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Sistema e Feedback na obra de Norbert Wiener

Ilustração de Sir John Tenniel’s, colorida posteriormente, para o livro Alice no país das Maravilhas

“Modificamos tão radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modificar-nos a nós mesmos […] O progresso não só impõe novas possibilidades para o futuro como também novas restrições. Parece quase como se o próprio progresso e a nossa luta contra o aumento de entropia devessem terminar no caminho descendente do qual estamos tentando escapar” [1] (p. 46)


Norbert Wiener foi um dos primeiros acadêmicos a discutir e conceituar a cibernética, aqui focalizada a partir de seu livro “Cibernética e Sociedade: o Uso Humano de Seres Humanos”, editado no Brasil em 1954. Para o autor, “o propósito da cibernética é o de desenvolver uma linguagem técnica que nos capacite, de fato, a haver-nos com o problema do controle e da comunicação em geral” [1] (p. 17). A comunicação, em sua visão, só poderia ser compreendida a partir dos meios (ou facilidades) de comunicação, bem como o estudo das mensagens que uma sociedade dispõe. A partir das perspectivas teóricas propostas pelo matemático e filósofo citado, proponho uma breve discussão em relação ao sistema e ao feedback (ou retroalimentação), tão caros para a compreensão da cibernética e, por conseguinte, controle e linguagem.

Na visão de Wiener, os sistemas, orgânicos ou autômatos, dispõem de recursos que retroalimentam os processos que entram em desequilíbrio, trazendo informação contextual que permita reajustes internos, para que a entropia não aumente de forma demasiada e, com isso, o controle do comportamento do sistema em relação a uma meta definida não se perca por completo. As retroalimentações (ou feedbacks) ­também podem ser compreendidos como parte de um mecanismo de aprendizagem. Wiener não faz distinção entre ordens (feedback) dadas a uma máquina de ordens dadas a uma pessoa; a única diferença se refere às formas de comunicação e os tipos de mensagens, informações e linguagens (verbal, química, elétrica etc.) que serão trocadas para que o sistema se regule continuamente. Ou seja, o processo de ajuste às contingências do meio ambiente, sempre em interação com a parte interna via feedback, faz com que o sistema, seja ele qual for, recobre seu equilíbrio.

Nesta obra, em particular, Wiener pretende pensar sociedades como sistemas cibernéticos, nas quais o reequilíbrio pode se dar por meio do esgotamento e a saturação de recursos naturais, como no caso das sociedades européias de 1500 que buscavam novas terras. O autor faz analogia entre a forma de exploração de recursos, que pareciam inexauríveis à época, à passagem do livro “Alice no país das maravilhas” [2], quando o chá e o bolo do Chapeleiro Maluco e da Lebre de Março acabavam, eles seguiam para o próximo lugar vazio. Quando Alice indaga ao Chapeleiro o que aconteceria quando eles voltassem ao local inicial, já sem bolo ou chá, os personagens mudam de assunto sem dar qualquer explicação. Desde a metade do século passado, quando o livro foi escrito [1], já se sabia da finitude de nossos recursos, tornando o reequilíbrio de sociedades que se apoiam no domínio da natureza, paradoxalmente, escravos a essa mesma natureza e do aperfeiçoamento técnico das nossas práticas e formas de viver e ser no mundo. 

Nesse sentido, Wiener também argumenta que o fato de um sistema de determinado tipo estar em equilíbrio nem sempre implica que todos os sistemas daquela classe se organizam da mesma maneira. Exemplo disso são, para o mesmo autor, os diferentes padrões de comunicação e organização social de sociedades hierárquicas e engessantes, exemplificadas pelas estratificações por castas na Índia, em contraste com formas mais horizontais de compartilhamento de poder, como nas comunidades inuítes ou iupiques [sic], cuja base se sustenta no desejo de sobreviver (p. 50).

