Autor: Marcelo Buzato

Inteligência artificial, mídias sociais e desinformação: encontro com Raquel Recuero e Rodrigo Lima-Lopes

Essa live aconteceu em 16/10/2020 no perfil do Facebook do GT de Linguagem e Tecnologia da Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Literatura (ANPOLL). O video foi gentilmente cedido pela coordenação do GT para que pessoas que, como eu, não usam FB, possam assistir.

Foi muito interessante notar como a fala da Raquel e a minha se complementaram, mesmo sem combinação prévia. A minha mais filosófica/reflexiva, buscado pensar o problema da desinformação nas mídias sociais a partir da segunda onda da cibernética (a Mente cibernético-ecológica de Norbert Wiener) do conceito de cognição inconsciente proposto por N. Kathrine Hayles. Tudo isso pra dizer que quem desinforma não é o sujeito, mas o sujeito com o seu ambiente, e quem precisa se responsabilizar pela toxicidade que está matando os modos de veridicção dos quais a democracia depende é quem explora esse ambiente comercialmente.

Registro meu agradecimento ao GT pela oportunidade de debater esse assunto com o Rodrigo e a Raquel, ambos excelentes pesquisadores de processos comunicacionais e discursivos em mídias sociais.

A concepção de linguagem em Cibernética e Sociedade: o uso humano dos seres humanos, de Norbert Wiener – PARTE 3/3

Quem lê “Cibernética e Sociedade”, com um olhar pós-humanista, sente uma ambiguidade estranha. 

De um lado, percebe-se o extremo apego de Wiener  um humanismo liberal, em alguns momentos ingênuo, em outros até pedante, tal a confiança que ele parece ter em que seus postulados não abalariam a  dicotomia humano não-humano que parece considerara imanente, daí também a dificuldade de entender-se exatamente o que ele quer dizer com a expressão “uso humano dos seres humanos”. “A linguagem é uma atividade tão peculiarmente humana”, diz Wiener, ” que dela sequer se aproximam os parentes mais próximos do homem e seus mais ativos imitadores” (p. 81).  Para além de causa da sua excepcionalidade, a linguagem é pensada pelo autor como também a sua maior conquista: “O interesse humano pela linguagem parece ser um interesse inato por codificar e decifrar, e parece ser quase tão especificamente humano quanto o possa ser qualquer interesse. A linguagem é o maior interesse e a consecução mais característica do homem” (p.84), ainda que, em si, a linguagem não passe, a juízo de Wiener, de um código a ser decifrado.

De outro lado, o humano é “sugado” pela metáfora cibernética de forma direta e violenta, reduzido ao denominador comum da teoria matemática da informação/comunicação, um ser social cujas interações não passam de comandos e pedidos de informação: ” Em certo sentido, todos os sistemas de comunicação terminam por máquinas, mas os sistemas comuns de linguagem terminam por um tipo especial de máquina conhecido como ser humano” (p.77). 

Essa máquina/terminal humano, para Wiener,  funciona em três níveis: um nível “mecânico” (correspondente à fonética) que contempla os aparelhos fonador e auditório e os impulsos elétricos que os conectam aos circuitos cerebrais; um segundo nível, semântico, mais problemático,  na visão de Wiener, porque não se pode tão facilmente ser caracterizado em termos probabilísticos/informacionais, como no caso dos movimentos articulatórios e auditórios do corpo, já que  relacionados com o “aparelho detector de abstrações”  que não trabalha com a linguagem “palavra por palavra, mas ideia por ideia, e, amiúde, de modo ainda mais geral” (p; 79). O terceiro nível proposto por Wiener seria o do “comportamento de linguagem”, isto é, a “tradução das experiências do indivíduo, quer conscientes quer inconscientes, em ações que podem ser observadas externamente” (p. 79), mais especificamente, “ações brutas, diretas, da espécie que podemos observar também nos animais inferiores, e do sistema codificado e simbólico de ações que conhecemos como linguagem falada ou escrita” (p. 80). Bingo, estamos de volta ao jogo da imitação no qual a linguagem é um comportamento (simbólico) observável  que traduz, diretamente, um mundo interior feito de necessidades de saber e capacidades de controlar, um mundo acessível pela observação contínua desses comportamentos e sua tradução em padrões que lhe dão previsibilidade e consistência..

