Categoria: Reunião

Sistema e Feedback na obra de Norbert Wiener

Ilustração de Sir John Tenniel’s, colorida posteriormente, para o livro Alice no país das Maravilhas

“Modificamos tão radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modificar-nos a nós mesmos […] O progresso não só impõe novas possibilidades para o futuro como também novas restrições. Parece quase como se o próprio progresso e a nossa luta contra o aumento de entropia devessem terminar no caminho descendente do qual estamos tentando escapar” [1] (p. 46)


Norbert Wiener foi um dos primeiros acadêmicos a discutir e conceituar a cibernética, aqui focalizada a partir de seu livro “Cibernética e Sociedade: o Uso Humano de Seres Humanos”, editado no Brasil em 1954. Para o autor, “o propósito da cibernética é o de desenvolver uma linguagem técnica que nos capacite, de fato, a haver-nos com o problema do controle e da comunicação em geral” [1] (p. 17). A comunicação, em sua visão, só poderia ser compreendida a partir dos meios (ou facilidades) de comunicação, bem como o estudo das mensagens que uma sociedade dispõe. A partir das perspectivas teóricas propostas pelo matemático e filósofo citado, proponho uma breve discussão em relação ao sistema e ao feedback (ou retroalimentação), tão caros para a compreensão da cibernética e, por conseguinte, controle e linguagem.

Na visão de Wiener, os sistemas, orgânicos ou autômatos, dispõem de recursos que retroalimentam os processos que entram em desequilíbrio, trazendo informação contextual que permita reajustes internos, para que a entropia não aumente de forma demasiada e, com isso, o controle do comportamento do sistema em relação a uma meta definida não se perca por completo. As retroalimentações (ou feedbacks) ­também podem ser compreendidos como parte de um mecanismo de aprendizagem. Wiener não faz distinção entre ordens (feedback) dadas a uma máquina de ordens dadas a uma pessoa; a única diferença se refere às formas de comunicação e os tipos de mensagens, informações e linguagens (verbal, química, elétrica etc.) que serão trocadas para que o sistema se regule continuamente. Ou seja, o processo de ajuste às contingências do meio ambiente, sempre em interação com a parte interna via feedback, faz com que o sistema, seja ele qual for, recobre seu equilíbrio.

Nesta obra, em particular, Wiener pretende pensar sociedades como sistemas cibernéticos, nas quais o reequilíbrio pode se dar por meio do esgotamento e a saturação de recursos naturais, como no caso das sociedades européias de 1500 que buscavam novas terras. O autor faz analogia entre a forma de exploração de recursos, que pareciam inexauríveis à época, à passagem do livro “Alice no país das maravilhas” [2], quando o chá e o bolo do Chapeleiro Maluco e da Lebre de Março acabavam, eles seguiam para o próximo lugar vazio. Quando Alice indaga ao Chapeleiro o que aconteceria quando eles voltassem ao local inicial, já sem bolo ou chá, os personagens mudam de assunto sem dar qualquer explicação. Desde a metade do século passado, quando o livro foi escrito [1], já se sabia da finitude de nossos recursos, tornando o reequilíbrio de sociedades que se apoiam no domínio da natureza, paradoxalmente, escravos a essa mesma natureza e do aperfeiçoamento técnico das nossas práticas e formas de viver e ser no mundo. 

Nesse sentido, Wiener também argumenta que o fato de um sistema de determinado tipo estar em equilíbrio nem sempre implica que todos os sistemas daquela classe se organizam da mesma maneira. Exemplo disso são, para o mesmo autor, os diferentes padrões de comunicação e organização social de sociedades hierárquicas e engessantes, exemplificadas pelas estratificações por castas na Índia, em contraste com formas mais horizontais de compartilhamento de poder, como nas comunidades inuítes ou iupiques [sic], cuja base se sustenta no desejo de sobreviver (p. 50).

