Por LsD
Corpo só
Ela nua. Sob um fino lençol de cor neutra.
Ele aponta na porta e a reconhece.
Alguns anos juntos e agora esse momento de reconhecimento do corpo que tantas vezes amou.
Ele só. Sem um puto de um tostão. Sangue nos olhos. Se tivesse grana, ela não estaria ali.
Ela. Corpo estendido.
Já a caminho de se decompor.
– É ela.
O enfermeiro pede para que ele assine um papel. Logo o corpo será liberado.
[ ]
Em todo dia de finado, vejo aquele homem com a filha pequena em ritual. A menina espera que ele coloque a flor naquele túmulo que ela nunca entende muito bem o porquê da visita sagrada e pontual àquele nome de mulher.
Flor entregue. Ele reza. Sempre um silêncio e sol. Arde o sol no cemitério em novembro.
Ritual cumprido.
Vida curta
Sem direito de escolha.
Monólogo da intimidade forçada
– Você quer ser mãe?
[Um olhar de franzir a testa]
– Você já pensou em ter filhos?
[Leve sorriso, menos impactada com a pergunta]
– Ah! Quando despertar isso em você, você vai ver…
[Sorriso de canto de boca… Falar o quê?]
– Claro, se despertar…
Há diálogos impossíveis.
Início:
Duas amigas conversam sobre a culpa da
Mãe
Amiga
Tia.
Desenvolvimento:
Da culpa de terem falhado no papel de
Mulher
Mãe
Filha.
Conclusão:
Não há fim
da culpa
de uma mulher?
Ela encontrou uma barata no sapato.
Escândalo. Adolescente.
Havia quem matasse o inseto.
O pai.
Sem a repreender, matou
Limpou o chão. Deu fim àquele bicho.
Ela encontrou a barata na cozinha,
Depois na sala,
No quarto.
Passou por um corredor de baratas
Mortas semivivas vivas
Não se importava mais.
Ali, ela sabia que não teria a quem gritar.
Do olhar de outros e outras
Alguém botou reparo nos peitos
Outro no pescoço
Outra nas mãos
Nos pés
Nas pernas
No queixo
Nos olhos
Na boca
Na bunda.
Como mosaico
Fui me construindo e me quebrando.
No corpo, a memória
Com cacos me construo
Os cacos me constroem
Só sou em pedaços.
Somos metonímia
Depois do adeus
Restam os pedaços
O jeito delicado de segurar o guardanapo sobre o lanche
O molho no pano de prato
O jeito de
arrumar as almofadas para assistir ao filme
abrir o plástico de cd, dvd sem rasgá-lo
O cheiro no travesseiro
O gosto do café
Da língua
Do brigadeiro
Pedaços em ausência
E as piadas com risos fáceis para sempre em silêncio.
Nada é de mentira
A veia pulsa
Escuto o coração
O sangue escorre
Tem textura. É quente.
Fico onde há vida
E voo para a criação.
O sangue escorre (de novo)
O ciclo se fecha ou se inicia?
O infecundo quente, vermelho vivo
escoa na privada.
Hoje não engulo qualquer coisa
Chupei
Porque é assim que
parecia que tinha que
fazer
Cheirava azedo.
Prendi a respiração
Ânsia só quando não estava bêbada
Chupei outro
Deixa eu gozar
Lá
Dentro
Vai
E depois – Engole –
Tinha gosto de água doce com gás sem gás
15 dias depois
Me liga para avisar que
Não dava mais
Não estava preparado.
Não mesmo.
Ainda que seja pássaro
na gaiola pendurada
próxima à janela de vidro de um
apartamento,
Não caibo no teu canto.
Acabaram as jabuticabas
as mexericas
a espera
o zigue-zague
Discos ouvidos, estes sempre ficam
Acabou
O que mal começou
Ou
O que começou mal?
Só que ficou.
A analista
Entre cá e lá
Há mi
Nota musical
Sonora
Diapasão
Extensão de uma voz
Posição ocupada por uma voz
Nota que a partir dela
Afinam-se as outras
De ouvido
Escuta
E soa Caminho
Verbo no presente
Expansão
Processo, passo por vez
O lá pode estar
Perto longe aqui
E aqui é sempre ir
um pouco mais, além
Entre cá e lá
Há mil
“Me” em língua outra.
LsD são doses poéticas. Psicodesia experimentada por Laise Diogo.
@lsd.escritos
Uau! Parabéns pela publicação. Seus poemas condensam e expandem, ao mesmo tempo, questões que nos perpassam: diálogos impossíveis, ser mulher e, a partir dessa condição, estar mundo convivendo com tudo aquilo que nos constitui. Incrível.
LsD…. Essa poesia laisiana é puro psicodelismo: lisérgica, feminista e feminina. Fé, menina. Você chega lá! Você chega, Lá! Lá onde?? Lamaria….. Amei. Parabéns!!!