Como era minha avó?
Perguntei decidida
Ele respondeu com olhar escuro e meio sorriso
Vi uma perda naquele rosto
Pedi palavras, insisti com os olhos
Ele entendeu que era preciso dizer algo
Como era Alice?
Ele se lembrou de uma cena
Foi como um estalido
Um gemido forte – aahhh!
Ele falava calmamente sobre aquele dia
Tinha levado melancia para ela no quarto
Ele iria ao cinema e
Ela repousava, Dr. tinha dito
Pressão alta, descanse
Ela lhe beijou a testa antes do cinema?
Não perguntei, imaginei
Os lábios de Alice na testa de meu pai
Ele repetiu que lhe cortou a fruta e foi ao cinema
Mas antes que o filme terminasse, ela partiu
Ele foi chamado no meio do filme, um desses de amor
E ao entrar pela porta da sala, Dr. já vinha saindo
Não teve jeito
Silêncio, vazio
Esperei que ele me olhasse novamente
Você pode me contar como vivia minha avó?
Indaguei com os olhos
Ela costurava? Cantava? Tocava piano?
Ela cozinhava? Contava histórias?
Escrevia? Dançava?
Como era sua letra? Como era seu sorriso?
Como ela caminhava? Como ela te abraçava?
Como eram seus vestidos? Ela usava batom?
Você pode me falar do que ela sempre falava?
Eu olhei pelo entreaberto da porta e a vi recostada
Como se dormisse
Olhos fechados e mãos juntinhas
Última vez que vi mãe
Mãe tinha 53 anos. Não sei de seu funeral
Sei de sua pele lisa
De seus cabelos virgens
De seu jeito delicado de sorrir
Para não aprofundar as linhas dos olhos
Minha avó sorria, mas ele dizia dos olhos
E eu insistia em fazer nascer Alice
Para nascer neta de Alice
Reclamava minha herança
Porque sou neta de Alice
Ela era alegre? Como eram seus pés?
Como era seu cheiro? Sua voz?
Eu queria o corpo vivo de Alice, seu canto
E ele me mostrou um retrato três por quatro
Um enquadramento pequenino
Você tem outra fotografia? Quis saber
Ele me apresentou Alice sem palavras
Eu olhei para o retrato e olhei para ele
Dos olhos dele, vi nascer Alice
Vi Alice silenciosa, sorrindo
Com cabelos castanhos e pele de amor-perfeito
Na imagem calada, descobri minha herança
Seus olhos são meus
E suas linhas
Eu as quero, profundamente.
Valéria Motta, 19/08/2021
“E eu insistia em fazer nascer Alice
Para nascer neta de Alice”
Que lindo, Valéria. Tocou-me profundamente. Tive a sorte de conhecer minha avó, e sinto saudade dela todos os dias.