Seria injusto, a despeito de qualquer coisa, reduzir esse clássico de Norbert Wiener ao próprio reducionismo linguagem = comunicação = controle que perpassa a obra. Isso, especialmente, à luz do que, 70 anos mais tarde, a cibernética nos permite compreender sobre como humanos e máquinas tornam-se de fato, a cada dia mais claramente, um sistema acional e cognitivo integrado. Numa época em que ninguém pensaria, possivelmente, em web crawling, data mining, sentiment analysis e internet das coisas, Wiener já anunciava a tese de que “a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha” e de que “no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as maquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante” (p.17). 

Mais do que tudo, é justamente o impulso inicial, dado por ele e por outros pesquisadores da primeira onda da cibernética, a um processo epistemológico de desmaterialização dos comportamentos das entidades físicas, ou de sua tradução em bits desincorporados, para o acesso ao seu “ser” mais profundo, ou de outra forma, na tradução do “ser” em “comportar-se” ou “imitar-se um comportamento”, que abre uma das perspectivas mais concretas sobre o pós-humano na era da robótica pervasiva, da aprendizagem de máquina e dos mecanismos cada vez mais sofisticados de processamento de linguagem natural. Essa perspectiva nos permite, já distanciados, a essa altura, tanto do humanismo ingênuo dos anos 1950, quanto de certos “furos” daquela primeira onda, como, por exemplo, não incluir o observador no sistema cibernético observado, pensar no que seria de fato um “uso humano dos seres humanos”, no sentido de uma integração benigna do homo sapiens aos sistemas biológicos e maquínicos que compõem seu ecossistema físico e cognitivo [6]. 

A linguagem, obviamente, por conta da sua abertura, da sua polissemia,  de fenômenos como as implicaturas, a dêixis, os atos ilocucionais, e os jogos de interpretação, marca uma zona de segurança ou resistência a certo tipo de aniquilação ou redução do humano à máquina, em lugar da sua reinvenção como ciborgue, ou seja, àquilo que não se poderia chamar de pós, mas, antes de anti-humano.

[6] HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, Ill: University of Chicago Press, 1999. 

[Veja também a Parte 1 e a Parte 2]

A concepção de linguagem em Cibernética e Sociedade: o uso humano dos seres humanos, de Norbert Wiener – PARTE 2/3

Para a primeira onda da cibernética, linguagem é comunicação e comunicação é troca de mensagens. Mensagem, em cibernética, é claro, abrange muito mais, mas também muito menos, do que o signo linguístico ou outros signos humanos. Ela é qualquer tipo de sinal composto por elementos encadeados de forma previsível/identificável que participe de um laco de retroalimentação (feedback) que conecte o sistema com seu ambiente. Assim, em cibernética, a palavra/o gesto/ a figura seria para o humano o que o feromônio ou a dança é para a formiga, a radiação solar ou os íons do solo para a planta, ou a variação de corrente elétrica para o circuito integrado. A partir daí, abre-se o caminho para outra “manobra” de Wiener que terá importantes consequências para o que se tornou hoje, a relação entre máquinas e humanos: 

“Ao dar a definição de Cibernética no livro original, coloquei na mesma classe comunicação e controle. Por que fiz isso? Quando me comunico com outra pessoa, transmito-lhe uma mensagem, e quando ela, por sua vez, se comunica comigo, replica com uma mensagem conexa, que contém informação que lhe é originariamente acessível, e não a mim” (p. 16).

