A vertigem do pós-humano se manifesta quando tentamos montar uma “caixa de ferramentas” para entender a miríade de novas  entidades (coisas, bichos, ideias) que vêm ao mundo todos os dias por meio de práticas institucionalizadas, como a engenharia genética e a indústria da inteligência artificial, ou semi ou não institucionalizadas, como o biohacking e o movimento trans-humanista. Essa caixa não fecha, aparentemente, não só porque faltam mecanismos eficazes de diálogo interdisciplinar, por mais inter ou transdisciplinar que sejam as novas entidades e práticas, mas porque, globalmente, trata-se de lidar com a concretização empírica da ruptura da dicotomia natureza-cultura tal qual discutida, do ponto de vista conceitual, desde os primeiros escritos de Bruno Latour [1], Donna Haraway [2] e outros autores preocupados com o problema da objetificação dos seres culturais e da suberificação dos seres naturais. Isso na contramão do realismo-naturalismo científico que sustenta a proliferação de híbridos natureza-cultura que nos circunda, a qual nem as ciências duras, nem as humanas, conseguem “dominar”.

Os fenômenos que interessam a uma ótica pós-humanista são, portanto, aqueles em que imperam as ambiguidades natureza-cultura, máquina-gente, signo-matéria, texto-contexto etc. Fechar essa ambiguidade significa “matar” o bicho/coisa/ideia que se quer estudar. Aceitá-la como sendo a própria “natureza” do bicho/coisa/ideia, por outro lado, implica abandonar a ilusão de que estudando um dos dois caminhos ou vozes constitutivas dessa ambiguidade, revelaremos o outro, e vice-versa; em lugar disso, é preciso estudar, justamente, como essa ambiguidade se sustenta para, só então, talvez, desenvolver ferramentas e heurísticas para lidar com as repercussões práticas dessas agências ambíguas  na economia, na política, na ética, nas línguas, na saúde etc. Isso equivale a tentar desvendar como o bicho/coisa/ideia passa de um lado para o outro seu significado e do seu status ontológico ambíguos, sem, na verdade, sair de um mesmo  e único plano, como numa fita de Moebius, para ser quem é. O que não equivale a defini-lo como sendo isso ou aquilo. E, já que ambiguidade é uma questão tanto do sentido quanto do ser, isso implica entender como se pode gerar matéria ambígua por meio de signos, e signos ambíguos a partir da matéria.

Uma start up de grande sucesso acaba de se estabelecer no mercado alimentício fabricando, entre outras coisas, maionese artificial [3]. Não se trata de imitar a maionese tradicional com sabores e texturas de outra coisa, como se faz, por exemplo, com gordura vegetal hidrogenada em relação à manteiga (laticínio). Trata-se de buscar, em outras fontes biológicas, as moléculas orgânicas que também constituem a maionese tradicional/natural e, combinando tais moléculas por meio de certas técnicas e certos “aliados” químicos, gerar uma maionese legal, do ponto de vista material, mas não necessariamente legítima, do ponto de vista simbólico. Daí a escolha da marca NotMayo para designá-la.

Em todos os quesitos sensíveis (aroma, textura, cor, sabor etc.), trata-se da mesma entidade material, apenas não “cultivada”, mas produto de um “remix” totalmente “sem costura”, do ponto de vista/olfato/tato/paladar do comensal. Trazida da natureza por um processo cultural/técnico, como um fantasma capturado pelos Ghost Busters, a NotMayo é um significante cuja materialidade é idêntica, ou pelo menos tem uma performance idêntica, perante aos sentidos, à da maionese, mas cujo significado, quando se tenta reintroduzi-la na cultura, não pode ser idêntico ao significado “natural”, isto é, historicizado, da mistura de ovos, azeite e condimentos emulsionada mecanicamente.

É próprio das culturas humanas utilizar o simbólico, classificações simbólicas, por exemplo, para atribuir um status não-natural (ou sobrenatural) aos alimentos em potencial. Entre os índios Jivaro (amazônia peruana), por exemplo, a anta não pode ser comida porque é um ser-humano reencarnado [4]. Mas a comida artificial inaugura para nós, como todas as artificialidades, algo além de um rearranjo das categorias naturais que legitime nossos apetites (inclusive os intelectuais), nossa gula ou vontade de saber. Ela  dá espaço a uma linguagem que está “fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura” (FOUCAULT, 1988, p. 12) [5]. Ela desarranja justamente a natureza como categoria distinta da cultura (técnica, artifício).

No Japão, um evento biohacker promovido recentemente convida os participantes para um workshop de “leitura e escrita de DNA”. Primeiro, por meio de técnicas de laboratório e processos de análise bioquímica auxiliados por computador,  faz-se o trabalho de desmaterialização e transformação da molécula do DNA em um signo: uma longa sequência de símbolos que representam bases hidrogenadas que, como na sintaxe de uma língua natural, estabelecem, pela ordem específica em que aparecem, um significado específico. Esse texto precede a instanciação fenotípica de uma entidade biológica no mundo, da mesma forma que sintagmas e orações enredadas numa estrutura textual precedem a instanciação dos enunciados como textos como entidades “vivas”, em contextos reais de fala.

