Responsáveis

Amanda Dib (amanda.dib12@gmail.com)
Leyliane Gomes (leylianegommes@gmail.com)
Patrick Bange  (patrickbange@gmail.com)

Tentamos começar pela letra “a” posta em destaque no tema do Outrarte deste ano:

“H(a) céu aberto, singularidades quaisquer”. É também esta letra que Jacques Derrida insere em différance, distinguindo-a de différence, cuja diferença só se dá pela escrita, afinal, na língua francesa, são palavras homófonas. O ponto de interesse em começar por ela, esta letra intrusa, é o de caminhar pelo percurso da escrita e da leitura. Ao ler a letra “a”, pela via derridiana, somos conduzidos a um novo significante, que se atrela ao modo como a prática da leitura se dá, afinal, a différance poderá ser entendida como algo que nunca acontece, que é sempre postergado, que é empurrado para depois, que se desloca para o futuro. […] Ela estará no jogo de remissões com o outro, jogo a partir do qual as referências são constituídas, num devir permanente em que a identidade fixa é substituída pelos efeitos de um processo contínuo de deslocamento. (Rodrigues, 2013, p. 28).

Tomemos, então, a leitura como um processo contínuo de deslocamento, o que rasura a fixidez e promove diferenças. Como não lembrar da menina do conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector, que faz o livro, seu objeto tão esperado e desejado, se deslocar pela casa, de modo a fazer da leitura um encontro sempre inaugural, fresco, deslo(u)cado de qualquer lógica de posse. Assim, será que não poderíamos inserir esta prática de leitura por uma via metafórica: a leitura transitando um céu aberto, onde o começo, o fim e as margens estão invisíveis em um horizonte infinito? No entanto, o que resta legível é a letra, corpo que constitui a palavra e nos leva a ler o que ainda deverá ser lido. Para colocar em ato a materialidade da leitura, caímos – não podemos deixar de cair – no texto. Evocamos outro conto de Clarice: “O búfalo”. Para começar, o fim: “Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo” (Lispector, 2016, p. 257). O desfecho do conto encerra o percurso da personagem pelo Jardim Zoológico, cujo interesse era o de aprender a odiar a partir do contato com o mundo animal, presumindo a suposta violência e ferocidade aí implicadas. Na caminhada entre as diversas jaulas que aprisionavam os bichos – ou espelhavam o próprio aprisionamento da personagem –, o gesto de olhar e ser olhada contorna o conto. A afirmação “a mulher viu o céu inteiro”, extraída do último período do conto, lança o leitor a um enigma. O artigo que define o substantivo “céu” bem como o adjetivo que o acompanha, “inteiro”, localizam a palavra no campo da completude e de um vocábulo que não deixa dúvidas sobre a sua identidade, ponto que o distingue e o afasta de “um búfalo”, cujo artigo indefinido rasura a singularidade e indetermina o animal. A adjetivação do búfalo resta vazia: ele não é “inteiro”, tal como o céu; ele não é mais “o búfalo negro” (Lispector, 2016, p. 254), tampouco “o grande búfalo” (Lispector, 2016, p. 256). Esse búfalo, que não é o búfalo do desfecho do conto, havia olhado os olhos da mulher. Antes, “Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente.” (Lispector, 2016, p. 257).

É interessante também trazer a dúvida acerca do “um” enquanto numeral, pois não há um único búfalo. Agora indaguemos também “o céu inteiro”, afinal, pode-se falar em céu inteiro na literatura? Retomamos outra cena de Lispector, em O lustre, quando a personagem Virgínia está no trem após ter ido à cidade onde vivera sua infância. “Ah, o lustre. Ela esquecera de olhar o lustre. Pareceu-lhe que o haviam guardado ou então que não tivera tempo de procurá-lo com os olhos.” (Lispector, 2019, p. 280). E embora ela tivesse pensado que “o perdera para sempre”, em seguida o lustre ficara “pela primeira vez todo aceso” à semelhança de “o céu inteiro”. É interessante que neste instante entre o esquecimento e a perda, o lustre tenha se mostrado “todo aceso”. Então, se há “céu inteiro” e lustre “todo aceso” na literatura, resta ao leitor duvidar do que foi dado; multiplicar o que era único; deslocar o que era fixo.