Para o estudioso da linguagem, está clara a redução brutal implicada em equalizar comunicação e controle, já que o controle representa apenas um dos modos da linguagem, o imperativo, podendo a comunicação, em outras teorias da comunicação que não a matemática, exercer uma serie de outras funções [5]. Isso para não falar das modalizações, que permitem graus distintos de força a um imperativo, por exemplo, entre ordem, pedido e sugestão. Mais radical, ou simplista, ainda, é a manobra linguagem = comunicação = controle quando se pensa nos imperativos não expressos na superfície linguística, mas a partir de um “anexo” pragmático compartilhado tacitamente na cultura. Pode-se ordenar a uma criança que fique calada dizendo “quando um burro fala, os outros abaixo as orelhas”. Mas não se pode (ainda?) proibir Alexa/Cortana/Siri de falar dizendo-lhe “silêncio é bom” ou “boca de siri!”. O que dizer, então, sobre perguntarmos, sempre, aos outros, apenas aquilo que ainda não sabemos? “Você me ama?”, pergunta feita entre namorados(as) de forma estatisticamente bem significativa, por exemplo, é um pedido de informação?  

“Ademais”, continua Wiener, referindo-se ao feedback, “para o meu comando ser eficaz, tenho de tomar conhecimento de quaisquer mensagens vindas de tal pessoa que me possam indicar ter sido a ordem entendida e obedecida” (p.16). Aqui esbarramos novamente no problema da interpretação com compreensão, que é necessária se, de fato, espera-se que alguém faca algo com uma informação nova que até então na tinha, o que, é fácil suspeitar, não coincide exatamente, no mundo dos assuntos humanos, com a “mensagem entendida” na citação de Wiener. Me refiro ao “problema” da intencionalidade, essa “propriedade” dos fazeres e sujeitos humanos que, a bem dizer, psicanalistas, comportamentalistas e outros estudiosos não ratificam inequivocamente, e que, no entanto, é central na definição do humano pelo humanismo liberal a que o próprio Wiener parece aderir, ainda que ambiguamente, no livro (ver  a 3ª parte do post).

O que o reducionismo  linguagem = comunicação = controle de Wiener esconde aqui é que o sentido de algo que me é dito depende em grande medida de minha capacidade de entender a intenção de quem aquilo me diz quando o diz, ou, mais sutilmente, de provocar aquela intenção implicitamente ou disfarçar nossa intenção, mesmo falando de modo explícito. É possível considerarmos que animais e máquinas possam reconhecer, ou ao menos estimar, intenções de quem lhes dirige uma  palavra — em geral as interfaces de computador fazem inferências sobre isso a partir de comportamentos do usuário,  ou mesmo perguntam explicitamente qual seria a intenção do usuário a partir de um leque limitado de ações possibilitadas pelo sistema, como um menu. Contudo,  só humanos, até o momento, são capazes de fazer coisas como, por exemplo, perguntar se a visita quer mais um drink enquanto boceja sugerindo que é hora da visita ir embora, ou responder ao vendedor que já tem um bom fogão para evitar que um fogão novo lhe seja oferecido

De certa forma, então, com o fito de demonstrar que se pode reduzir linguagem a comandos, e, portanto, humanos e máquinas a sistemas cibernéticos semelhantes, Wiener acaba suscitando, em um leitor contemporâneo que tenha reflexão sobre a linguagem, um certo apego à ideia de excepcionalismo humano. Se isso, na verdade, traz ao leitor humanista de Wiener algum conforto, ao leitor que projeta sobre o texto certas teses pós-humanistas traz um estranhamento que é bastante significativo [CONTINUA NO PRÓXIMO POST]. 

[5] JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo (SP): Cultrix, 2010. 

[Veja também a Parte 1 e a Parte 3]

Presença, ausência, padrão e aleatoriedade: um comentário pós-humanista

Live organizada pelo Grupo de Pesquisa GPMULTI/Unicamp (Prof. Petrilson Pinheiro) em 19 de agosto de 2020. O canal do grupo é frequentado em grande parte por educadof@s do ensino básico, uma oportunidade legal de levar temas do pós-humanismo para esse público, com foco nos efeitos da pandemia de Covid-19.