Para ilustrar o conceito de feedback (ou retroalimentação), como um método de auto-controle de sistemas, orgânicos ou não, complexos ou não, tomarei o tradicional (e fracassado) sistema escolar de ensino de língua inglesa em escolas públicas no Brasil [3]. Quando, no quinto ano do ensino fundamental, o alunado se depara com a disciplina de língua inglesa, é comum que comece por conteúdos tidos como básicos, como o verbo to be. Os alunos, em geral, decoram a flexão verbal para uso dos verbos ser e estar em língua inglesa e fazem provas escritas sobre regras gramaticais. O uso correto do verbo to be é a meta do aprendiz enquanto sistema, os livros e a fala da professora o input e a prova, ou melhor, a nota da prova, um tipo de feedback. Ainda que os discentes sejam bem sucedidos nessa concepção, ou seja, tirem uma nota que informa ao sistema que a direção em que agiu estava certa e organizada de modo equilibrado, isso conta como aprender? Wiener [1] ressalta que saber conteúdos formais de uma disciplina não é mesmo que ter interesse intelectual por aprender algo (p. 130). Em outras palavras, ainda que haja comunicação e mecanismos de retroalimentação que “funcionem” de forma eficaz para prestígio social, por meio da aprovação na disciplina, em termos de aprendizagem de língua inglesa concebida como algo além do que perseguir uma meta de desempenho formal, “a qualidade e o valor comunicativo da mensagem caem como um peão de prumo” (p. 132).

Samuel Butler – Erewhon (1873)

A retroalimentação também poderá encontrar dificuldades quando o aspecto da linguagem, principalmente no item semântico, encontrar problemas de tradução e ou compreensão. Essas dificuldades se dão, sobretudo, devido aos repertórios linguísticos discursivos disponíveis que medeiam as realidades experienciadas por quem fala cada uma das línguas. Para Wiener, diferentes percepções ou compreensões sobre um mesmo item linguístico configuram-se como um problema para o bom funcionamento de sistemas e a eficácia da retroalimentação. E são justamente essas nuances das linguagens que fazem com que a consciência e a mente sejam amplamente debatidas quando estudiosos discutem o conceito de aprendizagem (ou a retroalimentação) em máquinas de inteligência artificial (IA) [4]. O que autor destaca em relação aos autômatos de alta complexidade, como as IA, é o entendimento de que “[…] o perigo da máquina para a sociedade não provém da máquina em si, mas daquilo que o homem faz dela” (p. 180) fazendo referência a obra de Samuel Butler [5] – Erewhon – nowhere ao contrário, que imaginava como as máquinas inevitavelmente dominariam os seres humanos como seres secundários.

Embora Wiener defina aprendizagem como o tipo de condicionamento operante induzido no sistema por processos de retroalimentação, indiscriminadamente, em máquinas e seres humanos, hoje sabemos que há distinções relevantes entre ações resultantes de um organismo vivo e cognitivamente consciente e a resposta algorítmica de uma máquina a inputs diferentes. Isso implica que o dilema entre aprender para passar na prova e aprender porque se tem interesse em aprender atravessa também as definições de máquina e de humano para além da sua subordinação ao conceito de sistema cibernético, nos levando a reflexões pertinentes em relação a subjetividade em contextos de ensino e aprendizagem, como é o caso de meu projeto de doutorado em andamento, que busca, dentre outras coisas, discutir e analisar como práticas formais e informais de construção de conhecimento, sobretudo para práticas letradas no uso de TDIC, afetam e são afetados na criação de subjetividades.  

O autor contribuiu grandemente para conceituação da cibernética ˗ em sua primeira onda ˗ bem como discussões filosóficas importantes para o pós-segunda guerra mundial e a utilização social pervasiva de autômatos, sistemas e feedback; no entanto, no que tange às reflexões acerca da linguagem e consciência, a obra de Wiener não traz  questionamentos profundos, tão pouco ampliação ou diferenciação entre organismos ou máquinas conscientes e não conscientes em relação às implicações da consciência para linguagens, sistemas e feedbacks. 

[1] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.

[2] Carroll, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. New York: Macmillan, 1920

[3] VILAÇO, F. L.; GRANDE, G. C. Língua Inglesa na BNCC. In: CÁSSIO, F.; CATELLI JR., R. (Eds.). . Educação é a base? 23 educadores discutem a BNCC. 1. ed. São Paulo, SP: Ação Educativa, 2019. p. 145–157.

[4] HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, Ill: University of Chicago Press, 1999.

[5] BUTLER, S. Erewhon Over the range. United Kingdom: Trubner, 1892. 

Aprendizagem e Inteligência na obra “Cibernética e Sociedade”, de Norbert Wiener

A ideia de aprendizagem perpassa diferentes áreas de conhecimento. As ciências cognitivas foram responsáveis para a emergência de teorias de aprendizagem como o behaviorismo; a filosofia apresenta a fenomenologia como base para uma teoria de aprendizagem; e obviamente os estudiosos da área da educação apresentaram inúmeras possibilidades para a definição do assunto.

