A TRADUZIR: différance, diferância, diferência, diferança, diferença, difer-ença, diferensa, diferænça, differença,  diferça,  dipherença ...

 

 

A partir da conferência La Différance, proferida por Jacques Derrida em 27 de janeiro de 1968, na Sociedade Francesa de Filosofia, a différance passou a ser uma espécie de “emblema da desconstrução”, proporcionando uma grande discussão sobre sua escrita e também sobre a tradução deste neografismo para outras línguas, mas principalmente para o português. Desde as primeiras traduções para o português desta conferência e de outros textos e livros nos quais Derrida fala sobre a différance, ela tem gerado uma espécie de polêmica que reflete de modo peculiar o papel da tradução como lugar privilegiado para se refletir sobre a linguagem e a reciprocidade entre as línguas.  Ao analisar a maneira como introduções, prefácios, posfácios, notas das traduções e dos editores em textos e livros publicados em português (europeu e brasileiro) referem-se entre si, posso afirmar que a discussão da tradução da différance releva grande parte das questões da desconstrução.

No Glossário de Derrida, elaborado pelos alunos do Departamento de Letras da PUC/RIO e supervisionado por Silviano Santiago (1976, Ed. Francisco Alves), no verbete différance lemos:

 

Neo-grafismo produzido a partir da introdução da letra a na escrita da palavra différence. A différance não é “nem um conceito, nem uma palavra”, [...]. Esta “discreta intervenção gráfica” (a em lugar do e) será significativa no decorrer de um questionamento da tradição fonocêntrica, [...] o a de différance propõe-se como  uma “marca muda”, se escreve ou se lê mas não se ouve [...].(p. 22 - 4)

 

A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas, de 1967 (Ed. Martins Fontes, S/D), publicado ainda no final dos anos sessenta, pode ser considerado o primeiro texto de Derrida traduzido para o português. Na página 122, na palavra “diferença”, o tradutor Antônio Ramos Rosa indica a nota de número 2, que diz simplesmente: “No original, différance”.

Mas, é a partir da tradução de A escritura e a diferença de 1971 (Ed. Perspectiva), por Maria Beatriz Nizza da Silva, que essa polêmica vai revelar a importância de se pensar a questão da contaminação entre as línguas e o questionamento das suas fronteiras. A tradutora simplesmente afirma em nota: Sobre différence e différance, que traduzimos por diferência, ver o artigo de Jacques Derrida La différance, em Théorie d’ensemble, ed. du Seuil, 1968 (p. 72). Em Gramatologia (1973, Ed. Perspectiva) os tradutores, Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, adotaram a mesma tradução de Maria Beatriz e afirmam:

 

O autor cria o termo différance, contrastando-o com différence (“diferença”) e justificando o neologismo no texto já citado, publicado em Théorie d’ensemble. Mantivemos a tradução diferência, já utilizada em A escritura e a diferença [...]. (p. 29)

 

Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães, tradutores Portugueses de Margens da Filosofia (Ed. Rés, S/D. Os mesmos tradutores da edição brasileira de 1991, Ed. Papirus ), no qual esta conferência foi publicada, fazem uma nota já a partir do título do texto A diferença. Eles comentam:

 

O neografismo différance desencadeia em português um naturalmente complexo problema de tradução. O jogo semelhança fónica/alteridade gráfica instaurado pela troca do e “legítimo” (différence) pelo a transgressor não é para nós, como o é em francês, (in-)audível e, por isso, igualmente impossível (o que para Derrida, pensando em francês, é decisivo) que apenas escrito o possamos apreender. Outras traduções que conhecemos tentaram já agrafar em português a “silenciosa” mas fundamental extensão filosófica da “palavra” différance [Posições, A escritura e a diferença e Gramatologia]: em Portugal optou-se por diferância, no Brasil, por diferência.  [...] Contudo, ao escrevermos diferança, talvez não nos limitamos a ceder cegamente às exigências de um texto que a nossa língua não poderia “controlar”. (p. 27 - 8)

 

Neste comentário podemos verificar que, de certo modo, os tradutores estão afetados pelo jogo da différance, como propõe Derrida.

A tradutora portuguesa de Posições (1975, Ed. Plátano), Maria Margarida C. Calvente Barahone, faz a seguinte nota: em francês, “différance” (diferância) tem pronúncia semelhante a “différence” (diferença) (p.23). A criação de uma outra opção está simplesmente justificada a partir da fonética. Esta explicação, que parte da substituição do e pelo a, é, como vimos, somente uma das características deste neografismo.

No texto Semiologia e Gramatologia (Ensaios de Semiótica, 1976, Ed. Eldorado), o tradutor Luiz Costa Lima comenta em sua nota:

 

Para marcar o conceito que intenta produzir, o autor fala em différance, distinguindo-o da forma lexicalizada corrente différence. Na impossibilidade de estabelecer-se, em português, a distinção, sempre grifaremos a palavra quando tratar de différance [...]. (cf. p.14, destaque meu).

