(Conferência de Abertura  – 2003)

CONTARDO CALLIGARIS*

É um prazer imenso falar com vocês, agradecer as boas vindas e a simpática apresentação. Além da simpatia pelo projeto Semasoma, o que me levou a aceitar esse convite foi algo que podia constituir uma dificuldade: meu primeiro curso nos Estados Unidos, em 1994, na New School de Nova York, foi sobre os reguladores estéticos da sociedade contemporânea; curso que repeti no Departamento de Antropologia, em Berkeley, em 96. Repeti, na verdade, como faço agora, e vocês sabem que a gente, quando “repete” um curso, faz sempre uma coisa totalmente diferente. Enfim, acabou ficando difícil não aceitar o convite para esta ocasião específica, porque faz tempo que eu estou pensando sobre o modo como escolhas estéticas substituem a questão de escolhas éticas no nosso mundo.

Não sei por que tenho uma tendência a fazer revisões do meu passado (é menor do que um testamento; são revisões), quer dizer, tenho uma certa tendência a voltar ao que eu aprendi, ou pelo menos ao que era o clima na época de minha formação, e repetir um pouco o caminho entre o que eu aprendi naquela época e o que eu acabei pensando, sei lá, 25 anos mais tarde.

Gostaria de começar com o seguinte: primeiro que, efetivamente, nos anos 70, a idéia de uma estética do desejo, uma estética que pudesse ter alguma competência na matéria de regular os nossos desejos, certamente não teria vindo à cabeça de ninguém. Eventualmente, havia uma proposta de que houvesse uma ética do desejo, e se eu tivesse que resumir diria que a idéia era: desejo é uma coisa boa, desejar é bom, e o gozo é uma coisa ruim, gozar é ruim. Essa era uma idéia clara, nos anos 70. Se lá tivesse chegado um antropólogo marciano, ou alguém transportado do futuro para lá, teria saído com essa idéia de que havia uma oposição pertinente entre gozo e desejo: desejo era bom, gozo era ruim.

O gozo sério, verdadeiro, era francamente ruim, porque, no fundo, gozar significava algo como entregar-se de mãos e pés amarrados nas mãos do outro. Uma espécie de vislumbre masoquista que tomava imediatamente a figura um pouco deprimente da aspiração de ser um nenê desamparado, uma espécie de extensão do corpo materno. Isso parecia ser no fundo a melhor apresentação do que a gente verdadeiramente conseguiria, se se aventurasse a gozar: uma aventura mortal ou quase.

Havia outro gozo, que chamávamos de gozo fálico, que parecia praticável, mas inevitavelmente fútil, implícita ou explicitamente vergonhoso, e um pouco covarde. A idéia era a seguinte: um gozo sério é esse gozo de entrega total ao outro; o gozo fálico é um negócio do tipo “não vou me entregar, mas vou te fazer desejar”. Ficava implícito, então, esse lado fútil, vergonhoso e covarde, e havia um juízo moral negativo sobre esse gozo, que parecia ser o único verdadeiramente praticável.

E, lógico, havia um terceiro gozo – todo mundo sabe disso – que era o gozo feminino. Claro que ele parecia de acesso um pouco complicado para os homens, mas era idealizado absolutamente por todos; no mínimo, ele parecia um mistério que resolveria o problema dos outros dois gozos; no gozo feminino, quem sabe, fôssemos capazes de gozar sem perdermos, ou perder-nos, e de nos defendermos contra o supremo sacrifício. Enfim, não vou entrar nos detalhes dessa história, porque muitos de vocês devem ter alguma familiaridade com a psicanálise, particularmente com a psicanálise francesa dos anos 70. O importante dessa história é que desejar era bom e a oposição a desejo era gozo. Desejar era bom na condição de que fosse um verbo intransitivo. Lembro que nos anos 80 dei uma palestra com este título: Desejar, verbo intransitivo.

Por quê? A psicanálise (a psicanálise que aprendíamos), afinal, nos dizia que o objeto na direção do qual corríamos estava, na verdade, atrás da gente; era um objeto há tempos perdido e, no fundo, nem era um objeto, éramos nós mesmos, reduzidos a um nada nas mãos maternas. A mesma psicanálise também não tinha nada a dizer sobre o que estaria certo, o que seria moral desejar ou não desejar; apenas podia dizer que desejar era bom, na condição de que desejássemos sem acreditar que algum objeto poderia enfim nos fazer gozar e, portanto, satisfazer o nosso desejo. Esta era a única e verdadeira indicação ética: vocês não só podem, mas devem desejar; isso é bom, mas na condição de que vocês não acreditem que alguma coisa possa satisfazer o desejo, não acreditem que exista um objeto adequado ao seu desejo.

