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Exposição “O barro, a mão e o vazio: esculturas da quarentena”

Por: Lucília Abrahão

Docente na FFCLRP/USP.
Membro do Fórum do Campo Lacaniano de SP.
Aprendiz na Oficina “Poéticas Emergentes” do artista Guido Catalán.
Amassadora de barro e criadora de vazios no Atelier Cerâmica da Villa.

A MATÉRIA, O TEMPO, O VAZIO

“Entre ela e os objetos havia alguma coisa mas quando agarrava essa coisa na mão, como uma mosca, e depois espiava – mesmo tomando cuidado para que escapasse – só encontrava a própria mão, rósea e desapontada (…) Tudo o que mais valia exatamente ela não podia contar.”  (Perto do coração selvagem, p. 15-16)

O barro é matéria orgânica decomposta, guarda restos de tecidos mortos confundidos na massa em que operam o estrume, o chorume, o morto, as secreções naturais dos que pela lama passaram, nela ficaram, depositaram um pedaço de seu corpo ou sucumbiram, e foram enterrados. A poça heterogênea de tanto(s) que não se pode alcançar… A mítica religiosa do pó assoprado como origem, a enchente diluvial, o escombro de explosões e assentamentos geológicos, o pedaço partido de vidas, as pegadas, os pelos, as unhas, os fios de cabelo, tantas raízes, talvez um pedaço de osso quase desfeito por completo, a trama mastigada como intervalo entre a origem e o fim. Dito de outro modo, a materialidade tão rica em contradição na qual jogam os sentidos de presenças e(m) seus opostos. Nele está posto o ausente em estado de útero terroso, o vestígio do que foi ontem e muito antes, e mais ainda do que poderá vir a receber outra forma. O barro ora maleável, mole, úmido demais, gomento e escorregadio, ora ressequido, quebradiço, ingrato presta-se à suavidade e também à firmeza da mão, funda o que Bachelard (2013, p. 66-67) chamou de “cogito amassador”.

“Essa certeza do equilíbrio entre a mão e a matéria é um belo exemplo de cogito amassador. Como os dedos se alongam nessa maciez da massa perfeita, como se tornam dedos, consciência de dedos infinitos e livres! Não nos espantemos então se vemos agora os dedos imaginarem, se sentimos a mão criar suas próprias imagens. (…) Assim o sonho da mão põe um prado sobre o mar. (…) A primavera perfumada nasce na mão (…)”

A sova do barro, o preparo do bloco maciço, o toque inaugural da mão, o reconhecimento do material na intimidade e estranheza, os dedos no trabalho de movências, a modelagem; então a forma começa a aparecer aos poucos sem a certeza exata do que será ou virá. A pele humana, ao entrar na pele da terra, sidera uma espécie de cópula de superfícies que ficam horas se roçando, se estendendo e interpenetrando, desdobrada em abraços, apertos, cortes, puxões, alisamentos e brunidos. A força empreendida para compactar, modelar, emendar um pedaço a outro e perfurar o barro, retorna de certo modo à própria mão em uma dinâmica erótica a produzir os efeitos de afago, acarinhamento, tensão e, depois, descanso. Há aqui um ponto sensível: a mão entregue ao barro perde a noção dos tempos, de seu tempo e do tempo dele e, assim, algo do infantil (em seu sem-tempo) irrompe.

“Modelagem! Sonho da infância, sonho que nos leva de volta à nossa infância. Foi dito frequentemente que a criança reunia todas as possibilidades. Crianças, éramos pintores, modelador, botânico, escultor, arquiteto, caçador, explorador. E o que aconteceu com tudo isso? Há entretanto um meio, no centro mesmo da maturidade, de reencontrar essas possiblidades perdidas. Um meio? Quê! (…) Eu faria grandes obras? Sim, (…) faria obras que o levariam de volta aos tempos felizes em que o mundo causa admiração.” (BACHELARD, op. cit., p. 76)

A admiração e o susto comparecem quando a perna da mulher fica parecida com a de uma cena bem próxima, o quadril se assemelha ao de um animal assustador, o lábio impõe-se como uma saudade, o corpo do barro dá notícias do horrendo, sinistro ou monstruoso, e um mundo que há (e não se sabe que existe) erige. A lida com o barro implica o contato com figuras que remetem ao estranho familiar de Freud ([1919], 2019), já que a instância do que deveria permanecer apagado na trama do recalque deixa pegadas nas curvas, recortes, ângulos, buracos, alegorias e expressões que tomam corpo de presença com outra materialidade, que endurecem com o passar dos dias, tornando-se ainda mais infamiliares. O singular mais íntimo quebra a casca do ovo do irreconhecível e faz-se carne de inquietação, o ato de amassar o barro convoca também isso. A tradução enigmática diante do puro espanto de não se saber como foi possível chegar ali. O tempo da modelagem constitui certa drenagem do que estava guardado, chaveado e esquecido; de certo modo, constitui um abandono do verbo para algo que o ultrapassa ou fica aquém nos direito-avesso de uma borda que é o próprio sujeito e(m) seus limites.