 

No livro A farmácia de Platão (1991, Ed.Iluminuras), o tradutor Rogério da Costa reedita e reafirma em sua nota (cf. p.74) a tradução proposta em A escritura e a diferença e em Gramatologia: diferência.

Anamaria Skinner, no livro Espectros de Marx (1994, Relume Dumará), faz um breve resumo das traduções já existentes e comenta:

 

Différance foi traduzida como “diferência” [...] em A escritura e a diferença, e mantida [...], na Gramatologia [...]; como “diferância”, em Portugal [Posições]; como “diferança” [...] em Margens da Filosofia [...], e ainda grafada em francês, em nossa obra coletiva, Glossário de Derrida [...]. Todas essas foram tentativas de [...] reproduzir em português este “neografismo” que, em francês, se lê ou se escreve, mas não se ouve. Aqui, optamos pela grafia diferança, pois, ao que parece, assim se preserva uma maior identidade gráfica e fônica entre diferença e diferança, trocando-se, simplesmente, como em francês, o e pelo a. (p. 50)

 

Na edição brasileira de A voz e o fenômeno (1994, Ed. Jorge Zahar), a tradutora Lucy Magalhães traduz différance por diferência, sem nenhuma nota explicativa. Na edição portuguesa, de 1996 (Edições 70), os tradutores Maria José Semião e Carlos Aboim de Brito optam também pela diferência, mas colocam-na entre aspas e, em seguida, a différance aparece entre parênteses. Na sua primeira ocorrência, o editor faz a seguinte nota:

 

Conceito de amplo significado introduzido por J. Derrida; neste contexto, a différance (e não différence), que se traduz por diferência, “precede” - se assim se pode dizer - a presença e a presença de si do sujeito consciente que só constitui diferindo-se. (p. 83)

 

Após esta explicação, nas ocorrências seguintes são retiradas as aspas, mas, em alguns casos, différance está entre parênteses; e, em outros, até o final do livro, temos somente diferência em itálico. Na edição brasileira, diferência não tem nenhuma modificação gráfica, o que sugere que esta palavra “pertence” ao sistema lingüístico do português. É o contrário do que ocorre na edição portuguesa, que, de certo modo, sugere uma certa preocupação com a tradução, já que ao longo do livro sua grafia não está padronizada. É importante observar que os tradutores não optaram por nenhuma das duas traduções já existentes em Portugal: diferância e diferança, mas pela primeira tradução brasileira, como o fez também Lucy Magalhães.

Nícia Adan Bonatti, a tradutora de Salvo o nome (1995, Ed. Papirus), faz numa nota o seguinte comentário:

 

A palavra différance foi deixada em francês por constituir-se em um neografismo proposto por Derrida, que pretende, assim, questionar a tradição fonocêntrica, dominante desde Platão até os estudos lingüísticos de Saussure [...]. Existe uma outra tradução [A escritura e a diferença e Gramatologia] que adota a grafia “diferência” [...]. Não concordamos com essa tradução, pois há uma alteração sonora bastante perceptível na palavra, o que contradiz o questionamento proposto por Derrida; poderíamos, entretanto, pensar em um outro neografismo, “diferensa”, que tem o mesmo som da grafia normal. (p.40, destaque meu)

 

Entretanto, essa sua opção não é efetivada no texto: a tradutora manteve a grafia différance. É importante ressaltar que a tradutora, ao discordar da opção diferência, partindo apenas da sonoridade, e propor outra, fazendo uma espécie de analogia entre a sonoridade do sistema lingüístico do português e o do francês, pode estar deixando de lado a importância que estas outras opções representam no “jogo da desconstrução” proposto por Derrida. Ou seja, estas outras opções, incluindo a sugestão de Bonatti, encenam justamente a complexidade de se traduzir este neografismo, para o português, a partir apenas das regras sonoras pertencentes ao sistema lingüístico do francês.

A tradutora de O outro cabo (1995, Ed. Universidade de Coimbra), Fernanda Bernardo, afirma, em uma nota na introdução do livro, ao fazer referência à différance:

 

Para dar conta do tom e do timbre do a mudo da différance, isto é, para marcar o rastro como apagamento, retraimento ou rasura, grafamos em português difer-ença, sublinhando com o traço de união justamente o rastro como apagamento, como o diferir/divergir da difer-ença, porque, como escreve Derrida “entre trait unaire et effaçabilité il n’y a pas oppositions”. O traço liga antes do ser. À semelhança do a mudo, este signo gráfico diz-se à vista, é legível, mas desaparece na audição, doando-se assim como uma tonalidade inencontrável, que diz a distância que não aproxima, que não apropria, mas tece toda a proximidade (im)possível e toda a ex-apropriação. (p. 5)

 

Esta ex-apropriação é uma “maneira de experimentar a estranheza ou a impropriedade ou a alteridade no interior de nossa língua” (cf. Derrida, Moscou aller-retour, p. 121). Podemos dizer que a tradutora produz essa estranheza na sua própria língua, e, num jogo (im)possível, difer-ença  estabelece outras regras a partir da escritura derridiana.