Vista pelo antropólogo marciano ou pelo antropólogo do futuro, do qual falei antes e ainda vou falar, a psicanálise pode aparecer, desse ponto de vista, como uma disciplina perfeitamente pós-moderna. E por quê? No fundo, porque não há uma doutrina do bom uso do prazer, não há uma norma moral do ‘bom desejar’. A única diretiva é que não há bem supremo, ou melhor, um bem supremo é um engodo mortal, e o que nos define é o fato de que desejamos, ou seja, o que nos define é uma insatisfação criada por uma falta inicial, originária, e é bom saber que nenhuma das cenouras atrás das quais nós possamos correr teria o poder de compensar essa falta. Aliás, cuidado! Compensar essa falta seria o fim.

Em suma, o nosso antropólogo do futuro poderia perfeitamente dar essa descrição da psicanálise em uma palestra que estaria dando aqui em 2150, com o título Freud com Henry Ford, por que a idéia não é ter o carro dos seus sonhos, mas você poder trocar de carro a cada ano. Se o antropólogo tivesse um interesse mais sexual, e menos, digamos assim, marqueteiro, poderia também dar a essa palestra o título Freud com Sade (Lacan deu uma palestra quase com esse título: Kant com Sade). Funcionaria um pouco menos no que concerne ao próprio Freud, porque aparentemente Freud – uma vez descoberto que o verdadeiro objeto de gozo estava atrás da gente e que o gozo é o fim da história – fez uma escolha peculiar, em matéria de vida sexual: absteve-se.

Mas a grandíssima maioria dos psicanalistas ficou com Sade, não com Freud. Nem por isso pararam de ter uma vida sexual, e a grande maioria das pessoas também. Sade é perfeitamente exemplar, digamos assim, do tipo de ética do desejo que apresentei sumariamente antes. Por quê? Porque em Sade, para quem se deu o tempo de ler um pouco as obras do Marquês de Sade; em Sade, gozar é bom. O libertino sadiano está sempre procurando a situação e o lugar em que valeria a pena gozar; mas nunca dá certo, e isso é justamente o que garante que ele não pare de inventar muitas coisas. Então, ele amarra, estrangula, dá golpe baixo, golpe em cima, faz na frente da mãe, mata… A riqueza da combinatória é garantida de alguma forma pela abstenção: não gozarei, não aqui, ainda não. O libertino sadiano é um mestre não do coito interrompido, mas da ejaculação interrompida. E, aliás, quando enfim goza aos berros (geralmente), ele tem uma qualidade ficcional, que naturalmente todo mundo inveja: ele não está, contrariamente à maioria dos homens, a fim de um cigarro, de uma ducha, ou de ligar a televisão. Nada disso! Ele recomeça imediatamente. O que prova que Sade queria ser mestre da ejaculação interrompida.   Sade não pára de fantasiar. É esse o destino do verdadeiro libertino sadiano.

Então, nosso antropólogo do futuro proporia uma palestra com o “Freud com Henry Ford e Sade”. Por mais que esse título possa nos parecer provocador e engraçado (ele é, claro, uma pequena gozação), na verdade, não há por que a psicanálise não ser uma disciplina para seus tempos, uma doutrina de como somos, e não de como deveríamos ser. E, de certa forma, o fato de que esse trio exista ou seja assim pensado – Freud com Henry Ford e o Marquês de Sade – seria, sobretudo, mais uma confirmação de que a psicanálise escuta o sujeito do seu tempo, o sujeito moderno.

Resumindo, o nosso-sócio antropólogo do futuro constataria – tendo lido Freud, considerando seu conhecimento de Henry Ford, e tendo lido Sade – que, nessa época e particularmente na segunda metade do século XX, gozo e desejo eram opostos. O desejo só tinha a obrigação de sua própria manutenção, que era sintônica com as necessidades do modo de produção na época (é claro que nenhum objeto deve nos satisfazer). E não havia nenhuma (ou havia pouca) normatividade no uso dos prazeres, o que é também sintônico, sobretudo a partir dos anos 60, com a necessidade diversificada da produção (é preciso que desejemos coisas diferentes, variadas). E ele teria razão de dizer isso, e de resumir a nossa época dessa maneira. Teria razão, mas só até certo ponto, porque talvez dizendo isso ele perdesse de vista uma fonte reguladora do desejo que nos define e que é essencial.

Porque não é bem verdade que não existem regras de conduta para o desejar, fora a necessidade que já mencionei de manter o desejo ativo, ou seja, de mantê-lo insatisfeito. Há uma outra e, na verdade, uma nova fonte de regulação do desejo que nos define. A revolução moderna, digamos assim, século XVII e século XVIII, certamente parece passar, ou nos levar, de uma época em que havia normas sobre os bens e sobre o bom uso dos prazeres (sem dúvida, havia um bem supremo, até mesmo a contemplação divina que nos recompensaria enfim) a uma época em que não haveria normas para o desejo, salvo mantê-lo em vida e, também, como conseqüência, nenhuma norma dos prazeres a não ser a condição de que nenhum fosse conclusivo.