A mulher do conto “O búfalo”, em plena queda de um amor idealizado que foi preciso deixar cair, vê, antes de passarmos à Legião estrangeira, livro de contos subsequente, “um céu inteiro” (Lispector, 2016, p. 257). Fechamos esse livro, abrimos o próximo, em que Sofia se despede do esperado para encontrar inesperadamente com o que sua escrita deixa como efeito: o tesouro esquecido, em sujos quintais, é também o efeito de leitura que sua escrita deixou no professor, seu leitor. Shoshana Felman, em “Sobrevivência postal: a questão do umbigo”, escreve, a propósito do ensino de Paul de Man, que “aqueles cuja vida e pensamento revolucionaram ‘o ensino da leitura’, aqueles cujo ensino tem sido dedicado a reformar o entendimento que é constitutivo daquilo que De Man chama de leitura, nos permitem discernir os modos pelos quais a linguagem nos faz fracassar, fazendo vacilar a expectativa que ela própria erige” (Felman, 2012, p. 22). A presente atividade, assim, se dará em formato de encontros mensais para a discussão de tais questões disparadas pela escrita de Clarice no que diz respeito à reflexão sobre os efeitos de leitura. Para isso, partiremos de contos e fragmentos de romances da autora em torno dessa questão: o fracasso, em sentido clariceano, isto é, isso que pode dar o que a construção não antecipou, que é a própria condição da leitura: uma queda em que o que cai faz deslizar o céu inteiro em céu aberto, abertura pela qual um leitor pede passagem.

Agenda do grupo:

26 de março: Apresentação da proposta e o conto “O búfalo”, de Laços de família (1960).
30 de abril: Conto “O búfalo”, de Laços de família (1960) e carta de Clarice para Tania Kaufmann, de Belém, de 8 de julho de 1944.
28 de maio: Capítulo “O banho”, de Perto do coração selvagem (1943).
25 de junho: Fragmentos selecionados de O lustre (1946).
30 de julho: Fragmentos selecionados de A hora da estrela (1977).
27 de agosto: Fragmentos selecionados de A cidade sitiada (1948).
24 de setembro: Conto “Os desastres de Sofia”, de A legião estrangeira (1964).
29 de outubro: Apresentação de propostas para o evento H(a) céu aberto, singularidades quaisquer.
27, 28 e 29 de novembro: Evento H(a) céu aberto, singularidades quaisquer.

Dia da semana / horário: Terças-feiras, das 18h às 20h.
Modalidade: on-line.
Inscrições: enviar e-mail a um dos responsáveis

Referencial bibliográfico

CIXOUS, Hélène. Three steps on the ladder of writing. Trad. Sarah Cornell; Susan Sellers. New York: Columbia University Press, 1993.
DERRIDA, Jacques. “A diferença”. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. In: ______. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
______. Paixões. Trad. Lóris Z. Machado. Campinas: Papirus, 1995.
______. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Trad. Piero Eyben. CERRADOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura. UNB. v. 21 n. 33 2012, p. 229-251.
FELMAN, Shoshana. Sobrevivência postal, ou a questão do umbigo. TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura. UFRJ. Ano XVI, nº 26, 2012, p. 17-44.
______. Shoshana Felman e a coisa literária: escrita, loucura, psicanálise. Trad. Lucia Castello Branco; Ruth Silviano Brandão. Rev. da Trad. Flavia Trocoli. Belo Horizonte: Letramento, 2020.
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora/ Contra Capa Livraria/ Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, 2015.
LISPECTOR, Clarice. “O búfalo”; “Os desastres de Sofia”. Todos os contos. p. 248-257; p. 261-279. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
______. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
______. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
______. “Carta Belém, 8 de julho de 1944”. Todas as cartas. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. p. 80-83.
______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade [sobre ética e política em Jacques Derrida]. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
TROCOLI, Flavia. A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno. Campinas: Mercado de Letras, 2015.
______. Clarice Lispector, Hélène Cixous, e a miopia como procedimento. CURRÍCULO SEM FRONTEIRAS, v. 21, n. 2, p. 540-552, maio/ago. 2021.