Cibernética e linguagem na conversa do wetware

“LINGUÍSTICA LIVE | SEASON ONE” – Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenação Prof. Atílio Butturi Junior
12 Jun, 2020

Link para uma minha cópia pessoal (não requer cadastro em sites de mídia social)

A concepção de linguagem em Cibernética e Sociedade: o uso humano dos seres humanos, de Norbert Wiener – PARTE 1/3

“Um computador é capaz de pensar?”, continuamos nos perguntado, quase 70 anos após o famoso jogo da imitação de Alan Turing [1], e continuam, como sabemos, os dilemas que estão na base da pergunta: mente e cérebro são “substâncias distintas”? O que é, afinal a consciência? É possível pensá-la como algo independente de um corpo biológico? [2]

Concepção de linguagem da Linguística Clássica

O jogo da imitação, mais adiante batizado de teste de Turing, como sabemos, era baseado numa espécie de conversa, bastante simplificada, composta de perguntas e respostas feitas a um interlocutor que poderia ser um ser humano ou um computador (inicialmente, no artigo de Turing, um homem ou uma mulher). Assim, de início, a linguagem é vista, entre os precursores  das ciências da  computação, não como uma prática social, gestos de significação ideologicamente saturados ou negociação de sentidos/jogos de linguagem entre sujeitos situados, mas uma sequencia de correspondências entre palavras que solicitam fatos e outras palavras que os transmitem, isto é, um ato comunicativo, de troca de mensagens, não um ato de fala, de enunciação ou de cognição situada.

Humani Victus Instrumenta – Autor desconhecido (cerca de 1570)

Por isso, também, o estudioso da linguagem  têm dificuldade em conceber linguagens de computador como linguagens (seriam códigos, já que não possuem dupla articulação, nem podem gerar um numero infinito de sentenças com sentido a partir de um numero finito de elementos léxico-sintáticos) ou inteligência artificial como inteligência (já que inteligência, no caso do sujeito da linguagem, pressupõe consciência sobre efeitos de sentido devidos às suas escolhas de palavras  que englobam o que possa mudar no mundo a partir daí) ou mesmo aprendizagem de máquina como aprendizagem (porque adquirir ou aprender uma língua não é sobre imitar comportamentos certos com a frequência correta em situações corretas, apenas, mas ativar estruturas plásticas da mente-cérebro  permitirão criar, com compreensão, enunciados que nunca poderiam ter sido escutados, e portanto imitados,  antes).

O modelo matemáticao da comunicação do matemático-engenheiro-criptógrafo Claude Shannon

Não obstantes essas constatações, observamos hoje, a todo momento, pessoas e computadores “conversando” nas mais variadas situações, voluntariamente ou de maneira forçosa, como com as famosas URAs (Unidade de Resposta Audível) dos serviços de atendimento telefonônico,  num jogo em que o humano projeta  sobre a troca de símbolos uma coerência linguística que o computador não alcança,  diante do que o computador diz baseado em cálculos  probabilísticos que, por sua vez, o falante humano não conseguiria fazer “de cabeça”. Logo,  a visão de linguagem na base da cibernética vingou, apesar de tudo,  como uma forma específica de prática discursiva contemporânea, uma forma seminal, talvez, do que será efetivamente a linguagem pós-humana, numa sociedade em que a distinção entre  agentes cognitivo-discursivos  humanos e não-humanos não teria mais sentido.

A linguagem em uso passar a ser uma integração “sofrida” desses dois conjuntos de rotinas e capacidades voltados para metas definidas, como todo sistema cibernético.

Dois bots “controlando” a conversa

No livro, Wiener [3], um dos pais da cibernética, faz inúmeras referencias à linguagem, sempre concebendo-a, de forma reducionista, como troca de mensagens com sentido pré-definido. Mensagens, por sua vez, seriam arranjos codificados de símbolos  cuja forma/ordem fornece informação, isto é, possibilidades de combinação não aleatória, não conteúdos sobre algum estado de coisas concebido por um falante, ou seja, uma noção trazida da então emergente TeMatemática da Informação [4].

 Para Wiener, “A linguagem é, em certo sentido, outro nome para a própria comunicação, assim como uma palavra usada para descrever os códigos por meio dos quais se processa a comunicação” (p. 73).  Mesmo naqueles idos dos anos 1950, já se poderia ver aí uma manobra até certo ponto arbitrária, cujas consequências seriam ainda mais significativas a partir do passo seguinte: declarar comunicação e controle como sinônimos. [CONTINUA NA PARTE 2/3]

[1] TURING, A. M. Computing Machinery and Intelligence. Mind, v. LIX, n. 236, p. 433–460, 1950.