Ler essa sequência de bases, para os devidamente letrados nisso, significa isolar subunidades semânticas que podem ser recombinadas entre si para criar novos seres-textos no mundo, tal qual novos textos vêm ao mundo todos os dias quando fixados em algum tipo de substrato material (a voz, o papel, a tela, a escultura etc.) para propor a definição de seres metafísicos que não se pode bater no liquidificador até que virem moléculas de DNA. E tal como itens lexicais e sintagmas, sequências de bases hidrogenadas tem o mesmo “significado fenotípico” em qualquer lugar, a qualquer tempo. Porém a instanciação do fenótipo em corpo biológico está sujeita ao contexto, mutações, acidentes, doenças auto-imunes etc. Haveria, de certa forma, um genoma langue e um genoma parole, e não por acaso, mas porque o signo não se encarna sem custo, assim como a carne não se abstrai de si mesma sem trabalho semiótico.

Assim, o discurso/a linguagem marcam a ambiguidade da natureza enquanto corpo orgânico e organização de um “composto”. Quando o composto precisa ser inserido na cultura, num mesmo nicho ou campo semântico em que o corpo já estava, é ao signo que se demanda um fechamento: é maionese ou não-maionese. Os dois, não pode. E, no entanto, os dois disputam mercado, oferecem algum tipo de nutrição, têm algum tipo de impacto ambiental, amoldam-se a diferentes ideologias alimentares e assim por diante, clamando por uma caixa de ferramentas judiciais, médicas, políticas etc. que ainda não temos. Já o ente biológico processado até virar texto acomoda a ambiguidade do DNA enquanto signo e enquanto molécula (matéria, substância).

Não podemos desmembrar bichos e plantas e remixá-los ao nosso bel prazer, exceto em alguns poucos casos como transplantes de órgãos ou desenvolvimento de “raças” por “seleção genética” via procriação “natural”. Ainda assim, nesses casos, grande parte dos resultados concretos/materiais é estéril ou contraditória, cheia de “rejeições” internas ou vazia de descendência. Um “doente transplantado” é um hipônimo “pessoa”, mas também o é de “doente”. Mas sequencias de bases hidrogenadas são bichos/pessoas/plantas transformadas em signos que podem, sim, ser remixados, e, ainda sim, manter seu status ontológico de futura(s) pessoa, bicho ou planta. E por isso podem ser moralizados, judicializados, comercializados etc., mas como fazê-lo se não se define o que, afinal, eles são, natureza ou cultura? Alguma violência, simbólica ou física, há de ser usada, a menos que se repense o que é moral, justiça, comércio etc. num mundo pós-humano.

De certa forma, podemos dizer que o que caracteriza nosso tempo é a constatação empírica da “desdicotomização” entre natureza e cultura já teorizada por Bruno Latour, Donna Harraway e outros tantos. É como se, tal qual os astrônomos que foram a Sobral, no interior do Ceará, em 1905, para fotografar um eclipse em busca da comprovação da Teoria da Relatividade de Einstein, estivéssemos nós agora em posição de observar, empiricamente, a proposta de Latour, Harraway e outros (des)construtivistas radicais, em coisas tão banais como os fantasmas que comemos e os seres vivos que escrevemos. A diferença é que a Teoria da Relatividade serve, justamente, para desambiguar todas as medidas que alguém possa tomar de qualquer coisa que aconteça em qualquer parte do universo reduzindo-a, por transformações matemáticas, a um mesmo referencial fixo, fato que o próprio Bruno Latour demonstrou [6], ao passo que os (des)construtivistas/relativistas radicais vêm clamando, há pelo menos trinta anos, que o real é ambíguo, o material é linguagem, a linguagem é ontologia e nada no universo se submete a um único ponto de vista.

Nossas ferramentas, portanto, precisam ser outras. A mais urgente delas parece ser, justamente, formas de diálogo interdisciplinar verdadeiramente engajadas com a realidade, e democráticas no seu funcionamento, que se instaurem no espaço do pós-humanismo, o espaço, justamente, acadêmico e político inaugurado pela aceitação dessa ambiguidade constitutiva do nosso tempo e dos nossos seres-fazeres-significares.

[1] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos : ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

[2] HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late 20th Century. In: HARAWAY, D. J. Simians, cyborgs, and women : the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. p. 149–181.

[3] ZOGBI, P. NotCo, financiada por Jeff Bezos, traz aos Brasil maionese feita com inteligência artificial. Infomoney, 22 mar. 2019.

[4] ROSS, Eric Barry, et al. Food Taboos, Diet, and Hunting Strategy: The Adaptation to Animals in Amazon Cultural Ecology. Current Anthropology, vol. 19, no. 1, 1978, pp. 1–36 [5] ???

[5] FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Eduções Graal, 1988.

[6] LATOUR, Bruno. A Relativistic Account of Einstein’s Relativity. Social Studies of Science, v. 18, n. 1, p. 3–44, Fev 1988.