Coordenação: Mariangela de A. Maximo Dias (mariangelaamd@uol.com.br)

As elaborações de Brun (1996) em torno dos efeitos psíquicos paradoxais da cura de crianças submetidas ao tratamento de câncer na infância constitui um estudo vigoroso da reanimação dos vestígios inconscientes do voto infanticida que habita o inconsciente. Esse estudo realizado concomitantemente ao acompanhamento longitudinal dos pais dessas crianças, além da própria criança, esbarra na constatação desconcertante de que a cura física da doença potencializa uma outra cena, a da dimensão de uma criança morta, isto é, a doença da criança ativa processos psíquicos inconscientes que atualizam o status precário da vida. No inconsciente, no entanto provoca a autora, não há lugar para a precariedade, trata-se de outra coisa. Brun destaca com acuidade que a experiência traumática da doença reanima nos pais o abismo entre a criança real, objeto de cuidados, e a criança da cena onírica em sua dimensão fantasmática que a criança real não consegue mais conter como hábil anteparo. São muitos os modos através dos quais essa dimensão se declina na vida psíquica e no trabalho analítico, a saber: a criança abandonada, a criança perdida, a criança morta, a criança não-nascida, a criança odiada, entre outros. O limiar da constituição do campo psicanalítico é já marcado pela repercussão da condenação à morte de uma suposta criança prestes a nascer. Stein (1979 apud Brun, 1996, p.93) recorda que Breuer abandonou o tratamento de Anna O quando ela apresentou manifestações de parto na transferência. Já Freud não recuou frente a constatação dos restos e ressonâncias na transferência e nos sonhos, da figura indelével da criança em sua majestade destinada à queda.

Freud ([1900] 1972), ao analisar o tópico dos sonhos típicos dedica sua atenção ao tema dos sonhos de morte de pessoas amadas. Dentre alguns exemplos relatados, o sonho da criança morta numa caixa leva a sonhadora a encontrar através das lembranças infantis a depressão de sua mãe que desejou ardentemente que a criança que ela estava gestando morresse, isto é, a própria sonhadora. A análise do sonho leva Freud a declarar que o desejo de morte da criança é gestado na infância e encontra seu despertar através de um desejo atual. Só a força do desejo infantil se constitui no capital do sonho. Cabe interrogar então: A que criança se dirige o voto infanticida que a análise do sonho traz à luz?

Leclaire (1977) afirma que há um desígnio a ser cumprido por cada um, um luto, uma criança a matar, sem o qual paira a ameaça de extinção do desejo. “Quem não cumpre, e refaz continuamente, este luto da criança maravilhosa que poderia ter sido permanece no limbo e na claridade leitosa de uma espera sem sombra e sem esperança; mas aquele que acredita ter, de uma vez por todas, ajustado as contas com a imagem do tirano afasta-se da fonte de sua genialidade, e julga-se um espírito forte frente ao reino do gozo” (p.11). Há um trabalho psíquico a cumprir que é impossível de ser alcançado em sua totalidade, mas impossível de ser evitado já que há restos nesse trajeto que cumpre serem reconhecidos.

O autor aponta que toda ordem familiar se encontra ancorada na figura da criança maravilhosa que fomos nos sonhos daqueles que nos conceberam ou que nos viram nascer. Não é suficiente matar os pais, pois é preciso ainda matar a representação narcísica do menino-rei. A fantasia “mata-se uma criança” desenterrada de forma laboriosa no trabalho analítico põe à prova “a constância da força de morte que nos mantém abertos ao discurso do desejo” (LECLAIRE, 1977, p. 13).

Contaremos ainda nesse percurso com as reflexões de Bines (2022) acerca da presença do infanticídio na literatura. O exame das experiências liminares onde a convocação da criança morta cumpre nesse campo a função de dar contorno a um impossível de representar, não são alheias a reflexão que nos interessa quanto a demarcação dos resíduos, fragmentos, restos desse desejo originário que participa da constituição subjetiva.

Bibliografia:

ANSERMET, F. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Contra-Capa, 2003.
BINES, R.K. Infância, palavra de risco. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2022.
BRUN, D. A criança dada por morta: riscos psíquicos da cura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
CHATEL, M-M. Mal estar na Procriação, as mulheres e a medicina da procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico. 1995.
FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In: Obras Completas de Sándor Ferenczi. São Paulo: Martins Fontes, 1992. v. IV. p. 97-106.
FREUD, S. ([1900] 1972) A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
_________. ([1982-93] 1987)) Um caso de cura pelo hipnotismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. 1. Rio de janeiro: Imago, 1987.
_________. (1907) Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol.10. Rio de janeiro: Imago, 1977.
_________. (1908) Sobre as teorias sexuais das crianças. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund. vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
_________. (1913) O motivo da escolha dos cofrinhos. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Arte, Literatura e Os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
_________. (1914) Uma introdução ao Narcisismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1974
_________. (1917[1915]) Luto e Melancolia. In: In: Obras incompletas de Sigmund Freud: neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
_________. ([1918] 1914) História de uma neurose infantil. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v.17. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_________. (1931) Sexualidade Feminina. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Amor, Sexualidade, Feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
_________. (1933) Feminilidade. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Amor, Sexualidade, Feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
__________. (1937). Construções em análise. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
LECLAIRE, S. Mata-se uma criança. Rio de janeiro: Zahar Editora, 1977.
POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Rio de janeiro: Zahar Editora, 1990.

O grupo de trabalho ocorrerá mensalmente e a inscrição deve ser realizada com o coordenador da atividade: mariangelaamd@uol.com.br

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