[2] TEIXEIRA, J. DE F. O cérebro e o robô: inteligência artificial, biotecnologia e a nova ética. São Paulo: Paulus, 2015.

[3] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1970.

[4] SHANNON, C. E.; WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Urbana: University of Illinois Press, 1975.

[Veja também a Parte 2 e a Parte 3]

DUAS IDEIAS PARA ESTICAR A LÍNGUA DO ANTROPOCENO

Apresentação do Prof. Marcelo Buzato no II Colóquio Internacional Antropocénico, Biopolítica e Pós-Humano, organizado por Davide Scarso, José Luís Câmara Leme, e Atilio Butturi Junior. Realizado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa e Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Lisboa, 26 e 27 de setembro de 2019. Para mais informações, você pode visitar o site ou a página do Facebook


Resumo: Uma implicação importante do Antropoceno (e do pós-humanismo) para os estudos da linguagem é que a perda da excepcionalidade do Humano em relação aos demais seres da “natureza” implica o enfraquecimento da posição da língua(gem) como elemento distintivo e hierarquizante entre nós e nossos outros não humanos. Derivada disso, nos é colocada a pergunta sobre como renegociar o conceito de língua(gem) de tal modo a abarcar o modo como os seres humanos e não humanos negociam sentidos no que agora vemos como uma mesma história. Trago para este evento duas ideias que considero promissoras. A primeira, do filósofo e ecologista David Abraham, é a de que nossa língua é a mesma língua dos bichos e das coisas quando nos atemos à sua força expressiva, e não à camada de significados abstratos fixados por convenção na língua saussuriana. A segunda, trazida do materialismo relacional de Bruno Latour, é a de que precisamos de uma língua que nos permita estabelecer um diálogo ético com Gaia. Tal língua seria composta por representações artísticas e sistemas de sensoriamento cibernético capazes de nos afetar emocionalmente e racionalmente. Ilustro com exemplos de pesquisas e textos/imagens compatíveis como essas duas direções.

Escrevendo viventes e comendo fantasmas: dilemas da matéria e da linguagem na condição pós-humana

A vertigem do pós-humano se manifesta quando tentamos montar uma “caixa de ferramentas” para entender a miríade de novas  entidades (coisas, bichos, ideias) que vêm ao mundo todos os dias por meio de práticas institucionalizadas, como a engenharia genética e a indústria da inteligência artificial, ou semi ou não institucionalizadas, como o biohacking e o movimento trans-humanista. Essa caixa não fecha, aparentemente, não só porque faltam mecanismos eficazes de diálogo interdisciplinar, por mais inter ou transdisciplinar que sejam as novas entidades e práticas, mas porque, globalmente, trata-se de lidar com a concretização empírica da ruptura da dicotomia natureza-cultura tal qual discutida, do ponto de vista conceitual, desde os primeiros escritos de Bruno Latour [1], Donna Haraway [2] e outros autores preocupados com o problema da objetificação dos seres culturais e da suberificação dos seres naturais. Isso na contramão do realismo-naturalismo científico que sustenta a proliferação de híbridos natureza-cultura que nos circunda, a qual nem as ciências duras, nem as humanas, conseguem “dominar”.

Os fenômenos que interessam a uma ótica pós-humanista são, portanto, aqueles em que imperam as ambiguidades natureza-cultura, máquina-gente, signo-matéria, texto-contexto etc. Fechar essa ambiguidade significa “matar” o bicho/coisa/ideia que se quer estudar. Aceitá-la como sendo a própria “natureza” do bicho/coisa/ideia, por outro lado, implica abandonar a ilusão de que estudando um dos dois caminhos ou vozes constitutivas dessa ambiguidade, revelaremos o outro, e vice-versa; em lugar disso, é preciso estudar, justamente, como essa ambiguidade se sustenta para, só então, talvez, desenvolver ferramentas e heurísticas para lidar com as repercussões práticas dessas agências ambíguas  na economia, na política, na ética, nas línguas, na saúde etc. Isso equivale a tentar desvendar como o bicho/coisa/ideia passa de um lado para o outro seu significado e do seu status ontológico ambíguos, sem, na verdade, sair de um mesmo  e único plano, como numa fita de Moebius, para ser quem é. O que não equivale a defini-lo como sendo isso ou aquilo. E, já que ambiguidade é uma questão tanto do sentido quanto do ser, isso implica entender como se pode gerar matéria ambígua por meio de signos, e signos ambíguos a partir da matéria.

