, é a própria política.

3. Digamos, enfim, que quis usar, outro gesto político, de meu próprio direito à ironia e, expondo-me assim na minha língua, dar um exemplo desta necessidade fatal, assim como de seus riscos. (p. 106)

 

 

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Duas Palavras por Joyce, 1987

Tradução de Regina Grisse de Agostino, 1992

 

 

O que acontece quando tentamos traduzir he war?

Nada, tudo.

[...]

Em duas palavras, cada uma das quais a cabeça, o capital, ou, se preferirem, o membro principal da frase: o sujeito, o verbo.

Imaginem as máquinas de traduzir mais poderosas e aperfeiçoadas, as equipes de traduções mais competentes. Mesmo seu sucesso só pode ser um fracasso. Ainda que, numa hipótese inverossímil, elas tivessem traduzido tudo, fracassariam em traduzir a multiplicidade das línguas – e em conservar o que há de estrangeiro na tradução. Elas apagariam este simples fato: uma multiplicidade de idiomas, não apenas de sentido, mas de idiomas, deve ter estruturado este acontecimento da escrita, que agora dita a lei. Ele terá ditado a lei em relação a si próprio. Era, estava escrito ao mesmo tempo em inglês e em alemão. Duas palavras em uma, war, e portanto um duplo substantivo, um duplo verbo, um substantivo e um verbo que foram no começo. War é um substantivo inglês, um verbo alemão, assemelha-se a um adjetivo nesta última língua (wahr) e o que há de verdadeiro nesta multiplicidade ocasiona o retorno, desde os atributos – o verbo também é um atributo: o que é ele? aquele que foi – em direção ao sujeito que se encontra, ele, he, dividido desde a origem. (p. 32)

 

 

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Torres de Babel, 1987-1998

Tradução de Junia Barreto, 2002

 

 

Babel: antes de tudo um nome próprio, seja. Mas quando dizemos Babel, hoje, sabemos o que nomeamos? Sabemos quem nomeamos? Consideremos a sobrevida de um texto legado, a narrativa ou o mito da torre de Babel: ele não forma uma figura em meio a outras. Falando ao menos da inadequação de uma língua a outra, de um lugar na enciclopédia a outro, da linguagem a ela mesma e ao sentido, ele também fala da necessidade da figuração, do mito, dos tropos, das circunlocuções [des tours], da tradução inadequada para suprir aquilo que a multiplicidade nos interdiz. Nesse sentido, ele seria o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a narrativa da narrativa, a tradução da tradução. Ele não seria a única estrutura a se aprofundar assim, mas o faria à sua maneira (ela mesma por pouco intraduzível, como um nome próprio) e seria necessário salvar seu idioma. (p. 11)

 

 

Seleção de textos: Paulo Ottoni

 

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