Para ilustrar o conceito de feedback (ou retroalimentação), como um método de auto-controle de sistemas, orgânicos ou não, complexos ou não, tomarei o tradicional (e fracassado) sistema escolar de ensino de língua inglesa em escolas públicas no Brasil [3]. Quando, no quinto ano do ensino fundamental, o alunado se depara com a disciplina de língua inglesa, é comum que comece por conteúdos tidos como básicos, como o verbo to be. Os alunos, em geral, decoram a flexão verbal para uso dos verbos ser e estar em língua inglesa e fazem provas escritas sobre regras gramaticais. O uso correto do verbo to be é a meta do aprendiz enquanto sistema, os livros e a fala da professora o input e a prova, ou melhor, a nota da prova, um tipo de feedback. Ainda que os discentes sejam bem sucedidos nessa concepção, ou seja, tirem uma nota que informa ao sistema que a direção em que agiu estava certa e organizada de modo equilibrado, isso conta como aprender? Wiener [1] ressalta que saber conteúdos formais de uma disciplina não é mesmo que ter interesse intelectual por aprender algo (p. 130). Em outras palavras, ainda que haja comunicação e mecanismos de retroalimentação que “funcionem” de forma eficaz para prestígio social, por meio da aprovação na disciplina, em termos de aprendizagem de língua inglesa concebida como algo além do que perseguir uma meta de desempenho formal, “a qualidade e o valor comunicativo da mensagem caem como um peão de prumo” (p. 132).

Samuel Butler – Erewhon (1873)

A retroalimentação também poderá encontrar dificuldades quando o aspecto da linguagem, principalmente no item semântico, encontrar problemas de tradução e ou compreensão. Essas dificuldades se dão, sobretudo, devido aos repertórios linguísticos discursivos disponíveis que medeiam as realidades experienciadas por quem fala cada uma das línguas. Para Wiener, diferentes percepções ou compreensões sobre um mesmo item linguístico configuram-se como um problema para o bom funcionamento de sistemas e a eficácia da retroalimentação. E são justamente essas nuances das linguagens que fazem com que a consciência e a mente sejam amplamente debatidas quando estudiosos discutem o conceito de aprendizagem (ou a retroalimentação) em máquinas de inteligência artificial (IA) [4]. O que autor destaca em relação aos autômatos de alta complexidade, como as IA, é o entendimento de que “[…] o perigo da máquina para a sociedade não provém da máquina em si, mas daquilo que o homem faz dela” (p. 180) fazendo referência a obra de Samuel Butler [5] – Erewhon – nowhere ao contrário, que imaginava como as máquinas inevitavelmente dominariam os seres humanos como seres secundários.

Embora Wiener defina aprendizagem como o tipo de condicionamento operante induzido no sistema por processos de retroalimentação, indiscriminadamente, em máquinas e seres humanos, hoje sabemos que há distinções relevantes entre ações resultantes de um organismo vivo e cognitivamente consciente e a resposta algorítmica de uma máquina a inputs diferentes. Isso implica que o dilema entre aprender para passar na prova e aprender porque se tem interesse em aprender atravessa também as definições de máquina e de humano para além da sua subordinação ao conceito de sistema cibernético, nos levando a reflexões pertinentes em relação a subjetividade em contextos de ensino e aprendizagem, como é o caso de meu projeto de doutorado em andamento, que busca, dentre outras coisas, discutir e analisar como práticas formais e informais de construção de conhecimento, sobretudo para práticas letradas no uso de TDIC, afetam e são afetados na criação de subjetividades.  

O autor contribuiu grandemente para conceituação da cibernética ˗ em sua primeira onda ˗ bem como discussões filosóficas importantes para o pós-segunda guerra mundial e a utilização social pervasiva de autômatos, sistemas e feedback; no entanto, no que tange às reflexões acerca da linguagem e consciência, a obra de Wiener não traz  questionamentos profundos, tão pouco ampliação ou diferenciação entre organismos ou máquinas conscientes e não conscientes em relação às implicações da consciência para linguagens, sistemas e feedbacks. 

[1] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.

[2] Carroll, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. New York: Macmillan, 1920

[3] VILAÇO, F. L.; GRANDE, G. C. Língua Inglesa na BNCC. In: CÁSSIO, F.; CATELLI JR., R. (Eds.). . Educação é a base? 23 educadores discutem a BNCC. 1. ed. São Paulo, SP: Ação Educativa, 2019. p. 145–157.

[4] HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, Ill: University of Chicago Press, 1999.

[5] BUTLER, S. Erewhon Over the range. United Kingdom: Trubner, 1892. 