Nobert Wiener, matemático e estudioso tido como o criador da cibernética, em seu livro Cibernética e Sociedade: O uso humano dos seres humanos (com primeira edição em 1954) [1], tece inúmeras relações sobre como a aprendizagem emerge nos sistemas auto-regulados. Wiener difere dos demais estudiosos por preocupar-se com a aprendizagem em todos os tipos de sistemas e não apenas na aprendizagem de humanos ou animais como ocorre nos estudos de outras áreas.

Para o autor, a aprendizagem é uma função de reflexo condicionado possível pela realimentação ou feedback.  Ao exemplificar esse processo (itens numerados abaixo), utiliza como referência um autômato simulador de vida, podendo se fazer paralelo com outras máquinas, ou qualquer sistema, inclusive seres humanos. O processo de realimentação que resulta na aprendizagem é constituído de dois pontos: 

1)    Tal máquina deve possuir órgãos motores para realizar as tarefas necessárias.

2)    É necessário que o sistema disponha de órgãos ou elementos sensoriais (células fotoelétricas e termômetros, por exemplo) que permitam a máquina se comunicar com o mundo externo, produzindo registros do desempenho das tarefas realizadas.

O segundo ponto implica o ajuste da tarefa futura considerando o desempenho passado, ou seja, se o desempenho foi positivo, o sistema está apto a repetir a tarefa, porém se o desempenho não foi satisfatório, o sistema estará apto a adotar outro comportamento, resultando em um reflexo condicionado considerado como aprendizagem.

Esse comportamento é exemplificado similarmente, por Wiener, com seres vivos, como um gato. O gato recebe a informação de um chamado olhando para aquele que o chamou; ao sentir fome, o animal mia para pedir comida; e, ao brincar com um carretel, com a pata, o gato lança o carretel para um lado e agarra-o com a outra pata. Situações aparentemente simples como essas são repletas de mensagens complexas enviadas e recebidas pelo sistema nervoso do animal, por nervos, terminais de suas juntas, músculos e tendões. Por mensagens como essa, o gato adquire consciência da sua posição e das tensões de seus tecidos. A habilidade manual torna-se possível somente pela possibilidade de tais órgão serem capazes de transmitir e receber essas mensagens. O resultado dessa troca de informação é, para Wiener, a aprendizagem.

Todavia alguns animais, especialmente os formados por sistemas mais simples, tais como insetos, não necessariamente são capazes de aprender, justamente por conta dessa “excessiva” simplicidade. Wiener chega considerá-los como estúpidos, pois o molde deles permite apenas poucas e pequenas modificações. O sistema desses animais envia e recebe informações, entretanto o sistema é “rígido”, pois muito simples, e, assim, não se altera ou reorganiza a partir das informações recebidas.

Embora Wiener não apresente uma ideia precisa e concisa de inteligência, alguns pontos podem nos levar a algumas conclusões:

1)    Wiener entende que organismos muito simples não podem ser inteligentes, pois sua estrutura não permite um sistema nervoso completo, e, logo, aprendizagem. Seus comportamentos, mesmo na fase adulta, são ditados por sua estrutura e não por sua experiência sensorial individual. Ressalta-se que não necessariamente animais de grande porte serão inteligentes, pois o fator chave é a complexidade, e não o tamanho do organismo. Sistemas com alimentação simples podem agir apenas com reflexos comuns, não caracterizando-os como inteligentes. Um exemplo de aprendizagem simples citado por Wiener é a hipotética máquina que se encaminha para a luz ou dela foge. Esse aparato tomaria decisões baseadas apenas na ausência ou presença de luz.

2)    Ao comparar o sistema nervoso a uma máquina automática, Wiener observa que os dispositivos mecânicos mais simples têm que decidir entre duas alternativas, como ligar ou desligar uma chave. Da mesma forma, no sistema nervoso de um organismo vivo, “a fibra nervosa individual também decide entre conduzir ou não um impulso. Além disso, tanto na máquina quanto nos  nervos, há um dispositivo específico para fazer com que as decisões futuras dependam das passadas, mas, no sistema nervoso, boa parte dessa tarefa é realizada naqueles pontos extremamente complicados, denominados “sinapses”, nos quais numerosas fibras nervosas aferentes se ligam a uma única fibra nervosa eferente” (p. 34) [1]. 

