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Depois de abrir o ventre para um filho que não ganhou vida,
fiz uma viagem interna por becos escuros.
No início, para caminhar no espaço/tempo, passei a tatear o que estava ao meu redor como se nunca tivesse tido uma visão clara das coisas,
dos objetos,
dos livros,
da comida,
dos ambientes da casa,
da janela,
da porta.
Tateava e caminhava numa velocidade entre estar devagar e atrasada.
Ainda assim, tropecei,
caí,
esbarrei em coisas,
me perdi,
confundi direções,
duvidei do meu tato,
não soube para onde ir dentro de mim.
Logo e justamente eu, acostumada a ir fundo, a pensar denso, a escutar até silêncios e a navegar profundezas existenciais sem máscara de oxigênio para mergulhos.
Logo e francamente eu, viciada em usar toda a potência dos pulmões para navegar em digressões que fogem à hora e em reminiscências – inconsciente a fora.
Um ano depois do episódio que cortou o tempo com a navalha do real, em pleno 2020 pandêmico, em que estar no mundo passou a ser ainda mais sufocante, entendi onde fui parar:
estava numa distância amedrontadora da minha casa-corpo.
Tomei nota, enfim, de que eu havia avançado calendários sem descanso e engolido a língua por tanta fome de palavras.
Então, com as mãos, apertei os ponteiros com força e decidi:
vou procurar o que resta de ar em meus pulmões.
Fui atrás de inspirações para reeducar a minha respiração.
No começo, ardia.
Estava seca.
Às vezes soluçava sem que água alguma desse conta.
Nem saliva
nem lágrimas
nem chuveiro
nem mar
nem cachoeiras
nem a água da fonte.
Estava completamente entupida,
pesada,
exaurida,
sobrecarregada.
O tempo sempre insuficiente.
As palavras
— incontáveis —
não serviam a nenhum sentido.
A matemática cronológica da linha temporal não diminuía a distância entre mim e eu.
Nessa busca, espiralando em torno de mim, cavando inspiração para respirar, aconteceu:
eu comecei a suar.
Alguma coisa foi saindo de mim pelos poros.
Vasculhei por tantos corredores internos que passei a transpirar.
Eu me inspirava,
respirava,
pirava
e transpirava.
Sucessivamente.
Eu fazia vários movimentos de ir,
ampliar,
suspender,
voltar,
descer,
subir,
girar,
erguer,
abaixar,
abrir,
fechar,
esticar,
dobrar,
rodopiar,
pular,
correr,
andar, andar e andar.
Colocava a minha cachorra na coleira, a máscara no rosto e andava.
Pelos meus poros o que ia saindo abria espaço para que eu crescesse de dentro para fora. Fui ganhando leveza. Abria imensa os pulmões. Fui me alcançando para diminuir a distância que fiz entre mim e eu. Usei de toda a potência dos pulmões para me aproximar da vida que me habita involuntariamente: arranjei ar para mergulhar em mim.
De volta à casa-corpo, transpiro com a coragem de atravessar — sem máscara de oxigênio para mergulho — o que ainda há de desconhecido.
Agora, marinheira de mais uma viagem,
vivo com um saber a mais:
Sem inspiração não há como respirar.
Sem transpiração não há como se inspirar.
Nem todo fundo é escuridão.
Nem toda morte é o fim.
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Rebecca Loise é escritora, psicóloga, psicanalista, artista da cena e do corpo. Graduada em Psicologia e mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora CNPq pelo PsiPolis – Unicamp. Atualmente atende em consultório online, é colunista do Jornal Folha de Dourados, atua, performa e dedica-se à área de pesquisa e de criação artística em Arte & Psicanálise. Autora de Engordei o sol noturno, publicado pela Editora Urutau (2022). Contato: rebeccaloise.art@gmail.com
Parabéns querida!Lindo trabalho com sempre!