Uma start up de grande sucesso acaba de se estabelecer no mercado alimentício fabricando, entre outras coisas, maionese artificial [3]. Não se trata de imitar a maionese tradicional com sabores e texturas de outra coisa, como se faz, por exemplo, com gordura vegetal hidrogenada em relação à manteiga (laticínio). Trata-se de buscar, em outras fontes biológicas, as moléculas orgânicas que também constituem a maionese tradicional/natural e, combinando tais moléculas por meio de certas técnicas e certos “aliados” químicos, gerar uma maionese legal, do ponto de vista material, mas não necessariamente legítima, do ponto de vista simbólico. Daí a escolha da marca NotMayo para designá-la.

Em todos os quesitos sensíveis (aroma, textura, cor, sabor etc.), trata-se da mesma entidade material, apenas não “cultivada”, mas produto de um “remix” totalmente “sem costura”, do ponto de vista/olfato/tato/paladar do comensal. Trazida da natureza por um processo cultural/técnico, como um fantasma capturado pelos Ghost Busters, a NotMayo é um significante cuja materialidade é idêntica, ou pelo menos tem uma performance idêntica, perante aos sentidos, à da maionese, mas cujo significado, quando se tenta reintroduzi-la na cultura, não pode ser idêntico ao significado “natural”, isto é, historicizado, da mistura de ovos, azeite e condimentos emulsionada mecanicamente.

É próprio das culturas humanas utilizar o simbólico, classificações simbólicas, por exemplo, para atribuir um status não-natural (ou sobrenatural) aos alimentos em potencial. Entre os índios Jivaro (amazônia peruana), por exemplo, a anta não pode ser comida porque é um ser-humano reencarnado [4]. Mas a comida artificial inaugura para nós, como todas as artificialidades, algo além de um rearranjo das categorias naturais que legitime nossos apetites (inclusive os intelectuais), nossa gula ou vontade de saber. Ela  dá espaço a uma linguagem que está “fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura” (FOUCAULT, 1988, p. 12) [5]. Ela desarranja justamente a natureza como categoria distinta da cultura (técnica, artifício).

No Japão, um evento biohacker promovido recentemente convida os participantes para um workshop de “leitura e escrita de DNA”. Primeiro, por meio de técnicas de laboratório e processos de análise bioquímica auxiliados por computador,  faz-se o trabalho de desmaterialização e transformação da molécula do DNA em um signo: uma longa sequência de símbolos que representam bases hidrogenadas que, como na sintaxe de uma língua natural, estabelecem, pela ordem específica em que aparecem, um significado específico. Esse texto precede a instanciação fenotípica de uma entidade biológica no mundo, da mesma forma que sintagmas e orações enredadas numa estrutura textual precedem a instanciação dos enunciados como textos como entidades “vivas”, em contextos reais de fala.

Ler essa sequência de bases, para os devidamente letrados nisso, significa isolar subunidades semânticas que podem ser recombinadas entre si para criar novos seres-textos no mundo, tal qual novos textos vêm ao mundo todos os dias quando fixados em algum tipo de substrato material (a voz, o papel, a tela, a escultura etc.) para propor a definição de seres metafísicos que não se pode bater no liquidificador até que virem moléculas de DNA. E tal como itens lexicais e sintagmas, sequências de bases hidrogenadas tem o mesmo “significado fenotípico” em qualquer lugar, a qualquer tempo. Porém a instanciação do fenótipo em corpo biológico está sujeita ao contexto, mutações, acidentes, doenças auto-imunes etc. Haveria, de certa forma, um genoma langue e um genoma parole, e não por acaso, mas porque o signo não se encarna sem custo, assim como a carne não se abstrai de si mesma sem trabalho semiótico.