Assim, para a cibernética, humanos são sistemas inteligentes não por causa de uma excepcionalidade imanente na natureza, mas porque possuem a capacidade de aprendizagem que existe em sistemas suficientemente complexos.

As ideias de Wiener sobre alimentação e feedback apesar de não terem influenciado grandemente os estudos na área de educação, foram um passo inicial para os estudos da inteligência artificial. Uma das questões colocadas hoje acerca da inteligência artificial é justamente a sua capacidade de aprender pela avaliação sistemática dos resultados presentes de uma tarefa a partir dos resultados passados da mesma tarefa sobre um input controlado e marcado como bem-sucedido em sucessivos ciclos, a assim chamada aprendizagem de máquinas.

Wiener questiona, a certa altura do livro: “Bem, já sabemos que, como indivíduo, a formiga não é muito inteligente; então, por que toda essa complicação para explicar por que razão não pode ser inteligente?” (p. 57) [1].  Em minha pesquisa sobre a formação de professores numa perspectiva pós-humanista, a noção de aprendizagem como instalação de um reflexo condicionado num sistema complexo não serve, não é isso que um professor faz, nem é assim que o aluno aprende a lidar com a complexidade do mundo. Contudo, me interessa o papel de outros seres, ou sistemas, na aprendizagem, seres dotados ou não do que Wiener chama de inteligência, quer sejam formigas, computadores ou exames finais. Minha premissa é a de que a inteligência do aluno, que cabe ao professor “complexificar”, vai além do seu corpo ou do seu sistema nervoso, pois engloba todos esses seres e agências enredadas pelo fio da experiência de aprender. Sobre esses emaranhamentos no processo educacional, escrevi o texto Repensando os letramentos pela perspectiva pós-humanista [2], resultado do início de minhas pesquisas referentes ao projeto de doutorado que venho desenvolvendo sobre a formação de professores e a teoria ator-rede.

[1] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.

[2] RIBAS, M. M. G. Repensando os letramentos pela perspectiva pós-humanista. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 58, n. 2, p. 612-636, 1 ago. 2019. 

As promessas da inteligência artificial: evolução ou apenas uma bagunça em um quarto chinês?

Entre as áreas de desenvolvimento tecnológico que mais se ouve na atualidade, está a inteligência artificial. Quando tratamos dela, não conseguimos fugir, porém, de desejar prever o que será o futuro da humanidade. Por ser um tópico tão relevante quando se trata sobre as implicações de tecnologias sobre a sociedade humana, decidimos discutir o tema a partir do livro Life 3.0: being human in the age of artificial intelligence, escrito por Max Tegmark, cosmólogo professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts [1].

Embora há quase trinta anos se imaginasse cenários em que inteligências artificiais seriam perigosas para os humanos, seja atacando-os no mundo material [2] ou criando um reino tirânico digital [3], hoje convivemos com versões mais rudimentares de IA diariamente muitas vezes sem sabê-lo. Elas parecem, ao contrário do que todos temiam, pouco inteligentes e acabaram adentrando a casa das pessoas com o objetivo de ligar aparelhos eletrônicos, fazer telefonemas ou tocar músicas escolhidas por seu dono.

Não é sobre essa inteligência artificial que Tegmark quer discutir. Ele foca sua atenção na que seria chamada de inteligência artificial generalizada. Ao contrário de uma Alexa, tida hoje como mais um eletrodoméstico, a IA generalizada seria “consciente” e autônoma, isto é, teria a capacidade de aprender e de ter experiências subjetivas, o que, talvez, apenas retome um questionamento feito por John Searle em seu quarto chinês[4]: a IA realmente sabe ou apenas age como se soubesse?

A visão de Tegmark sobre esse cenário é tida como “prudente”, relacionada a uma corrente de pesquisa em IA que defende a IA autônoma como inofensiva, uma vez que ela nunca chegaria a ser consciente. O autor defende que não se deve ser um idealista, alguém cuja esperança sobre o futuro da humanidade está depositada sobre a inteligência artificial e na promessa de que essa irá cumprir a previsão dos futurólogos dos últimos anos: atingir a singularidade. Ao mesmo tempo, ele não se vê como um cético que não acredita em nada disso. Pelo contrário, ele dá um passo a mais e propõe que as pessoas se mobilizem para preparar um terreno seguro para um futuro certo.

