Quem lê “Cibernética e Sociedade”, com um olhar pós-humanista, sente uma ambiguidade estranha. 

De um lado, percebe-se o extremo apego de Wiener  um humanismo liberal, em alguns momentos ingênuo, em outros até pedante, tal a confiança que ele parece ter em que seus postulados não abalariam a  dicotomia humano não-humano que parece considerara imanente, daí também a dificuldade de entender-se exatamente o que ele quer dizer com a expressão “uso humano dos seres humanos”. “A linguagem é uma atividade tão peculiarmente humana”, diz Wiener, ” que dela sequer se aproximam os parentes mais próximos do homem e seus mais ativos imitadores” (p. 81).  Para além de causa da sua excepcionalidade, a linguagem é pensada pelo autor como também a sua maior conquista: “O interesse humano pela linguagem parece ser um interesse inato por codificar e decifrar, e parece ser quase tão especificamente humano quanto o possa ser qualquer interesse. A linguagem é o maior interesse e a consecução mais característica do homem” (p.84), ainda que, em si, a linguagem não passe, a juízo de Wiener, de um código a ser decifrado.

De outro lado, o humano é “sugado” pela metáfora cibernética de forma direta e violenta, reduzido ao denominador comum da teoria matemática da informação/comunicação, um ser social cujas interações não passam de comandos e pedidos de informação: ” Em certo sentido, todos os sistemas de comunicação terminam por máquinas, mas os sistemas comuns de linguagem terminam por um tipo especial de máquina conhecido como ser humano” (p.77). 

Essa máquina/terminal humano, para Wiener,  funciona em três níveis: um nível “mecânico” (correspondente à fonética) que contempla os aparelhos fonador e auditório e os impulsos elétricos que os conectam aos circuitos cerebrais; um segundo nível, semântico, mais problemático,  na visão de Wiener, porque não se pode tão facilmente ser caracterizado em termos probabilísticos/informacionais, como no caso dos movimentos articulatórios e auditórios do corpo, já que  relacionados com o “aparelho detector de abstrações”  que não trabalha com a linguagem “palavra por palavra, mas ideia por ideia, e, amiúde, de modo ainda mais geral” (p; 79). O terceiro nível proposto por Wiener seria o do “comportamento de linguagem”, isto é, a “tradução das experiências do indivíduo, quer conscientes quer inconscientes, em ações que podem ser observadas externamente” (p. 79), mais especificamente, “ações brutas, diretas, da espécie que podemos observar também nos animais inferiores, e do sistema codificado e simbólico de ações que conhecemos como linguagem falada ou escrita” (p. 80). Bingo, estamos de volta ao jogo da imitação no qual a linguagem é um comportamento (simbólico) observável  que traduz, diretamente, um mundo interior feito de necessidades de saber e capacidades de controlar, um mundo acessível pela observação contínua desses comportamentos e sua tradução em padrões que lhe dão previsibilidade e consistência..

Seria injusto, a despeito de qualquer coisa, reduzir esse clássico de Norbert Wiener ao próprio reducionismo linguagem = comunicação = controle que perpassa a obra. Isso, especialmente, à luz do que, 70 anos mais tarde, a cibernética nos permite compreender sobre como humanos e máquinas tornam-se de fato, a cada dia mais claramente, um sistema acional e cognitivo integrado. Numa época em que ninguém pensaria, possivelmente, em web crawling, data mining, sentiment analysis e internet das coisas, Wiener já anunciava a tese de que “a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha” e de que “no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as maquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante” (p.17). 

Mais do que tudo, é justamente o impulso inicial, dado por ele e por outros pesquisadores da primeira onda da cibernética, a um processo epistemológico de desmaterialização dos comportamentos das entidades físicas, ou de sua tradução em bits desincorporados, para o acesso ao seu “ser” mais profundo, ou de outra forma, na tradução do “ser” em “comportar-se” ou “imitar-se um comportamento”, que abre uma das perspectivas mais concretas sobre o pós-humano na era da robótica pervasiva, da aprendizagem de máquina e dos mecanismos cada vez mais sofisticados de processamento de linguagem natural. Essa perspectiva nos permite, já distanciados, a essa altura, tanto do humanismo ingênuo dos anos 1950, quanto de certos “furos” daquela primeira onda, como, por exemplo, não incluir o observador no sistema cibernético observado, pensar no que seria de fato um “uso humano dos seres humanos”, no sentido de uma integração benigna do homo sapiens aos sistemas biológicos e maquínicos que compõem seu ecossistema físico e cognitivo [6]. 

A linguagem, obviamente, por conta da sua abertura, da sua polissemia,  de fenômenos como as implicaturas, a dêixis, os atos ilocucionais, e os jogos de interpretação, marca uma zona de segurança ou resistência a certo tipo de aniquilação ou redução do humano à máquina, em lugar da sua reinvenção como ciborgue, ou seja, àquilo que não se poderia chamar de pós, mas, antes de anti-humano.

[6] HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, Ill: University of Chicago Press, 1999. 

[Veja também a Parte 1 e a Parte 2]