Menu fechado

Um trecho inédito de “Engordei o sol noturno”, livro de Rebecca Loise

CENA V

“A sedução me escraviza a você
Ao fim de tudo você permanece comigo
Mas preso ao que eu criei
E não a mim (…)
O jogo perigoso que eu pratico aqui
Busca chegar no limite possível de aproximação
Através da aceitação da distância
e do reconhecimento dela
Entre eu e você
Existe a notícia que nos separa
Eu quero que você me veja a mim
Eu me dispo da notícia
E a minha nudez parada
Me denuncia e te espelha
Eu me dilato
Tu me relatas
Eu nos acuso e confesso por nós
Assim me livro das palavras
Com as quais você me veste.”

Fauzi Arap na voz da Maria Bethâni

Eu não estou escrevendo pela primeira vez isto que aqui está sendo escrito agora. Eu estava há pouco deitada na minha cama, ainda de calça jeans, olhando para o teto. Um hábito meu, inclusive, é gastar a existência assim: um gerúndio infinito de olhar para o teto. Olho para o teto com o intuito de abrir um corredor vertiginoso para o pensar. Um jeito de desocupar a visão que infiltra e colar a retina na cadeia viciante das palavras sem voz e feita de veludo que é o silêncio. Então, apesar de ser prolixa, não acho que tenha efeito de lixo confessar que eu nunca estou em silêncio: que sempre estou pensando e que, por fim, e por conseguinte, penso mais do que existo. Meu cérebro é tão inchado que queima. Lembra aquele dia que te fiz levantar da cama às sete da manhã para comprar dorflex e analgésico? Você esqueceu do dorflex. Trouxe somente o analgésico. Foi mais um deslize ingrato da tua parte. Porque eu estou costumada a meu cérebro inchado e à dor da existência. Eu me deito e deleito no vazio abismal do pensar desde que entendi que a minha vida era só minha. Raramente tenho dor de cabeça. Neste dia, aliás, depois de passar um pouco mais de cinco horas pensando
por você, eu quase fiz um furo no teu colchão de tanta inquietude e de tanto não saber confortar a cabeça que não parava de pensar. É tola, no nível da imbecilidade, e cansativa, no nível de desconfigurar identidade, esta tarefa a que
me imponho. É que você não pensa. E eu, ao me apaixonar por você, esqueci que a vida era só minha. Você nunca nem deve ter chegado a pensar que você não pensa de tanto que não você pensa – em nada. Bem, contudo, essa sou eu
pensando; e não foi isso que eu escrevi deitada de jeans na minha cama.


Eu escrevi em voz alta. Foi como uma cena de filme: como se tivesse uma câmera posicionada na altura da luz, que me olhava de cima e fazia a paisagem da minha figura corpórea deitada na cama de jeans. Conforme eu ia escrevendo
em voz alta, uma legenda simultaneamente datilografava-se na parte posterior da cena, da esquerda para direita. Eu falava enquanto pensava e é por isto que foi uma escrita em voz alta.


Eu escrevi uma carta. Para você. Eu comecei escrevendo que desta vez a minha tarefa era apenas, a duras penas, te contar o que pensei sobre mim desde quando dancei sensualmente para você naquele bar que não é um bar (a primeira mentira), que é uma loja de comércio de entorpecentes. Uma boca. Foi ali naquela boca que você me beijou na boca e que nós, perdidos, nos perdemos mais uma vez.

Ficar sem te ver e sem falar com você me fez sair da gosma da paixão que grudava a minha vida na tua e que me fez virar espuma. Desgrudada, pude me solidificar em mim e, assim, me vi com o poder e o querer de ser uma mulher pronta para ser beijada inteiramente. Eu escrevi para você que eu estava me sentindo estúpida de ter reagido num tom óbvio e moderninho, como meu novo corte de cabelo que não me serviu bem, a tua proposta de desnamoro. Esta palavra não existe. Pode até ser um neologismo inspirado no país das maravilhas, porém, saída da tua boca, esta palavra resume a história das tuas mil e uma malícias. Me escuta. Quer dizer, me leia. Pelo amor de qualquer Deus, tenta enxergar alguma coisa para além da tua mediocridade. Eu me coloco para ser uma coisa para que você me olhe, vê se tome tento! Desnamorar com você não existe: nunca me senti tua namorada, nunca você foi o meu namorado. Você nunca foi um ex-namorado para então ser o namorado. Eu escrevi que, desde a primeira vez em que vi você, eu senti uma vontade absurda e inexplicável – nem me espremendo em pensamento entendo este sentimento louco e pegajoso – de ficar perto de você. Bastava ficar ao teu lado. E você resolveu se por ao meu lado, mas quase sempre não estava ali. Foi aí que comecei a te inventar. Eu sabia de mim e sabia de você mais que você mesmo. Esta foi a mentira que nós, perdidos, fomos. Com você fui mais sozinha do que quando verdadeiramente só. Eu quis assim. Eu fiz assim. Você é faltoso. E eu penso mais que existo. E é por isto que de você não quero ouvir mais a palavra: saudade. Não quero teu não-ser de 1,87 cm ao meu lado. Não quero ser duplamente solitária. Di, nós nunca, escuta, nunca existimos a dois.

O livro será lançado pela Editora Urutau e está em fase de pré-venda pelo site da Benfeitoria. Para reservar seu exemplar, basta clicar neste link: https://benfeitoria.com/engordei

O lançamento físico e on-line do livro está previsto para o primeiro semestre de 2022.

Texto e imagem: Divulgação da autora.


2 Comentários

Comentários estão fechados.