No texto Circonfissão (do Livro Jacques Derrida, 1996, Ed. Jorge Zahar) Anamaria Skinner traduz o trecho do período 19 (cf. p. 76) da seguinte maneira: [...] pelo que precede e cerca em preferência, referência, transferência, diferensa*, assim transportei-me [...].  Esse asterisco remete a uma nota dos revisores da tradução (Márcio Gonçalves e Caio Mário Ribeiro de Meira) que diz simplesmente: Différance no original. (p. 78). Essa tradução, que foi sugestão da tradutora de Salvo o nome, passa, agora, a fazer parte do jogo de tradução da différance.

Uma outra possibilidade de tradução foi sugerida por André Rangel Rios no seu texto A DIFERÆNÇA. Segundo ele: Se différance troca um e por um a sem mudar a sonoridade da palavra, diferænça acrescenta um a formando um latino que, dependendo da pronúncia que se aceite, poderá não estar também afetando a sonoridade (cf. Em torno de Jacques Derrida, orgs: Evando Nascimento e Paula Glenadel, Ed.7 Letras, p. 77).

Para justificar a ocorrência da différance grafada sem nenhuma modificação, Carlos Leone, na tradução De um tom apocalíptico adoptado há pouco em Filosofia (1997, cf. p. 71), comenta: Termo nuclear do jargão filosófico derridiano. Cf. “La Différance”, in Marges de la Philosophie, Paris, Minuit, 1972 (trad. port. Ed. Rés, Porto). Essa nota evidencia a importância de se manter différance sem qualquer alteração gráfica.

Na tradução brasileira de Posições (2001, Ed. Autêntica) Tomaz Tadeu da Silva, no final do livro, relembra, em parte, essa polêmica iniciada há mais de trinta anos:

 

O termo inventado por Derrida, différance, fica sem tradução. Entre as várias traduções propostas, temos: diferância (tradução portuguesa de Posições), diferência (tradução brasileira de Gramatologia e A escritura e a diferença), diferança (tradução portuguesa de As margens da filosofia, ver nota 2, p.33, da edição brasileira, publicada pela Editora Papirus) e até mesmo diferænça (Rios, 2000) (cf. Nascimento, p.140). (p. 123)

 

Gostaria também de ressaltar que, durante o debate realizado após a apresentação deste trabalho na Universidade de São Paulo, em 11 de setembro de 1998, por ocasião do VII Encontro Nacional de Tradutores, outras três alternativas de tradução me foram sugeridas: differença  (a partir do verbo differre);  diferça  e  dipherença. Todas essas traduções confirmam ainda mais a disseminação deste jogo da différance. Assim, podemos supor, após uma longa trajetória tradutória, que a différance sempre pertenceu, sem pertencer, à nossa língua, ao nosso idioma.   

A fenda, o talho que se abre, a partir de um simples corte na escrita da différ/nce, para o implante da letra a, não cicatriza. A proliferação de sentido não se estanca, esvai-se indefinidamente. Esse a da diferença, portanto, não se ouve, permanece silencioso, secreto e discreto como um túmulo: oikesis (cf. Derrida, La différance). No corpo da língua, é a sua fonte de sobrevivência. Desse modo, na tentativa de se estabelecer o mesmo jogo - o a no lugar do e - diferança, diferência, diferância, difer-ença... passam a ser reguladas pela escritura derridiana que permite a disseminação de múltiplas opções, gerando, assim, o que considero efeitos de tradução da différance no jogo da desconstrução. Essa disseminação é um acontecimento que encena, de modo magistral, ao mesmo tempo, o próprio jogo da différance, (con)fundindo desconstrução e tradução, traduzindo e não traduzindo  différance.

 

[Este texto é uma versão resumida e modificada da comunicação: O tradutor de Jacques Derrida: double bind e dupla tradução, apresentada no V Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada realizado na Universidade Federal no Rio Grande do Sul - Porto Alegre no dia 3 de setembro de 1998. Numa versão modificada, essa comunicação foi apresentada na mesa redonda: Tradução e Desconstrução no VII Encontro Nacional de Tradutores e I Encontro Internacional de Tradutores, realizado na Universidade de São Paulo no dia 11 de setembro de 1998. Posteriormente foi publicada em ALFA - Revista de Lingüística - número 44/Tradução, desconstrução e pós-modernidade - UNESP - São Paulo, 2000, pp. 45 - 58.]

 

Paulo Ottoni

 

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