Assim, o discurso/a linguagem marcam a ambiguidade da natureza enquanto corpo orgânico e organização de um “composto”. Quando o composto precisa ser inserido na cultura, num mesmo nicho ou campo semântico em que o corpo já estava, é ao signo que se demanda um fechamento: é maionese ou não-maionese. Os dois, não pode. E, no entanto, os dois disputam mercado, oferecem algum tipo de nutrição, têm algum tipo de impacto ambiental, amoldam-se a diferentes ideologias alimentares e assim por diante, clamando por uma caixa de ferramentas judiciais, médicas, políticas etc. que ainda não temos. Já o ente biológico processado até virar texto acomoda a ambiguidade do DNA enquanto signo e enquanto molécula (matéria, substância).

Não podemos desmembrar bichos e plantas e remixá-los ao nosso bel prazer, exceto em alguns poucos casos como transplantes de órgãos ou desenvolvimento de “raças” por “seleção genética” via procriação “natural”. Ainda assim, nesses casos, grande parte dos resultados concretos/materiais é estéril ou contraditória, cheia de “rejeições” internas ou vazia de descendência. Um “doente transplantado” é um hipônimo “pessoa”, mas também o é de “doente”. Mas sequencias de bases hidrogenadas são bichos/pessoas/plantas transformadas em signos que podem, sim, ser remixados, e, ainda sim, manter seu status ontológico de futura(s) pessoa, bicho ou planta. E por isso podem ser moralizados, judicializados, comercializados etc., mas como fazê-lo se não se define o que, afinal, eles são, natureza ou cultura? Alguma violência, simbólica ou física, há de ser usada, a menos que se repense o que é moral, justiça, comércio etc. num mundo pós-humano.

De certa forma, podemos dizer que o que caracteriza nosso tempo é a constatação empírica da “desdicotomização” entre natureza e cultura já teorizada por Bruno Latour, Donna Harraway e outros tantos. É como se, tal qual os astrônomos que foram a Sobral, no interior do Ceará, em 1905, para fotografar um eclipse em busca da comprovação da Teoria da Relatividade de Einstein, estivéssemos nós agora em posição de observar, empiricamente, a proposta de Latour, Harraway e outros (des)construtivistas radicais, em coisas tão banais como os fantasmas que comemos e os seres vivos que escrevemos. A diferença é que a Teoria da Relatividade serve, justamente, para desambiguar todas as medidas que alguém possa tomar de qualquer coisa que aconteça em qualquer parte do universo reduzindo-a, por transformações matemáticas, a um mesmo referencial fixo, fato que o próprio Bruno Latour demonstrou [6], ao passo que os (des)construtivistas/relativistas radicais vêm clamando, há pelo menos trinta anos, que o real é ambíguo, o material é linguagem, a linguagem é ontologia e nada no universo se submete a um único ponto de vista.

Nossas ferramentas, portanto, precisam ser outras. A mais urgente delas parece ser, justamente, formas de diálogo interdisciplinar verdadeiramente engajadas com a realidade, e democráticas no seu funcionamento, que se instaurem no espaço do pós-humanismo, o espaço, justamente, acadêmico e político inaugurado pela aceitação dessa ambiguidade constitutiva do nosso tempo e dos nossos seres-fazeres-significares.

[1] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos : ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

[2] HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late 20th Century. In: HARAWAY, D. J. Simians, cyborgs, and women : the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. p. 149–181.

[3] ZOGBI, P. NotCo, financiada por Jeff Bezos, traz aos Brasil maionese feita com inteligência artificial. Infomoney, 22 mar. 2019.

[4] ROSS, Eric Barry, et al. Food Taboos, Diet, and Hunting Strategy: The Adaptation to Animals in Amazon Cultural Ecology. Current Anthropology, vol. 19, no. 1, 1978, pp. 1–36 [5] ???

[5] FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Eduções Graal, 1988.

[6] LATOUR, Bruno. A Relativistic Account of Einstein’s Relativity. Social Studies of Science, v. 18, n. 1, p. 3–44, Fev 1988.