Mas não é só isso. Nosso antropólogo, para entender melhor o que aconteceu nesses dois séculos decisivos, deveria primeiro voltar a Sade, e ler Hegel junto com Sade (não tanto Kant, que complica um pouco). Em Sade, deveria se perguntar, além do que já constatei, por que diabo a libertinagem está tão ligada à questão do poder? Por que o jogo do poder se torna tão imediatamente central no exercício erótico? (isso nas fantasias sadianas). Primeiro, ele deveria se perguntar isso em Sade; segundo, em Hegel. É claro que não precisaria ler tudo, mas poderia ler a Fenomenologia do Espírito, e particularmente o começo, o fim do primeiro capítulo seria suficiente e bastaria para descobrir que a grande novidade moderna é que qualquer procura de um objeto de satisfação é, para nós, mediada por uma demanda de reconhecimento.

Para traduzir tudo isso em termos, digamos assim, com os quais estamos mais acostumados, em termos mais recentes: a procura de um objeto de satisfação é, para nós modernos, a procura de uma condição que é decidida pelo reconhecimento, pelos outros, ou seja, a procura do que a gente chama de um status. Se eu quero uma Lótus, talvez seja para gozar da aceleração, mas sempre será também porque ela é um objeto que enfeita de alguma forma minha imagem. Desse ponto de vista, não há nenhum risco, na verdade, de que a Lótus me satisfaça, anulando a si mesma e anulando um desejo, meu desejo. Não há nenhum risco porque, por mais que eu possa me sentir muito feliz dirigindo a tal Lótus, minha demanda de reconhecimento é infinita; ela transcende, completamente, a Lótus ou qualquer outro brinquedo.

Armado com essas duas leituras, o nosso antropólogo descobriria, talvez, a razão do extremo sucesso e da especificidade do desejo moderno. Por que é o desejo e não o prazer que nos define? Por que é o fato de desejar – e não o prazer ou o tipo de prazer que nos autorizamos a ter – que nos define?

É claro que no Antigo Regime havia desejo, cobiça… O desejo não foi inventado na modernidade, mas, durante um enorme campo da experiência humana, digamos até a época pré-moderna, estávamos fadados ao contentamento. O campo da diferença social não era um campo praticável pelo desejo. Se você não gostasse de ser camponês, servo ou burguês…,bom, podia esperar a próxima reencarnação. Não adiantava fantasiar condições diferentes. Melhor contentar-se.

A Revolução Francesa é sempre considerada uma data crucial no início da modernidade, porque, simbolicamente, é a partir desse momento, que não preciso mais desejar só objetos, riquezas e prazeres, que é fácil regular: há prazeres e objetos bons e prazeres e objetos ruins. A partir da Revolução, eu posso também desejar ser outro, alcançar uma outra condição – aqui, regular se tornar problemático, porque seria inibir o motor essencial da diferença social. Ser outro, pensando para cima ou para baixo, significa o quê? Significa “produzir” – no sentido em que a gente diz que alguém é uma mulher produzida – uma imagem na qual os outros reconhecerão o status que eu procuro.

A novidade que introduz essa revolução é que o status moderno não é objetivo, não é natural (como podia ser objetivo e, de alguma forma, “natural” o status no Antigo Regime). O status moderno é subjetivo, não no sentido de uma liberdade sartriana (em que eu diria: amanhã de manhã decido quem serei), mas subjetiva no sentido de que ele depende da apreciação subjetiva dos outros.

É interessante notar, que, claramente, para muitos dos grandes pensadores do século XVIII, a questão da apreciação subjetiva pelos outros era completamente central, em particular na tentativa de imaginar como seria uma sociedade moderna. Muito antes que existisse o que hoje chamamos de ‘uma sociedade narcisista’, muito antes disso, esse tema estava no ar. Ou seja, perdemos uma norma possível dos prazeres e ganhamos, em troca, não um desejo insatisfeito e desregrado, mas um desejo (tudo bem) insatisfeito, mas regrado por uma necessidade estética, propriamente estética. Se tivesse que parodiar um título famoso de Koyré, por se tratar de um livro que é chave na descrição da passagem para a modernidade, em vez de Do mundo fechado ao universo infinito poderia chamá-lo de Do prazer regrado ao desejo bonito.