As ideias de Tegmark se desdobram e tocam em questões determinantes para a concepção do próprio humano. Primeiro, a consciência. Ele defende ser possível uma máquina alcançá-la, mas, para isso, acredita, é necessário que se obtenha  conhecimento sobre quais processos físicos, no interior do cérebro, estão envolvidos no fenômeno da consciência. Se por um lado ele admite que a materialidade de um corpo biológico seja indispensável na constituição da consciência, por outro, ele defende uma visão fisicalista [5] de que há – e sempre haverá – algum tipo de interação física concreta e mensurável para os fenômenos do mundo, inclusive o da consciência.

Alexa, assistente virtual desenvolvida pela Amazon

Com relação ao conceito de consciência em si, ele tenta se apoiar na própria experiência subjetiva do humano. Este tem a capacidade de focar em determinados elementos, mas estar totalmente inconsciente sobre outros. Passaríamos, então, a estar conscientes de algo quando houvesse um deslocamento de fatores (ainda desconhecidos). Sendo assim, a experiência subjetiva é, para  o autor, resultado de um determinado alinhamento de elementos físicos. Logo, se os cientistas descobrirem quais são as condições, assim como as combinações necessárias, e conseguirem replicá-las, o mistério estaria resolvido.  

Em meio às promessas de uma vida 3.0 e a comparação de um ser humano consciente de uma inteligência artificial, há o entendimento  particular de que um sujeito humano pode ser descrito como um sistema cibernético. Nessa ótica, os seres vivos, assim como os mecânicos, resumiam-se a um sistema equilibrado, em que inputs, em determinados contextos, produzem os mesmos outputs, sendo tais outputs formas de modificar o ambiente, sendo esse, então retraduzido por retroalimentação, reajustando o sistema internamente e, assim, poderia se produzir vida. Daí deriva-se que, conhecer a fisicalidade do sistema é um passo para melhorá-la, gerando sua próxima versão, possivelmente independente do substrato biológico. No fundo, se queremos ter uma base consistente para refletir e questionar a construção de uma concepção de pós-humano, encabeçado por pensadores como Tegmark e outros, é necessário dar um passo para trás e olharmos a cibernética, por ser o campo que produziu um conjunto de saberes essenciais para seus trabalhos.

[1] TEGMARK, M. Life 3.0: being human in the age of artificial intelligence. Vintage Books, 2017. Livro discutido em nossa reunião de setembro. 

[2] No seriado Arquivo X, episódio seis da primeira temporada, cujo nome é “Ghost in the machine”, os investigadores do FBI precisam lidar com um elevador controlado por uma inteligência artificial.

[3] O longa Tron de 1982, feito pela Disney, conta a história de usuários que, uma vez transportador para o mundo digital, precisam lutar contra a ditadura de uma inteligência artificial sobre os outros softwares.

[4] O filósofo John Searle propôs o argumento do Quarto Chinês que nos ajuda a pensar sobre a possibilidade de uma máquina ser inteligente ou não.

[5] Fisicalismo é uma perspectiva que assume a existência de fatores físicos para explicar os fenômenos do mundo.

Escrevendo viventes e comendo fantasmas: dilemas da matéria e da linguagem na condição pós-humana

A vertigem do pós-humano se manifesta quando tentamos montar uma “caixa de ferramentas” para entender a miríade de novas  entidades (coisas, bichos, ideias) que vêm ao mundo todos os dias por meio de práticas institucionalizadas, como a engenharia genética e a indústria da inteligência artificial, ou semi ou não institucionalizadas, como o biohacking e o movimento trans-humanista. Essa caixa não fecha, aparentemente, não só porque faltam mecanismos eficazes de diálogo interdisciplinar, por mais inter ou transdisciplinar que sejam as novas entidades e práticas, mas porque, globalmente, trata-se de lidar com a concretização empírica da ruptura da dicotomia natureza-cultura tal qual discutida, do ponto de vista conceitual, desde os primeiros escritos de Bruno Latour [1], Donna Haraway [2] e outros autores preocupados com o problema da objetificação dos seres culturais e da suberificação dos seres naturais. Isso na contramão do realismo-naturalismo científico que sustenta a proliferação de híbridos natureza-cultura que nos circunda, a qual nem as ciências duras, nem as humanas, conseguem “dominar”.