Além desse, há mais um passo assustador no trabalho com o barro: produzir o oco. As peças precisam estar vazias por dentro para que possam ser queimadas e para que o ar quente circule passando por todas as paredes, do contrário explodem. O vazio e o barro ausente passam a sustentar a existência das figuras, são operantes, estruturam as formas maiores e até as mais pesadas e constituem o espaço lacunar necessário para que algo fique em pé. Lacan ([1959-1960] 2008, p.148) usou o vaso como metáfora para dizer disso. “E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo.”. Ao esculpir e modelar, isso se impõe. É preciso estudar o corte da figura, abri-la ao meio e retirar o enchimento dela; tal esvaziamento presentifica-se no vaso, na forma que está em curso, na figura durante a secagem e a queima.

Assim, a cerâmica acusa a existência de superfícies esvaziadas, buracos forçosamente criados, espaços de borda e de contorno que se tocam mas não se preenchem, tampouco se completam. Para que exista, o interior da cerâmica é sempre oco, o buraco lateja, escancara-se a barulheira da ausência quando a peça pronta é batucada, e não cessa de produzir efeitos de inscrições no sem tempo e sem completude do sujeito. Por que tal condição existe (e só por ela) há o barro, a mão e o vazio. E também por conta disso, apresento as esculturas que produzi nos quase dois anos da pandemia, em que o confinamento fez aparecer uma palheta imensa de privação e afetos.

SELEÇÃO DAS OBRAS PRODUZIDAS NA QUARENTENA

Babel pequena
Escultura em cerâmica, 2020.
Babel gigante (hoje o título seria Babel de corpos)
Escultura em cerâmica, 2020.
A ira
Escultura em cerâmica. Pintura com engobe, 2020.
Gárgula
Escultura em cerâmica, 2020.
Guato soberano
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Fora da água
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Filhote
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Medusa menina
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Com luz por dentro
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Eu, passarinho
Série Colocando luz nos furos
Escultura em cerâmica, 2020.
Sereia com passarinhos
Escultura em cerâmica, 2021.
Caipirinha
Escultura em cerâmica, 2020.
Ulisses, amor
Escultura em cerâmica. Pintura com engobe, 2020.
Furada
Série Mulheres sem cabeça
Escultura em cerâmica. Pintura com engobe, 2021.
Florada
Série Mulheres sem cabeça
Escultura em cerâmica, 2021.
O vazio e o vaso
Série Mulheres sem cabeça
Escultura em cerâmica, 2021.
Outros espaços vazios
Série Mulheres sem cabeça
Escultura em cerâmica. Pintura com engobe, 2021.
Não tão vazio assim
Série Mulheres sem cabeça
Escultura em cerâmica. Pintura em engobe, 2021.
Meninos cantores, mais que nunca é preciso cantar
Escultura em cerâmica, 2021.
Parto
Escultura em cerâmica, 2020.
Beatriz
“me ensina a não andar com os pés no chão”
Escultura em cerâmica, 2021.
Nina
“anseia por me conhecer em breve – me levar para a noite de Moscou”
Escultura em cerâmica, 2021.
Carolina
“guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo”
Escultura em cerâmica, 2021.
Januária
“até o mar faz maré cheia para chegar mais perto dela”
Escultura em cerâmica, 2021.
Angélica
“só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar”
Escultura em cerâmica, 2021.
Bandeando para lá e para cá
Escultura em cerâmica, 2021.
 

FOTOS: Lucília Abrahão.

E-MAIL: luciliamasousa@gmail.com

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo, Martins Fontes, 2013.

FREUD, S. O infamiliar e outros escritos. ([1919]).  Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019.

LACAN, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008.

19 Comentários

  1. Andréia Daltoé

    Em suspenso, emocionada aqui com o tudo que se pode pela palavra. Você, Lucília, lindamente artesã dela e do barro…

  2. Noilma Martins

    Que exposição linda, Lucília.
    Aprecio muito sua arte. As esculturas são de uma sensibilidade indescritível com o feminino.
    Sucesso!
    Grande beijo.

  3. Telma Domingues da Silva

    Nossa, que profusão de mulheres, em luz, vazio, beleza!!! Parabéns Lucília! São lindas as suas esculturas!

  4. Elizabeth Fontoura Dorneles

    A linguagem pela mão da maravilhosa Lucília fez nascer do barro muitos gritos: alegria, música e também socorro. Mulheres, mulheres e seu universo de vozes! Belíssima!

    • Lucília

      Minha querida, q especial encontrá-la aqui e ler seu comentário! Muita agradecida! Seguimos tecendo nossas vozes. Bj.

  5. Rodrigo Daniel Sanches

    Parabéns, Lucília! Trabalho incrível e sensível. Sua capacidade de “dizer e refletir” com as palavras (aliás, algo que eu sempre admirei) se reflete, agora, com igual ou maior intensidade nas suas esculturas. Um grande abraço, de seu sempre aluno, Rodrigo!

  6. Vanise Medeiros

    É muita lindeza!!! Que frescor para nossos olhos, para nossos dias num momento tão difícil. Muito obrigada por nos povoar por dar vida ao barro!

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