O problema aqui é: o que é um desejo bonito? A resposta é complicada, certamente mais complicada do que as respostas sobre as regras que podem ser impostas aos prazeres, ou ao prazer; e complicada pela razão seguinte: a normatividade estética, a idéia de que teríamos que desejar o bonito (ou desejar bonito) é uma invenção democrática; aliás, ela é sintótica com a idéia da vida democrática. Essa idéia supõe um constante jogo interpessoal narcisista, no sentido moderno. O sentido moderno de narcisimo, como vocês sabem, é um sentido que afasta completamente esse conceito do modelo narcisista clássico do espelho, segundo o qual o que vemos no espelho é uma imagem à qual tentamos nos conformar. Na verdade, essa imagem é projetada no espelho pelo olhar dos outros; esse é certamente um dos grandes aportes de Lacan, já nos anos 30: ter começado a entender o narcisismo como sendo o que devemos à expectativa dos outros ou ao que os outros têm ou podem reconhecer em nós. Por exemplo, mencionei antes uma Lótus. Essa escolha já é uma certa obediência estética. Eu poderia ter dito uma Ferrari, mas seria infantil dizer uma Ferrari, porque é óbvio demais. Se eu dissesse Maserati, é óbvio que seria para não dizer Ferrari. Lótus tem também essa coisa de ter os pedais completamente deslocados para a direita, você dirige meio torto, e supõe-se que, se você gosta de Lótus, tem uma simpatia especial por uma maneira bastante esportiva de dirigir. Talvez fosse essa a imagem que eu quisesse transmitir: Como vocês me vêem com uma Lótus na minha garagem?

A modernidade vem preparando a idéia de reguladores estéticos para o desejo há bastante tempo. Vou só mencionar alguns pontos.

Vocês sabem que a idéia de gosto, bom gosto e mau gosto, é do século XVII. Ela não existe antes disso. Vulgaridade, vulgar, são termos que existem bem antes da modernidade, mas só a partir de 1750 é que vulgar significa não só o que pertence ao povo, que faz parte do povo, mas o que decididamente pertence a quem não tem bom gosto. A idéia de estética é do século XVIII. Claro que o mistério da beleza, do que é bonito, é muito antigo. Vocês encontram isso nos gregos, por exemplo. Mas falo da idéia de estética como uma questão situada do lado do sujeito; não uma questão sobre o que é intrinsecamente bonito, mas sobre o que nós achamos bonito, e por quê.

A questão moderna, então, não é o que é bonito, mas o que é a faculdade de julgar esteticamente. Essa é uma questão do século XVIII. É também só nesse século, aliás, que a questão do belo ganha autonomia. O belo, o verdadeiro e o bom não coincidem mais naturalmente. Durante séculos, em nossa cultura, presumia-se que essas três coisas devessem caminhar juntas. È claro que existe uma corrente do pensamento ocidental – que vocês certamente conhecem – que faz um esforço danado durante os séculos XVIII, XIX, e ainda um pedaço do século XX, para tentar re-naturalizar o belo e rejuntá-lo ao bom e verdadeiro. Pensem na fisionomia: do século XVIII, de Lavater até a psiquiatria positivista, até Lombroso, devia ser possível dizer, olhando a cara de alguém: “se ele está de cara feia deve ser doente”. Isso continua, e funciona, em nossa cabeça. Vocês lembram aquela campanha contra a AIDS, particularmente boa, que dizia: AIDS NÃO TEM CARA. Era uma maneira de dizer: olha, não é porque alguém é bonito que não pode contaminar você. Isso é uma herança da idéia, que ainda existe em cada um de nós, de que belo, verdadeiro, e bom devem ir juntos. Agora, a idéia de que o belo deveria corresponder a uma excelência moral, tudo isso, claro, continua, mas com uma diferença: a partir do século XVIII conseguimos pensar no belo como algo separado, distinto do verdadeiro e do bom.

Vou dar indicações interessantes de algumas coisas esquecidas. Tomemos os maiores autores do século XVIII; para quem é de tradição mais continental do que anglo-saxônica, os primeiros que nos vêm à cabeça, tanto aqui no Brasil como na Europa Continental, os primeiros nomes são, sei lá, Montesquieu e Rousseau, por exemplo. Esquece-se, não sei por que razão, que Montesquieu é autor de um extraordinário ensaio sobre o gosto, e que é praticamente indispensável ler o Ensaio sobre o Gosto juntamente com O espírito das Leis. E que Montesquieu mesmo não pára de repetir que o que acontece com a legitimidade e a autoridade na revolução moderna acontece ao mesmo tempo na nossa relação com o belo.