A concepção de linguagem em Cibernética e Sociedade: o uso humano dos seres humanos, de Norbert Wiener – PARTE 1/3

“Um computador é capaz de pensar?”, continuamos nos perguntado, quase 70 anos após o famoso jogo da imitação de Alan Turing [1], e continuam, como sabemos, os dilemas que estão na base da pergunta: mente e cérebro são “substâncias distintas”? O que é, afinal a consciência? É possível pensá-la como algo independente de um corpo biológico? [2]

Concepção de linguagem da Linguística Clássica

O jogo da imitação, mais adiante batizado de teste de Turing, como sabemos, era baseado numa espécie de conversa, bastante simplificada, composta de perguntas e respostas feitas a um interlocutor que poderia ser um ser humano ou um computador (inicialmente, no artigo de Turing, um homem ou uma mulher). Assim, de início, a linguagem é vista, entre os precursores  das ciências da  computação, não como uma prática social, gestos de significação ideologicamente saturados ou negociação de sentidos/jogos de linguagem entre sujeitos situados, mas uma sequencia de correspondências entre palavras que solicitam fatos e outras palavras que os transmitem, isto é, um ato comunicativo, de troca de mensagens, não um ato de fala, de enunciação ou de cognição situada.

Humani Victus Instrumenta – Autor desconhecido (cerca de 1570)

Por isso, também, o estudioso da linguagem  têm dificuldade em conceber linguagens de computador como linguagens (seriam códigos, já que não possuem dupla articulação, nem podem gerar um numero infinito de sentenças com sentido a partir de um numero finito de elementos léxico-sintáticos) ou inteligência artificial como inteligência (já que inteligência, no caso do sujeito da linguagem, pressupõe consciência sobre efeitos de sentido devidos às suas escolhas de palavras  que englobam o que possa mudar no mundo a partir daí) ou mesmo aprendizagem de máquina como aprendizagem (porque adquirir ou aprender uma língua não é sobre imitar comportamentos certos com a frequência correta em situações corretas, apenas, mas ativar estruturas plásticas da mente-cérebro  permitirão criar, com compreensão, enunciados que nunca poderiam ter sido escutados, e portanto imitados,  antes).

O modelo matemáticao da comunicação do matemático-engenheiro-criptógrafo Claude Shannon

Não obstantes essas constatações, observamos hoje, a todo momento, pessoas e computadores “conversando” nas mais variadas situações, voluntariamente ou de maneira forçosa, como com as famosas URAs (Unidade de Resposta Audível) dos serviços de atendimento telefonônico,  num jogo em que o humano projeta  sobre a troca de símbolos uma coerência linguística que o computador não alcança,  diante do que o computador diz baseado em cálculos  probabilísticos que, por sua vez, o falante humano não conseguiria fazer “de cabeça”. Logo,  a visão de linguagem na base da cibernética vingou, apesar de tudo,  como uma forma específica de prática discursiva contemporânea, uma forma seminal, talvez, do que será efetivamente a linguagem pós-humana, numa sociedade em que a distinção entre  agentes cognitivo-discursivos  humanos e não-humanos não teria mais sentido.

A linguagem em uso passar a ser uma integração “sofrida” desses dois conjuntos de rotinas e capacidades voltados para metas definidas, como todo sistema cibernético.

Dois bots “controlando” a conversa

No livro, Wiener [3], um dos pais da cibernética, faz inúmeras referencias à linguagem, sempre concebendo-a, de forma reducionista, como troca de mensagens com sentido pré-definido. Mensagens, por sua vez, seriam arranjos codificados de símbolos  cuja forma/ordem fornece informação, isto é, possibilidades de combinação não aleatória, não conteúdos sobre algum estado de coisas concebido por um falante, ou seja, uma noção trazida da então emergente TeMatemática da Informação [4].

 Para Wiener, “A linguagem é, em certo sentido, outro nome para a própria comunicação, assim como uma palavra usada para descrever os códigos por meio dos quais se processa a comunicação” (p. 73).  Mesmo naqueles idos dos anos 1950, já se poderia ver aí uma manobra até certo ponto arbitrária, cujas consequências seriam ainda mais significativas a partir do passo seguinte: declarar comunicação e controle como sinônimos. [CONTINUA NA PARTE 2/3]

[1] TURING, A. M. Computing Machinery and Intelligence. Mind, v. LIX, n. 236, p. 433–460, 1950.

[2] TEIXEIRA, J. DE F. O cérebro e o robô: inteligência artificial, biotecnologia e a nova ética. São Paulo: Paulus, 2015.

[3] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.

[4] SHANNON, C. E.; WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Urbana: University of Illinois Press, 1975.

[Veja também a Parte 2 e a Parte 3]