Literatura Infantil (1880-1910)

 
Receios                
No mar

 

 

O MEDO.

 

NÃO tenhas medo, Carlotinha; é o vento

Nas ávores uivando; é o vento apenas;

Vê como eu não me assusto, e, ouvido atento,

Escuto-lhe as estranhas cantilenas.

 

O medo é cousa fútil; é fraqueza.

Olha: uma vez, só uma, eu fui medrosa;

Era de noite e eu me sentia presa

De uma angústia pungente e dolorosa.

 

Na véspera finara-se a vizinha

- Uma mulher de vago olhar tristonho,

Como a Virgem das Dores - e, sozinha

No quarto, eu a revia como em sonho.

 

Por entre os vidros da janela, em frente,

Se arqueava o céu, tão cheio de mistério!...

Embaixo, no jardim, tudo silente:

A tristeza feral de um cemitério!

 

Vinha do alto, ou não sei de onde, um ruído

Macio e fofo qual rumor de penas,

E, pávida no leito, alerta o ouvido,

Eu escutava respirando apenas.

 

Vieram-me logo à idéia estranhos vultos,

Pesadelos de monstros e de feras,

Batalhões de finados insepultos,

E fantasmas, e sombras, e quimeras,

 

Quis elevar a voz: faltou-me o alento;

Apertava-me o seio força ignota;

Levantar-me - impossível! baldo intento!

Ai, que suplício padeci, Carlota!

 

Oh! se Mamãe chegasse!... arfante, ansioso,

O coração falava-me pulsando,

E o rumor continuava pavoroso,

E eu me encolhia, trêmula, chorando.

 

Que seria, meu Deus?! A luz escassa

Extinguia-se, débil e mortiça;

E a claridade, entrecortada e baça,

Tinha um tremor de sombra movediça.

 

Ergui-me a custo e dei um passo adiante;

Assaltavam-me fortes arrepios;

Acendi nova luz, mais outra, e, arfante,

Olhei em roda, toda em suores frios.

 

De sombras, nada, - o estranho murmurinho

Calara-se também, - todo o aposento

Era tranqüilo e calmo como um ninho,

E a coragem voltou-me, e a força e o alento.

 

Mamãe chegou, soube de tudo, e, pronta,

Quis visitar o quarto; e, na visita,

Nada... Somente, nas cortinas, tonta,

Debatia-se trêmula avezita.

 

Mamãe sorriu-se e cariciosa disse:

"Vês?... Tu sonhavas tanta cousa informe!...

O medo, filha, é uma infantil pieguice."

- E, beijando-me as faces: "Dorme! Dorme!"

 

 

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No mar