Se vocês tomarem Rousseau, por exemplo, leiam ou releiam o capítulo IV, de um dos livros que mais influenciou o pensamento ocidental, o Emílio. Digo que nos influenciou bastante porque acabou sendo verdadeiramente a raiz da metade do que se pensou em matéria de pedagogia durante quase dois séculos. Nesse capítulo do Emílio, Rousseau se coloca a pergunta: como Emílio vai conseguir ter bom gosto? Como Rousseau vai fazer para que Emílio tenha bom gosto? E nessa ocasião, ele diz uma coisa muito interessante, que demonstra a sua capacidade de entender – o que é extraordinário, no meio do século XVIII – que, no futuro, o verdadeiro mestre seria a opinião publica. Ele diz que o bom gosto é o gosto da maioria; é a boa conformidade ao gosto da maioria. Existem centenas de interpretações do Contrato Social, para tentar explicar o que Rousseau entende por “vontade geral”, a vontade geral do povo, a qualidade geral da vontade do povo, mas, que eu saiba (claro que estou muito longe de conhecer toda a bibliografia); ninguém tentou explicar esse conceito misterioso de vontade geral a partir do que Rousseau diz sobre o bom gosto como sendo o gosto da maioria.

Bom, há um outro traço interessante a partir do começo do século XIX. Há uma reação muito forte contra a idéia de que a estética nos permitiria regular as nossas vidas. Essas reações – vou lhes dar dois exemplos – são eminentemente reacionárias. A maior reação – isso vai parecer mais claro depois de examinarmos o fenômeno do dandismo, que é crucial desse ponto de vista – é a reação de Thomas Carlyle, em um livro famoso, que se chama Sartor Resartus, que é uma crítica ao dandismo inglês. Essa crítica é algo como: “olhe só, esse pessoal está querendo organizar uma sociedade a partir das aparências; enquanto, na verdade, poderíamos organizar uma sociedade a partir das essências”.

Agora, quero voltar atrás, digamos assim, no tempo, e pelo menos assinalar o seguinte: que houve um grande sociólogo, Norbert Elias, que, num livro magistral, O Processo Civilizatório, mostrou que, desde os séculos XVI e XVII, a sociedade ocidental vem se preparando para se organizar a partir de reguladores estéticos. É o que demonstra o fato de que, nesses séculos, os tratados de boas maneiras mudam. Mudam como? A questão não é mais, como era antes: quais são as maneiras que convêm na corte? Até então, essas eram as boas maneiras. Havia maneiras que pertenciam a certa essência social. Se você era aristocrata, teria que se comportar desse jeito; nesse lugar, na corte, se come desse jeito; um pouco parecido com aquelas leis que sumiram no fim do século XVIII, que eram as leis suntuárias. Vocês sabem que até o fim do século XVIII, no Antigo Regime, existiam leis que diziam que tipo de luxo e consumo era permitido a cada classe social. Então, por exemplo, a Lótus, só podia tê-la quem fosse marquês. Você podia dizer: “Ah! Mas eu tenho dinheiro para comprá-la”. Não adiantava. Só tinha direito a esse tipo de consumo uma específica classe social.

A questão hoje, então, não é mais o que convém ou não convém na corte. A questão é: “O que o vizinho vai pensar de mim?” O que justamente produz um regulador que é estético. Se eu limpar a minha boca na camisa do vizinho de mesa – coisa que não era tão estranha nos séculos XVI e XVII –, o que o pessoal vai pensar? A questão não vai ser: será que eu vou ser reconhecido como tendo legitimamente lugar nesta mesa? Não, a questão é: será que ele, o vizinho, vai gostar de mim? Isso é uma novidade. Bom, se eu tivesse que dar indicação bibliográfica não sobre a história, mas sobre o peso desse assunto e o funcionamento dos reguladores estéticos, o sociólogo contemporâneo moderno, digamos assim, que escreveu sobre isso, foi Pierre Bordieu, em seu livro A Distinção, crítica social do julgamento, que é bem interessante.

Em suma, passa-se de uma norma dos prazeres bem regrados, que nos parece ter sido uma norma simbólica, porque afinal emanava de cima (era o que Deus dizia que era certo, o que era um bom prazer e o que não era), para uma normatividade estética e, de certa forma, democrática (porque nasce do convívio social).

Bom, o estranho é que consideramos essa passagem muito freqüentemente como uma perda: teríamos perdido normas simbólicas e teríamos sido entregues à “leviandade” narcisista. É como se esquecêssemos permanentemente as extraordinárias e irrenunciáveis mudanças e novidades que são efeitos dessa passagem. As extraordinárias mudanças são aquelas mudanças sociais que foram acarretadas pela modernidade, ou seja, fundamentalmente o fim do Antigo Regime. Para explicar um pouco isso, vou tomar um fenômeno crucial da época revolucionária, ou seja, do fim do século XVIII. Há um fenômeno que é muito facilmente desprezado. Na verdade, é desprezado porque é, sobretudo, desconhecido. Trata-se, como disse antes, do dandismo.