Os fenômenos que interessam a uma ótica pós-humanista são, portanto, aqueles em que imperam as ambiguidades natureza-cultura, máquina-gente, signo-matéria, texto-contexto etc. Fechar essa ambiguidade significa “matar” o bicho/coisa/ideia que se quer estudar. Aceitá-la como sendo a própria “natureza” do bicho/coisa/ideia, por outro lado, implica abandonar a ilusão de que estudando um dos dois caminhos ou vozes constitutivas dessa ambiguidade, revelaremos o outro, e vice-versa; em lugar disso, é preciso estudar, justamente, como essa ambiguidade se sustenta para, só então, talvez, desenvolver ferramentas e heurísticas para lidar com as repercussões práticas dessas agências ambíguas  na economia, na política, na ética, nas línguas, na saúde etc. Isso equivale a tentar desvendar como o bicho/coisa/ideia passa de um lado para o outro seu significado e do seu status ontológico ambíguos, sem, na verdade, sair de um mesmo  e único plano, como numa fita de Moebius, para ser quem é. O que não equivale a defini-lo como sendo isso ou aquilo. E, já que ambiguidade é uma questão tanto do sentido quanto do ser, isso implica entender como se pode gerar matéria ambígua por meio de signos, e signos ambíguos a partir da matéria.

Uma start up de grande sucesso acaba de se estabelecer no mercado alimentício fabricando, entre outras coisas, maionese artificial [3]. Não se trata de imitar a maionese tradicional com sabores e texturas de outra coisa, como se faz, por exemplo, com gordura vegetal hidrogenada em relação à manteiga (laticínio). Trata-se de buscar, em outras fontes biológicas, as moléculas orgânicas que também constituem a maionese tradicional/natural e, combinando tais moléculas por meio de certas técnicas e certos “aliados” químicos, gerar uma maionese legal, do ponto de vista material, mas não necessariamente legítima, do ponto de vista simbólico. Daí a escolha da marca NotMayo para designá-la.

Em todos os quesitos sensíveis (aroma, textura, cor, sabor etc.), trata-se da mesma entidade material, apenas não “cultivada”, mas produto de um “remix” totalmente “sem costura”, do ponto de vista/olfato/tato/paladar do comensal. Trazida da natureza por um processo cultural/técnico, como um fantasma capturado pelos Ghost Busters, a NotMayo é um significante cuja materialidade é idêntica, ou pelo menos tem uma performance idêntica, perante aos sentidos, à da maionese, mas cujo significado, quando se tenta reintroduzi-la na cultura, não pode ser idêntico ao significado “natural”, isto é, historicizado, da mistura de ovos, azeite e condimentos emulsionada mecanicamente.

É próprio das culturas humanas utilizar o simbólico, classificações simbólicas, por exemplo, para atribuir um status não-natural (ou sobrenatural) aos alimentos em potencial. Entre os índios Jivaro (amazônia peruana), por exemplo, a anta não pode ser comida porque é um ser-humano reencarnado [4]. Mas a comida artificial inaugura para nós, como todas as artificialidades, algo além de um rearranjo das categorias naturais que legitime nossos apetites (inclusive os intelectuais), nossa gula ou vontade de saber. Ela  dá espaço a uma linguagem que está “fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura” (FOUCAULT, 1988, p. 12) [5]. Ela desarranja justamente a natureza como categoria distinta da cultura (técnica, artifício).

No Japão, um evento biohacker promovido recentemente convida os participantes para um workshop de “leitura e escrita de DNA”. Primeiro, por meio de técnicas de laboratório e processos de análise bioquímica auxiliados por computador,  faz-se o trabalho de desmaterialização e transformação da molécula do DNA em um signo: uma longa sequência de símbolos que representam bases hidrogenadas que, como na sintaxe de uma língua natural, estabelecem, pela ordem específica em que aparecem, um significado específico. Esse texto precede a instanciação fenotípica de uma entidade biológica no mundo, da mesma forma que sintagmas e orações enredadas numa estrutura textual precedem a instanciação dos enunciados como textos como entidades “vivas”, em contextos reais de fala.

Ler essa sequência de bases, para os devidamente letrados nisso, significa isolar subunidades semânticas que podem ser recombinadas entre si para criar novos seres-textos no mundo, tal qual novos textos vêm ao mundo todos os dias quando fixados em algum tipo de substrato material (a voz, o papel, a tela, a escultura etc.) para propor a definição de seres metafísicos que não se pode bater no liquidificador até que virem moléculas de DNA. E tal como itens lexicais e sintagmas, sequências de bases hidrogenadas tem o mesmo “significado fenotípico” em qualquer lugar, a qualquer tempo. Porém a instanciação do fenótipo em corpo biológico está sujeita ao contexto, mutações, acidentes, doenças auto-imunes etc. Haveria, de certa forma, um genoma langue e um genoma parole, e não por acaso, mas porque o signo não se encarna sem custo, assim como a carne não se abstrai de si mesma sem trabalho semiótico.

