Literatura Infantil (1880-1910)

 
Sem rumor                
Poupemos

 

 

O CÃO E OS PÁSSAROS.

 

FEROZ é um velho cão de guarda. A gente,

Que o vê de longe, teme-lhe os olhares,

E examina a grossura da corrente

Férrea, que o liga ao muro dos seus lares. 

 

Ninguém lhe amima o dorso largo e forte;

Ninguém procura o seu olhar profundo;

Do seu caminho fogem, de tal sorte

Que ele se vê sozinho neste mundo.

 

O próprio dono evita-lhe os afagos,

Olha-o receoso, e se aproxima a custo.

Do velho cão nos grandes olhos vagos,

Paira a tristeza de um castigo injusto.

 

Não compreende o terror por ele aceso;

Quer mostrar-se bondoso, e a cauda agita,

Mas o rumor dos ferros, que o têm preso,

Mais pavor nos corações excita.

 

E ele, sentindo assomos de revolta,

Tenta quebrar os elos da cadeia...

Mas, pouco a pouco, a placidez lhe volta,

E o louco instinto, devagar, sopeia.

 

Inclina o corpo e estende-se por terra,

Preso ao terror, que a própria força inspira;

E, silencioso, úmidos olhos cerra,

Sem mais vislumbre de despeito ou ira.

 

Velando à porta do casebre, sonha...

O campo é todo verde; o céu fulgura,

E erra no espaço, trêfega e risonha,

A azado vento a derramar frescura.

 

Nova agonia o coração lhe aperta,

Nostálgico, aspirando o fim de tudo...

Nisto, um ligeiro frêmito o desperta,

E ele abre os olhos, cauteloso e mudo.

 

São passaritos. Ei-los! Não têm medo

Vêm partilhar com ele o magro almoço.

E, compassivo, espera imóvel, quedo,

Que eles se vão, para roer um osso.

 

E o velho cão de pavoroso aspecto,

Que nunca teve a graça de uns carinhos,

Sentindo o peito a transbordar de afeto,

Trêmulo escuta a voz dos passarinhos.

 

 

Sem rumor                
Poupemos