No meu curso em Berkeley, no tempo em que era professor visitante, fiz uma pequena pesquisa histórica sobre uma música (que não sei se muitos de vocês conhecem), e cheguei a algumas conclusões. A musica é aquela que se tornou um hino de batalha do exército continental americano durante a guerra de independência. Esse hino é Yankee Doodle. As letras de Yankee Doodle são estranhas: “Yankee Doodle foi para a cidade cavalgando um cavalo, Yankee Doodle, Yankee Doodle Dandy, enfiou uma pena no chapéu e a chamou de macaroni”. É estranho que milhões de colonos americanos tenham marchado contra as balas inglesas cantando essas letras!

Aprendi primeiro que, na verdade, essa musiquinha era satírica. Quem cantava essa música inicialmente eram os ingleses, para zombar dos maltrapilhos, ou seja, o exército continental americano que, evidentemente – como vocês sabem – só usaram algo vagamente parecido com uniformes bem no fim da guerra; no começo eram os colonos, as milícias, que vinham como podiam. Muito bem! Os ingleses cantavam isso para zombar dos patriotas americanos, mas, por que os americanos se apropriariam de uma provocação? Por que razão? O que me ajudou a descobrir a resposta foi uma coisa que me intrigava: o que essa historia de “massa” (macaroni) tinha a ver com isso? E a massa tem a ver mesmo, pelo menos na minha interpretação. No fim do século XVIII, em Londres, o macaroni era o clube dos dandies ingleses. O clube que eles freqüentavam e onde, aliás, comiam a massa, macaroni.

Se a alusão for verdadeiramente ao Macaroni Club, isso significa que dá pra entender que os ingleses, cantando essa música, juntavam duas categorias de pessoas que tinham algo em comum: queriam parecer o que não eram. Os colonos maltrapilhos americanos queriam parecer soldados, e os elegantes de Londres queriam parecer nobres. Eram, todos, pessoas que queriam parecer o que não eram. Eu não sei o que os dandies pensavam da revolução americana – provavelmente nada – e não sei o que os colonos americanos pensavam… acho que não tinham muito tempo para pensar alguma coisa sobre os dandies de Londres. Mas os ingleses tinham razão de juntar em sua sátira os dandies e os colonos americanos. Por quê? Porque naquela época ambos eram combatentes da liberdade – claro que de maneiras diferentes – e inimigos dos ingleses, porque não há como instaurar uma ordem republicana sem destruir o antigo regime de divisão social e substituí-lo por um regime fundado na apreciação pelos outros, ou seja, no parecer; no parecer o que a gente não é.

Mas fiquemos um pouco com os dandies, para salvá-los da reprovação que a cultura acadêmica geralmente lhes reserva. Vocês sabem que o mais famoso era Beau Brummel (Bonito Brummel). Ele inventou propriamente o conceito, que se instalou, aliás, na língua inglesa, bem no sentido de um conceito na fronteira entre estética e ética, a chamada fineness. Não é a mesma coisa que elegância; fineness, ou seja, a qualidade de quem é fine; to be a fine woman, a fine man está na fronteira da elegância como uma certa beleza moral.

Só muito mais tarde, décadas depois de sua fundação – se é que se pode dizer assim – é que o dandismo se tornou extravagante. Brummel não tinha nada de extravagante. Para ele, como para Rousseau, aliás, o bom gosto era exatamente o gosto mais próximo do gosto da absoluta maioria. A elegância se definia como estar vestido de tal forma que o sujeito não atrairia o olhar de ninguém. Isso podia levar seis horas; levar quatro horas para fazer um nó em sua gravata. Por quê? Porque justamente era preciso que o nó saísse de tal forma – o que é a essência da modernidade – que para todo mundo parecesse que o nó tinha sido feito por acaso. Essa era a verdadeira complicação. Então ele fazia, refazia, fazia, até que o nó saísse por acaso. Claro que não era por acaso, mas devia parecer por acaso.

A fineness dos dandies do fim do século XVIII foi, de fato, extremamente importante para a história européia, porque foi o nascimento de uma nova aristrocacia que se infiltrou no Antigo Regime. O próprio rei George IV não podia tolerar ser rei se não parecesse fine aos olhos de Brummel. De acordo com a anedótica – Brummel nunca escreveu nada, claro –, fazia parte da fineness uma forma de destacamento do que era muito vulgar. Era muito vulgar ter opiniões sobre as coisas, tanto que Brummel circulava com um mordomo, que era, sobretudo, encarregado de ter opiniões. Conta-se uma história do próprio rei perguntando: “Brummel, eu soube que você está vindo de uma viagem aos Lakes (os lagos, no norte da Inglaterra, que eram bem conhecidos pela primeira poesia romântica e era um lugar muito valorizado na Inglaterra da época)… então, qual dos lagos você preferiu?” E Brummel, virando-se para o mordomo que estava sempre atrás dele: “Qual dos lagos eu preferi?”