Assim, o discurso/a linguagem marcam a ambiguidade da natureza enquanto corpo orgânico e organização de um “composto”. Quando o composto precisa ser inserido na cultura, num mesmo nicho ou campo semântico em que o corpo já estava, é ao signo que se demanda um fechamento: é maionese ou não-maionese. Os dois, não pode. E, no entanto, os dois disputam mercado, oferecem algum tipo de nutrição, têm algum tipo de impacto ambiental, amoldam-se a diferentes ideologias alimentares e assim por diante, clamando por uma caixa de ferramentas judiciais, médicas, políticas etc. que ainda não temos. Já o ente biológico processado até virar texto acomoda a ambiguidade do DNA enquanto signo e enquanto molécula (matéria, substância).

Não podemos desmembrar bichos e plantas e remixá-los ao nosso bel prazer, exceto em alguns poucos casos como transplantes de órgãos ou desenvolvimento de “raças” por “seleção genética” via procriação “natural”. Ainda assim, nesses casos, grande parte dos resultados concretos/materiais é estéril ou contraditória, cheia de “rejeições” internas ou vazia de descendência. Um “doente transplantado” é um hipônimo “pessoa”, mas também o é de “doente”. Mas sequencias de bases hidrogenadas são bichos/pessoas/plantas transformadas em signos que podem, sim, ser remixados, e, ainda sim, manter seu status ontológico de futura(s) pessoa, bicho ou planta. E por isso podem ser moralizados, judicializados, comercializados etc., mas como fazê-lo se não se define o que, afinal, eles são, natureza ou cultura? Alguma violência, simbólica ou física, há de ser usada, a menos que se repense o que é moral, justiça, comércio etc. num mundo pós-humano.

De certa forma, podemos dizer que o que caracteriza nosso tempo é a constatação empírica da “desdicotomização” entre natureza e cultura já teorizada por Bruno Latour, Donna Harraway e outros tantos. É como se, tal qual os astrônomos que foram a Sobral, no interior do Ceará, em 1905, para fotografar um eclipse em busca da comprovação da Teoria da Relatividade de Einstein, estivéssemos nós agora em posição de observar, empiricamente, a proposta de Latour, Harraway e outros (des)construtivistas radicais, em coisas tão banais como os fantasmas que comemos e os seres vivos que escrevemos. A diferença é que a Teoria da Relatividade serve, justamente, para desambiguar todas as medidas que alguém possa tomar de qualquer coisa que aconteça em qualquer parte do universo reduzindo-a, por transformações matemáticas, a um mesmo referencial fixo, fato que o próprio Bruno Latour demonstrou [6], ao passo que os (des)construtivistas/relativistas radicais vêm clamando, há pelo menos trinta anos, que o real é ambíguo, o material é linguagem, a linguagem é ontologia e nada no universo se submete a um único ponto de vista.

Nossas ferramentas, portanto, precisam ser outras. A mais urgente delas parece ser, justamente, formas de diálogo interdisciplinar verdadeiramente engajadas com a realidade, e democráticas no seu funcionamento, que se instaurem no espaço do pós-humanismo, o espaço, justamente, acadêmico e político inaugurado pela aceitação dessa ambiguidade constitutiva do nosso tempo e dos nossos seres-fazeres-significares.

[1] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos : ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

[2] HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late 20th Century. In: HARAWAY, D. J. Simians, cyborgs, and women : the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. p. 149–181.

[3] ZOGBI, P. NotCo, financiada por Jeff Bezos, traz aos Brasil maionese feita com inteligência artificial. Infomoney, 22 mar. 2019.

[4] ROSS, Eric Barry, et al. Food Taboos, Diet, and Hunting Strategy: The Adaptation to Animals in Amazon Cultural Ecology. Current Anthropology, vol. 19, no. 1, 1978, pp. 1–36 [5] ???

[5] FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Eduções Graal, 1988.

[6] LATOUR, Bruno. A Relativistic Account of Einstein’s Relativity. Social Studies of Science, v. 18, n. 1, p. 3–44, Fev 1988.