Essa anedótica imensa sobre os dandies – que foi transmitida por diversos autores do século XIX – é, de fato, a história de como uma apreciação estética conseguiu se tornar socialmente mais importante do que a nobreza – isso num país monárquico como a Inglaterra –, a ponto de ter sido a única razão pela qual um judeu, Disraeli, conseguiu ser ministro da rainha Vitória, coisa que teria sido impensável naquela época, conseguiu, embora fosse judeu, porque ele era um dandy!

O potencial revolucionário dessa maneira de pensar está em que a questão não é mais “Quem é um gentleman?” mas “O que é um gentleman?”. A partir do momento em que você se pergunta “O que é um gentleman?” introduz-se o imaginário, ser um gentleman não é real nem simbólico. Alguns de vocês podem dizer: Pois é! Grande negócio, né? Muito obrigado! No fundo, entre os D’Orléans e Bragança e os emergentes talvez fosse melhor ficarmos com os Orléans. E alguns acrescentem que talvez (aliás, numa curiosa insistência no que é estético) os D’Orléans e Bragança sejam menos cafonas que os emergentes. Então, talvez, fosse muito melhor ficar com a nobreza antiga.

Aqui, cuidado!

Primeiro: o dandismo foi a origem não só da crítica à divisão social do Antigo Regime, mas também de uma outra crítica, muito importante, que é a critica à feiúra – crítica estético do mundo capitalista. O dandismo, no começo do século XIX, atravessa o Canal da Mancha e chega à França. Como se sabe, ele conquistou radicalmente os maiores escritores franceses da época: Barbey d’Aurevilly, Baudelaire (naturalmente), Stendhal e Balzac. Conquistou radicalmente, e, em particular, se vocês quiserem ler ao menos um texto, sugiro um de 1830, de Balzac, que se chama O tratado da vida elegante, em que verdadeiramente Balzac tem uma visão extraordinária do fenômeno do dandismo. Ele define efetivamente a elegância como a fundação da aristocracia do futuro e como, propriamente, um valor moral, o que ele chama de superioridade moral da elegância. Ele usa exatamente esse termo “superioridade moral”, que ele define assim nesse tratado de 1830: “Esse fato extraordinário, cujo constante exercício pode nos fazer descobrir de repente as relações, prever as conseqüências, adivinhar o lugar e o alcance dos objetos, das palavras, das idéias ou das pessoas.”

Em Baudelaire, ainda mais, essa possibilidade de substituir a apreciação moral por uma apreciação estética é usada pelo dandismo francês. Há uma grande diferença entre o dandismo francês e o dandismo inglês: é que o dandismo francês produziu um número relevante de textos; os dandies franceses foram todos grandes escritores. Então, essa elegância, essa fineness, tornou-se um critério estético capaz não só de forçar uma revolução social – como tinha acontecido na Inglaterra – mas de criticar a própria sociedade capitalista, que eles estavam produzindo. E essas primeiras grandes críticas da sociedade contemporânea, de sua feiúra, são certamente as de Baudelaire, e são críticas em nome do dandismo.

Em suma, primeiro, o dandismo foi capaz não só de criticar a sociedade mas também de iniciar a crítica estética do mundo contemporâneo. Segundo, o que passa a ser o mestre moderno, ou seja, a dita e misteriosa opinião pública é que qualquer um é chamado a procurar aprovações, apreciações que são movediças, complexas.

Não sei se vocês se lembram de Paulo César dos Santos, que foi o homem que, em 1999, assaltou um banco e que agora está na prisão, dizendo que ele queria acabar com a violência no Rio. Ele disse aquela famosa frase: “O meu filho passando fome e gente fazendo festa para cachorro”. Paulo César dos Santos poderia ter dito que não é fine dar uma festa de aniversário para uma cadela, quando há crianças que não têm o que comer. Vocês dirão: “Espera, essa não é uma consideração estética, essa é uma consideração moral”. Pois é! Eu não acredito. Eu acho que é uma consideração estética e, mais do que isso, sobretudo eu acho que essa consideração (a frase de Paulo César) foi eficiente por ser estética. Ou seja, se a dona da cadelinha fez alguns anos depois um leilão público (claro, se não, não tem graça) da correntinha de brilhantes da cadela em favor (acredito, não sei se já era então) do Fome Zero, foi também porque as palavras de Paulo César afetaram seu sonho de fineness, ou seja, a sua imagem. Em outras palavras, a crítica estética tem a capacidade, em potência, de criticar e impor normas, de regular. O gosto é um regulador possível, porque ele força nossa submissão à apreciação dos outros, ao que se chama de opinião pública.

Bom, lembrei que o narcisismo deixa o sujeito fundamentalmente suspenso à imagem que os outros colocam no seu espelho para que ele tente alcançá-la. Muito bem! Disse também que o narcisismo nos libertou dos laços impostos por um regime em que a divisão social era decidida por via natural ou simbólica que seja.

Também o Narcisismo inventou seus reguladores sociais, complexos, porque ele nos submete à apreciação dos outros. Agora, seria necessário acrescentar o seguinte: existe uma versão moderna do que se chamava antigamente ‘o balanço de uma vida’. Classicamente, o balanço de uma vida seria aquela contabilidade final quando, no passagem extrema, cada um de nós, na frente de Deus, vai fazer a conta do que ele fez de bom ou de ruim. É ai que ele vai saber se ganhou ou perdeu. A versão moderna do balanço de uma vida, desse balanço final, é um pouco diferente de uma contabilidade de atos ruins ou bons. A versão moderna do balanço é certamente uma narrativa: não é por acaso que o romance é uma das grandes invenções modernas, do começo do século XVIII.

O balanço de pecados e de boas ações é substituído pela qualidade narrativa de uma vida. É possível escutar isso na fala de quem por uma razão ou por outra, verdadeira ou não, se sente próximo da morte. A contabilidade do bem que foi feito – e eventualmente isso pode merecer ou desmerecer em um além – é substituída por um ‘valeu a pena’, ou um ‘não valeu a pena’. Mas o valeu a pena está mais para ‘valeu a pena porque merece ser contado’. Aliás, o dilúvio de autobiografias nos últimos vinte ou trinta anos é um efeito dessa mudança no balanço de uma vida. Valeria a pena, claro, examinar como a perspectiva de um fim de vida não como balanço e contabilidade de pecados e boas ações, mas como percurso que vale a pena ser narrado, como isso, aliás, é por si só um certo tipo de regulador estético nas nossas vidas. Ou seja, valeria a pena examinar como existe permanentemente uma estetização de nossas vidas em seu conjunto. Construímos nossa vida para queseja um scriptaceitável.

Já falei o suficiente. Para concluir e para explicar como é por que comecei um dia – sem que na época eu soubesse muito bem por quê – a pensar que o juízo estético podia valer tanto quanto o juízo moral, eu vou lhes contar uma anedota que é a seguinte:

Quando eu tinha uns 14 ou 15 anos… Eu sou italiano, morava na Itália e, claro, eu estava nos primeiros ardores de minhas paixões marxistas, e eu sabia, não tinha como não saber, que o meu pai tinha sido um resistente anti-fascista, pondo em risco a vida dele, de sua mulher e do meu irmão, que já tinha nascido, os quais tinham passado o infernal inverno de 44 nas montanhas da Grigna. Sabia, embora meu pai não falasse muito dessas histórias, que ele tinha sido resistente, só que eu não entendia por quê. O que não entendia? Não entendia, visto que meu pai não era marxista; ele tinha sido resistente, mas não comunista. Ele era membro do Partido de Ação, um partido social-democrata; o que não tinha impedido que ele levasse a sua resistência até a luta armada. Mas eu não entendia por quê. Do meu ponto de vista, a única maneira de encontrar um critério ético para condenar o fascismo era um critério fundado na razão histórica; o único critério para mim era o Marxismo. Eu não entendia como alguém podia não ser marxista e ser anti-fascista, a ponto de ter colocado em jogo sua vida e a vida de todos os seus.

E, então, irritado como só um adolescente de 14/15 anos consegue ser, um dia eu disse ao meu pai: Mas eu não entendo! O que significa? Você não foi comunista, como é que podia ser anti-fascista. Por quê? Por que razão? Ele não seguia a 3ª Internacional, então por que era anti-fascista? E daí ele não hesitou um segundo. Ele disse: “Ih… é porque os fascistas eram tão vulgares!”. É, eu achei essa resposta, na época, ‘de última’. Mas muitos anos depois, eu vim a entender que ela tinha sentido. Que tinha sentido que ele pudesse responder e justificar coisas tão decisivas a partir de um julgamento estético.

* Contardo Calligaris é psicanalista, autor de Hipótese sobre o Fantasma na cura psicanalítica: introdução a uma Clínica Diferencial nas Psicoses; Hello, Brasil – notas de um psicanalista europeu viajando pelo Brasil; Crônicas do individualismo cotidiano e Adolescência. Desde 1998, escreve uma coluna no caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo.